Gilberto Maringoni
Gilberto Maringoni de Oliveira é um jornalista, cartunista e professor universitário brasileiro. É professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, tendo lecionado também na Faculdade Cásper Líbero e na Universidade Federal de São Paulo.
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Análise de conjuntura curta e – muito – grossa, por Gilberto Maringoni

A combinação de quatro crises - política, econômica, sanitária e de autoridade - periga formar um coquetel indigesto para o governo.

Análise de conjuntura curta e – muito – grossa

por Gilberto Maringoni

Bolsonaro se fodeu no domingo. Pode ainda manter apoio entre cerca de 30% da população, mas seu quadro tendencial – e é isso o que importa – tem viés de baixa. Perde apoio entre a classe média, mesmo em setores que nele votaram no segundo turno.

O mergulho na popularidade é atestado não apenas pelos breves panelaços observados no centro de São Paulo e em partes da zona sul do Rio, na noite desta terça (17), mas no crescente desconforto que seu desleixo diante de uma pandemia tem provocado.

ELOGIAR TORTURADORES, propagar a eliminação da esquerda, defender a queima da Amazônia, puxar o saco de Trump, xingar Cuba, China e Venezuela, atacar a mulher do presidente francês, dar bananas a jornalistas, exibir comportamento misógino, homofóbico e machista, exalar racismo por todos os poros e externar linguajar chulo é algo aceitável pela estupidez média da nacionalidade. Idem idem a saudação a milicianos, a estultice demonstrada por sua prole, os ataques à cultura, à educação, à ciência e à inteligência. Tudo coisa de veado!

Mas zombar de uma doença que leva crescentes parcelas da população ao pânico mostra a pouca importância dada pelo mandatário à vida de quem o apoia. Bolsonaro arranhou irremediavelmente a camada de teflon que o protegia.

Há mais! A sensibilidade de megatério – a preguiça pré-histórica – de seu lugar-tenente da Economia, Paulo Guedes, começa a se tornar incômoda. O pinochetista mostra-se incapaz de levar uma palavra de conforto à sociedade.

O SETOR MILITAR – das forças armadas – sente a roubada em que se meteu. As classes fardadas – como dizia a oligarquia paulista pré-1930 – levaram 35 anos para limpar as manchas de sangue dos uniformes após a ditadura. Percebe ter enfiado o pé na jaca por um boçal. O general Santos Cruz, homem de direita porém sério, vocaliza indiretamente o desconforto do alto comando com a quebra de uma cláusula pétrea de qualquer corpo armado, a hierarquia. Tornou-se inaceitável a defesa da subversão miliciana cearense feita pelo presidente, por seu ministro da Justiça e pelo limítrofe que comanda a Força Nacional.

A ESCÓRIA DO MUNDO EMPRESARIAL, tão bem representada no almoço da Fiesp em 12 de março, aplaudiu de pé o capitão e saiu da avenida Paulista levitando em elogios. Dia seguinte, retirou R$ 44 bilhões do país, na maior fuga de capitais observada em décadas.

Repetindo, Bolsonaro se fodeu domingo. Suas performances pretensamente histriônicas começaram com um imitador na terça (10), em frente ao Palácio, passaram por apoios e desapoios às marchas golpistas programadas para o dia 15 e se atolaram no pântano da pandemia.

O presidente segue com um colchão de legitimidade ainda considerável. Suas falanges bovinas continuam mugindo grosso, embora se tornem cada vez mais rarefeitas.

NÃO É POSSÍVEL PREVER quando o viés de baixa na popularidade se transformará em raiva ativa e mobilizada. Mas a combinação de quatro crises – política, econômica, sanitária e de autoridade – periga formar um coquetel indigesto para o governo.

Nesse quadro complexo, há outra disputa em tela. A esquerda, encolhida desde a hecatombe múltipla promovida por Dilma Rousseff, tem dificuldades para entrar em campo. Um setor da direita – impropriamente chamado de centro e cuja figura maiúscula é Rodrigo Maia – disputa uma agenda liberal apresentada como mais civilizada diretamente com a barbárie miliciana.

A ESQUERDA TEM UM TRUNFO. A pandemia mostra ao redor do mundo não haver saída contra uma doença que se espalha geograficamente sem ação do Estado. Emmanuel Macron, em duro e emocionante discurso na segunda (16), foi certeiro na análise: “Estamos em guerra. Não uma guerra contra países e povos, mas uma guerra contra um inimigo que se multiplica entre nós”.

Guerras de verdade, desde a Paz de Westfália (1648), mobilizam Estados nacionais. O combate a pandemias é feito com táticas de domínio de territórios e estabelecem enfrentamentos que combinam ciências biológicas e geopolítica. O instrumento que pode combinar essas duas dimensões é o de uma medicina pública que atue em rede. Não se enfrenta um inimigo em disputas territoriais globais com as armas limitadas da medicina individual e privada.

O CORONAVÍRUS COLOCA na cena principal o papel do Estado. Esse é o mote e a formulação ideológica essencial a serem agarrados pela esquerda. A luta contra a peste dos novos tempos é radicalmente antineoliberal. Se dependermos do mercado, o planeta será derrotado. Até a direita mercadista sabe disso e sequer cora de vergonha quando Donald Trump propõe dar a cada estadunidense um cheque de mil dólares para auxiliar a cidadania na superação das turbulências. Trata-se da versão século XXI da ideia de Milton Friedman (!), nos anos 1960, de que os Bancos Centrais deveriam jogar dinheiro de helicóptero para os agentes econômicos e a quem tem a propensão a gastar. Seria um tratamento de choque anticíclico para reativar uma economia estagnada e mergulhada em deflação.

POR AQUI, MEGATÉRIOS e outras modalidades paquidérmicas de burocratas seguem pensando em vender ativos estatais, cortar salários e contagiar incautos com a ideia de que no fim do arco-íris dos sacrifícios contracionistas haveria um pote de ouro.

A vida piorou, a crise adquire contornos imprevisíveis, mas há uma notícia positiva: as condições de disputa melhoraram para quem se opõe à irracionalidade vigente.

Não nos esqueçamos, Bolsonaro se fodeu.

CONTRARIANDO O BARÃO DE ITARARÉ, tudo pode acontecer, menos nada. Os tempos políticos se aceleram de formas meio destrambelhadas. Nessa montanha russa de embates, ao contrário das bolsas de valores, não há circuit braker.

(Quem introduziu mundialmente o conceito de megatério nas ciências do antibolsonarismo foi meu amigo Artur Araújo).

Gilberto Maringoni

Gilberto Maringoni de Oliveira é um jornalista, cartunista e professor universitário brasileiro. É professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, tendo lecionado também na Faculdade Cásper Líbero e na Universidade Federal de São Paulo.

3 Comentários

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  1. Há também uma crise de valores: o Bolsonaro dá mais valor ao patrimônio do que à vida. Ele quer colocar a população em risco para não colocar a economia em risco. É que com a economia em risco, seu governo fica fragilizado e ele não se reelege em 2022. É isso que dá num país em que a pena do goleiro Bruno por crimes contra a vida é inferior à pena do Zé Dirceu, por supostos crimes contra o patrimônio.

  2. É por conta desse tipo de discurso é que eu leio GGN. Lúcido e perspicaz ao mostrar o quadro atual.
    Destaco o ponto em que menciona a inação da esquerda e o risco implícito do projeto da direita ganhar o controle da situação. Acho que a esquerda não somente perdeu o rumo, mas, antes perdeu a narrativa. Não vem de lugar algum do campo progressista algo mais do que ser oposição, no sentido de negar espaço ao governo e ao seu projeto. É seu papel, mas bater somente não basta. É preciso retomar o protagonismo, o controle da narrativa e criar esperança. Aquela velha história de “corações e mentes” o moto da estratégia americana para o Vietnam. Mas, lá como cá, não se conquista isso com napalm. O país sabe, tem consciência dos desatinos dos ultimos anos. Ficar nessa tecla desgasta e não trará resultados. O país está em busca de soluções, de um projeto e de pessoas que liderem. Infelizmente, não vejo ninguém capaz ou disposto a tal missão, nem mesmo Lula.
    Corremos o grande risco de sermos governados por Mourão em uma grande coalização da direita, mais racional, menos truculenta, mas na essência mais do mesmo com uma prática política mais eficaz.

  3. Fora Maia ou fôra maya?
    Apoiadores do presidente golpista levantaram a faixa, ‘Fora Maia’ em alusão direta ao presidente da Câmara Nacional e indireta ao congresso, com STF e com tudo. No que pese a aparente produção financiada em massa, já que as faixas em geral, distribuídas nas manifestações antes pró-golpe e agora pró-governo tem uma padronização de pano amarelado e são feitas à máquina e não rusticamente, como seriam algumas ao menos, caso fossem feitas por populares. Mais isto já se nota desde os bonecos infláveis, patos, balões imensos e caminhões trios-elétricos que foram se avolumando desde alguns anos. Seria interessante que alguém investigasse esta indústria que se criou para as manifestações verde-amarelo-desbotadas e quem as patrocina no âmbito nacional.
    Tudo isto para lembrar que a maya (com ipisilon mesmo) é no hinduísmo a “entidade” que simboliza a ilusão, o dualismo (divisão) e a escuridão. É possível que os simbolismos que o diabo, satanás e lúcifer carreguem, sejam resquícios aculturados pelo cristianismo emprestados pelo hinduísmo, trazendo esta mesma conotação de divisão, do enganador e ocultador da luz (da razão). A história original conta que maya era uma deidade que cria um castelo onde há espelhos mágicos que iludem aquele que os olham. A pessoa olha algo, mas o seu ego e desejos o faz enxergar outra coisa. Por isto em princípio, que maya é referida como a “deusa da ilusão”.
    Ilusão que no mundo real, quando avistada por repetidas vezes, pode levar a um diagnóstico clínico de esquizofrenia. Num momento de mundo escrito por alguns com império das ilusões, onde a esquizofrenia social vai se avolumando, até por isto alguns chamam estes tempos de era da pós-verdade ou era da falsidade, quando fakenews, incredulidade e perda de credibilidade vão chegando ao ápice, may vai dominando. O mundo vai se perdendo nas ilusões de maya, é quando de fato deveriam ser levantadas, mas voltadas para si, as faixas do “fora maya”. Mas iludido que ando, vejo que isto não ocorrerá até que a crise bata bem mais forte em nós e acordaremos. Mas como a realidade é muito pior de ser aceita, é conveniente continuar adormecido.

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