Filmes esquisitos
por Walnice Nogueira Galvão
Depois de ver o documentário Um filme de cinema, devo dizer que o filme é ótimo, não fosse a ausência quase total das mulheres – pois não há diretoras no país dignas de aparecer num filme como esse, não é? Não temos Ana Carolina, Anna Muylaert, Lucia Murat, Petra Costa, Sandra Kogut, Carla Camurati… para só falar das clássicas. E não fosse o maior sucesso cinematográfico de nossa história O ébrio, dirigido por uma mulher, Gilda de Abreu… Para completar, o filme apresenta uma cena em que fica parada na tela, para contemplação geral, uma paródia glabra da famosa pintura de Gustave Courbet hoje no Orsay, intitulada “A origem do mundo”.
Aparecem Cacá Diegues, Hector Babenco (que falou em ereção e masturbação infantil – eles ainda não perceberam que nem tudo gira em torno do falo), Karim Anouz, Julio Brassane, Ruy Guerra, Claudio Assis, Beto Brant, Zé Henrique Fonseca. Ariano Suassuna, para variar, contou casos. Para não dizer que não falaram de mulheres cineastas, lá estão a argentina Lucrecia Martel e Lais Bodansky defendendo nossas cores, com muita honra.
Mas passemos a mais filmes esquisitos.
Certamente o melhor filme que vi nos últimos 3 ou 4 anos é Blackbird Blackbird Blackberry (2023), Para começar, vem da Geórgia, o que não é muito comum. Mas esta é a história de uma mulher de 48 anos, narrada com sensibilidade e recato por outra mulher, a diretora Elene Naveriani. Dona de uma pequena venda, vê o entregador de mercadorias apaixonar-se por ela. Mas quando ele lhe pede para ir embora com ele, ela recusa e escolhe apegar-se a sua modesta vidinha.
Outro é Taste, filme sul-coreano dirigido por Le Bao, em que um nigeriano pretíssimo e 4 mulheres de meia-idade coreanas, completamente nus, e todos aparentemente escravizados, passam o tempo em rituais de limpeza e aspersão de água, num porão. Mais esquisito impossível. Muito bom, extraordinário mesmo, desde que você admita que se trata de um apólogo ou coisa parecida.
Os outros dois a mencionar são provenientes da Bulgária e do mesmo diretor, Ivaylo Hristov. O primeiro, Losers, trata de um grupo de jovens marginais, que vivem numa periferia miserável de uma pequena cidade miserável, e que se autointitulam losers, sabendo que suas vidas serão sempre péssimas e que não há temédio para sua situação. O outro é Medo, aqui exibido na 45ª. Mostra Internacional de São Paulo e representante de seu país no Oscar. Uma professora de meia-idade desempregada encontra um imigrante africano na floresta e toma conta dele, desafiando os tabus de seus concidadãos, que passam a hostiliza-la, pois o mínimo que desejam é expulsar o forasteiro e talvez linchá-lo. Um grande tema, de tremenda atualidade, quando se pensa quantos desses migrantes desesperados perdem a vida diariamente na travessia do Mediterrâneo. E a reflexão provém de um minúsculo país, enquanto os mais ricos e mais civilizados se comportam da pior maneira possível, e em caráter oficial. Grandioso. Uma fábula sobre intolerância.
Uma lufada de ar puro foi o surgimento dos filmes iranianos e chineses, décadas atrás. Depois foi a vez dos sul-coreanos e dos romenos. O que teriam em comum com estes filmes da Geórgia e da Bulgária, sem falar de mais um sul-coreano brilhante? Sim, marginais ou outsiders, são provenientes de antigas colônias e não do Centro Branco. Talvez derive daí o enfrentamento não só dos temas mas da forma-Hollywood
E talvez só impropriamente se possa dizer que esses filmes não se valem da forma-Hollywood. Veja-se o caso de Coringa, que é devastador mas se vale da forma já consagrada. Certamente é um filme esquisito, e dos que mais o sejam, ao mostrar como a sociedade procede à formação de um assassino em série pela sociedade. O acúmulo de desgraças causadas pelo sistema, que o esmaga, vai criando as condições para que sinta satisfação ao matar. Coisa que o espectador entende claramente, e fica até cogitando porque não há mais assassinos em série ou assassinatos coletivos… Mas Hollywood, confiada no sucesso do filme (até Leão de Ouro em Veneza), já produziu em continuação um musical (!) onde brilha Lady Gaga. E lá se foi o potencial crítico. Consta que é um desastre de público.
Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP
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