
Bach 300
por Walnice Nogueira Galvão
A cidade de Leipzig na Alemanha decidiu festejar à altura seu mais ilustre filho: Johann Sebastian Bach. Isto é, “filho” é modo de dizer, já que Bach não nasceu lá, e sim em Eisenach, na Turíngia. Mas em Leipzig, foco cultural e um dos mais prósperos centros germânicos, passaria a última e mais frutífera parte de sua vida. Ali o Kapellmeister se tornou famoso e Kantor da Igreja de S. Thomas. E nessa igreja pode-se visitar seu túmulo. Para escolher uma data redonda, resolveram comemorar os 300 anos da chegada e instalação de Bach na cidade. E fim de suas peregrinações, porque passou metade da vida transferindo-se com sua numerosa prole de um posto para outro, ao léu dos mecenas e dos empregos que lhe ofereciam.
Ante sua maravilhosa obra, abre-se a discussão: é ele o maior compositor barroco ou simplesmente o maior compositor que já houve? Suas fugas, sua arte do contraponto e da polifonia, tudo parece inconteste. Recebeu até influência da música italiana e da francesa, cujas partituras ele copiava e colecionava: por isso a música que produziu é mais brilhante em seus efeitos e admite tons operísticos.
Só não compôs óperas. As Paixões e as Miasas cantadas são o que mais se aproxima da ópera, e foram muitas vezes criticadas a seu tempo por trazerem inovações líricas pouco pias. Mas atenção, Bach era profundamente religioso e sua obra é de música sacra, de elevação mística.
Hoje Bach é uma figura venerável, graças à iconografia que o retrata com sua peruca empoada e cacheada, calções que descem até o joelho e meias brancas daí para baixo, completados pela casaca de seda bordada. Mas isso era a libré de lacaio que ele usaria a vida toda, e muitos músicos ilustres confiaram a papéis íntimos a humilhação que sentiam. Herança do feudalismo, os músicos eram considerados criados, de nível social inferior, agregados à corte de um nobre para distraí-lo e enlevar seus convivas. E isso até o alvorecer do século XIX. Só bem depois de Bach os músicos seriam dispensados da obrigação, e Beethoven já não seria submetido ao uniforme. A democratização trazida pela Revolução Francesa acabaria com esses costumes vexatórios. O Romantismo, com sua promoção do indivíduo e sobretudo do artista, poria uma pá de cal nessas coisas, mais cedo ou mais tarde.
Bach era de família protestante luterana devota. A cultura musical luterana era forte nos pequenos ducados e principados alemães, misturada à prática religiosa. A fé luterana predomina até hoje na Alemanha e nos países nórdicos, todos adeptos do credo reformado, a partir da Reforma de Lutero.
Maior família musical da História, os Bach dominaram a cena durante perto de três séculos e forneceram ao todo cerca de 200 músicos. Johann Sebastian era filho e neto de músicos, bem como pai de vários profissionais. Acredita-se que seja o caso mais notório de estoque genético musical, inigualado por qualquer outro. Há quem veja nos Brueghel da pintura outro caso, mas não chegam nem perto em número de artistas.
A celebração dos 300 anos procedeu a um concerto que começou à luz do dia, como se faz todo verão Europa afora, e acabou com noite fechada, tocando exclusivamente Bach, na praça central de Leipzig, onde se ergue o belo Hôtel-de-Ville de época.
O concerto foi comandado por Lang Lang e orquestra, com alguns números de canto entremeados. Como o piano ainda não havia sido inventado ao tempo de Bach, as peças originais são para cravo e órgão, tendo Lang Lang se pautado por arranjos para piano. O que ele tocou? Algumas das Variações Goldberg, famosas pelas duas gravações do gênio do teclado Glenn Gould, que as registrou com um intervalo de um quarto de século. Quando for comprar preste atenção, se é a de 1956 ou a de 1981, um ano antes da morte do artista. De preferência, escolha uma gravação que contenha as duas.
Lang Lang, em repertório pouco imaginoso, tocou ainda as mais repisadas das peças de Bach, como o Largo, a Ária Para a Quarta Corda e Jesus Alegria dos Desejos Humanos. Esta última foi entusiasticamente cantada por toda a plateia, que recebeu um folheto com a letra – e é claro que todo alemão sabe cantar uma melodia tão popular… Não pude deixar de notar que, por um milagre de civilidade, nem um só celular foi iluminado, sequer brandido.
Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP
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