Assumir os padecimentos (resistência à frieza totalitária), por Paulo Fernandes Silveira 

É preciso preparar-se para a alteridade, é preciso preparar-se para ter experiências humanas diretas. Trata-se de expor-se completamente ao outro e ao afeto, de expor-se sem máscaras e sem defesas, trata-se de expor sua própria vulnerabilidade.

(Imagem da Mel)

Assumir os padecimentos (resistência à frieza totalitária)

por Paulo Fernandes Silveira 

“O sentir não é um pensar estropiado nem uma redução – vai em outra direção. É um modo de sofrer uma potência”. (Emmanuel Lévinas)

O sujeito passional não é agente, mas paciente, todavia, há na paixão algo como um assumir os padecimentos, como um viver ou experimentar”. (Jorge Larrosa)

Numa conferência de 1965, Theodor Adorno discute como poderia ser uma educação preocupada em formar pessoas que não aceitem, nem tolerem, genocídios como o promovido pelos nazistas nos campos de extermínio de Auschwitz. Uma tal educação precisaria abrir perspectivas de formação mais ricas do que aquela que, provavelmente, tiveram as lideranças nazistas, que se mostraram pessoas manipuladoras, controladoras e completamente incapazes de levar a cabo experiências humanas diretas, assim como de cultivar e de manifestar emoções (ADORNO, 1998, p. 86).

Em larga medida, os trabalhos de Emmanuel Lévinas podem ser aproximados dessa posição de Adorno (BEDORF, 1997; 2011). Nas primeiras páginas do prefácio do livro Totalidade e infinito, publicado em 1961, o filósofo alerta para o perigo permanente de enfrentarmos uma nova guerra. Entre os sentidos da sua violência, a guerra “instaura uma ordem em relação à qual ninguém se pode distanciar” (LÉVINAS, 1988, p. 10). Nada lhe é exterior. Os indivíduos são reduzidos a essa totalidade. A guerra impede que o outro se manifeste como outro.

Em contraposição a isso, Lévinas sustenta a prioridade do outro e da alteridade na constituição da subjetividade (SILVA, 2012, 2017). No limite dessa reflexão filosófica, as experiências subjetivas podem ser compreendidas face ao absolutamente outro, aquilo que extravasa o pensamento, uma ideia de infinito capaz de provocar uma espécie de infinição (LÉVINAS, 1988, p. 13). Seguindo a interpretação de Lévy-Bruhl sobre a experiência mística, Lévinas afirma que a experiência mais radical da alteridade, ainda que seja intraduzível ao pensamento, é acessível à emoção (2004, p. 72).

De certo modo, é preciso preparar-se para a alteridade, é preciso preparar-se para ter experiências humanas diretas. Trata-se de expor-se completamente ao outro e ao afeto, de expor-se sem máscaras e sem defesas, trata-se de expor sua própria vulnerabilidade (LÉVINAS, 2003, p. 193). Na mesma linha de pensamento, Jorge Larrosa compreende o sujeito da experiência a partir da paixão, do padecimento, da paciência e da atenção, mas também da receptividade, da disponibilidade fundamental e da abertura essencial para o outro e para sua própria transformação (2002, p. 26; 2011, p. 7).

Uma das mais fortes experiências da alteridade que já vivi foi o encontro com uma pequena gata, a Mel. Moro com minha companheira numa casa de vila em São Paulo. Antes da chegada da Mel, tínhamos outros gatos. Adotamos a Mel quando ela tinha cerca de quinze anos. Ela sempre viveu nessa mesma vila, só que em situação de rua. Parece que foi de um vizinho, aí passou para outro, que faleceu. Até que ficou mesmo sem casa e sem abrigo. Todavia, não dava muita confiança para ninguém, por vezes, aceitava um prato de comida, mas logo corria para algum telhado. De forma alguma ia para o colo de quem quer que fosse.

Decidi que precisava mudar esse estado de coisas numa noite de chuva torrencial em que voltamos para casa de carro. De dentro do veículo, vi a Mel embaixo de outro carro, sem conseguir se defender do frio e da água abundante. Foram meses tentando trazê-la para perto da nossa casa com conversas e pratos de comida cada vez mais próximos do nosso portão. Uma hora deu certo, ela adentrou, percebeu o perigo que não estava acostumada e fugiu. No outro dia, aceitou mais fácil atravessar o portão. Na lavanderia em frente ao portão, já havia uma cama arrumada para ela, provavelmente, essa foi sua primeira cama macia e com cobertores. Para que ela entrasse e saísse quando quisesse, meu sogro cortou a parte debaixo da porta da lavanderia.

Ali a Mel passou a morar, evitava entrar na casa principal, uma vez que os gatos antigos tinham ciúmes danado dela. No quarto dela colocamos um banco onde eu sentava à tarde para ouvir minhas músicas e dar colo para ela. Todas as noites minha companheira a colocava para dormir. Quando víamos televisão, sob nossa proteção, a Mel vinha para a sala e ganhava mais colo.

A tristeza e ironia dessa história é que, logo que foi adotada, Mel foi diagnosticada com um câncer avançado. Foi internada, depois de se recuperar, precisou tomar soro duas ou três vezes por semana. O tumor na bexiga e a alimentação especial fizeram com que ela emagrecesse muito. Era só pele e osso, a boquinha tinha uma abertura permanente, talvez, fruto de algum acidente, e o rabinho era cortado. Não tinha uma beleza fácil de ser percebida, mas era linda!

Foi um ano de descobertas para ela e para nós ao seu lado! Tudo era novo na vida dela naquela família burguesa: três refeições ou quantas ela cobrasse (e cobrava), sua última foi sushi de salmão (dividido comigo), cobertores, colos, conversas, tardes de sol, carinhos dos médicos e enfermeiros, carinhos de todos. Como mostra a foto que ilustra esse texto, Mel tinha um olhar profundo, um olhar que nos convocava a estar junto dela, nos convocava para viver cada momento daquela experiência.

Paulo Fernandes Silveira (FE-USP e IEA-USP)

Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor. Educación después de Auschwitz. In: ADORNO, Theodor. Educación para la emancipación. Madrid: Ediciones Morata, 1998, p. 79-92. https://socioeducacion.files.wordpress.com/2011/05/adorno-theodor-educacion-para-la-emancipacion.pdf

BEDORF, Thomas. Der Absolute Andere bei Levinas. In: BEDORF, Thomas. Andere: Eine Einführung in die Sozialphilosophie. Bielefeld: Transcript, 2011, p. 159-178.

BEDORF, Thomas. Das Andere als Versprechen und Anspruch. Annäherungen an Adorno und Levinas. In: BEFORD, Thomas; BERTRAM, Georg; GAILLARD, Nicolas; SKRANDIES, Timo (orgs.). Facetten einer deutsch-französischen Auseinandersetzung. Amsterdam/ Atlanta: Editions Rodopi, 1997, p. 163-174.

LARROSA, Jorge. Experiencia y alteridad en educación. In. LARROSA, J. SKLIAR, C. (orgs.) Experiencia y alteridade en educación. Rosario: Homo Sapiens Ediciones, 2009, p. 13-44. https://pt.slideshare.net/EscuelaBicentenario/experiencia-y-alteridad-en-educacin

LARROSA, Jorge. Experiência e alteridade em educação. Reflexão e ação, v. 19, n. 2, p. 4-27, 2011. https://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/article/view/2444

LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista brasileira de educação, n. 19, p. 20-28, 2002. https://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.pdf

LÉVINAS, Emmanuel. Autrement qu’etre ou au-dela de l’essence. La Haye : Martinus Nijhoff, 1974. https://libgen.lc/ads.php?md5=D14C7BA7DD3153315156FD47D2315450

LÉVINAS, Emmanuel. De otro modo que ser o más allá de la esencia. Salamanca: Édiciones Sígueme, 2003. https://pt.scribd.com/document/169765106/Emmanuel-Levinas-De-otro-modo-que-ser-o-m-s-all-de-la-esencia-pdf

LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 1988.

https://libgen.lc/ads.php?md5=9E9A336D5E5502FA0BDA1696F6A29D41

LÉVINAS, Emmanuel. Totalité et infini. Paris: Librairie Générale Française, 2009. https://libgen.lc/ads.php?md5=A79120A2866396EACC0647E40C40FA03

SILVA, Franklin Leopoldo. Lévinas: ego e distanciamento. Casa do Saber, 2017. https://www.youtube.com/watch?v=uxWBzOVQ6-o

SILVA, Franklin Leopoldo. O outro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.

Redação

2 Comentários

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  1. Sim, é possível, como quase tudo é. Pero..gatos não são onças ou tigres, e ratos são ratos, muito mais numerosos. Maior consciência e paz social deveriam ser objetivos do gregarismo e inteligência face a misérias milenares, mas o contrário, o poderio militar e econômico, e das mídias a eles associados, serão dominantes, ainda por décadas, nos estados e sociedades humanas, precariamente humanas.

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