Cinco concepções de ciência, por Gustavo Gollo

Já se encontra em curso o transbordamento das ciências proféticas para campos tradicionalmente monopolizados pelas humanidades

Nossas concepções de mundo são modeladas fundamentalmente pelas palavras e usos que fazemos delas. A palavra “ciência” significava originalmente apenas conhecimento, como em “tomar ciência de algo”. Em séculos anteriores, no entanto, acabou por ganhar individualidade e imponência, tornando-se “A Ciência”, uma espécie de conhecimento grandioso, mais relevante que outros. A palavra passou então a receber diversas aplicações, passando a nomear atividades e construtos bastante diferenciados, embora camuflados e confundidos pela designação comum de um mesmo rótulo.

Atualmente, costuma ser ponto pacífico a existência de uma única Ciência dividida em múltiplas áreas, de modo que a física, a química e a biologia, por exemplo, são vistas como diferentes áreas de uma mesma manifestação geral: A Ciência. Sou contrário a essa ideia e acredito que a designação comum abriga diversidade tal que mereceria que se evidenciassem suas distinções. Também creio que não constituindo meramente áreas, mas modos de organização do conhecimento, as diferentes ciências estão em vias de se sobrepor, quando comporão enfoques distintos sobre os mesmos temas, embora mantendo-se virtualmente alheias umas às outras, da maneira descrita por Thomas Kuhn como resultado típico da diferenciação de paradigmas.

Do meu ponto de vista, 5 concepções muito distintas compõem hoje o grande saco de gatos que engloba o que nos vem à mente quando ouvimos a palavra “ciência”.

1. Ciências formais

A matemática e a lógica costumam ser pouco lembradas pelos epistemólogos – como são chamados os que tomam a ciência como objeto de estudo –, que mais frequentemente centram sua atenção nas ciências empíricas, deixando de lado as formais, essas duas.

O que distingue as ciências formais de outras é a característica de não tratar de fatos empíricos, mas de relações entre símbolos, de modo que os matemáticos não se valem nem de observações, nem de experiências realizadas em laboratórios para provar suas demonstrações. Apesar disso, ou, mais propriamente, por isso mesmo, são eles os únicos a, tecnicamente, provar suas conclusões.

O distanciamento da matemática e da lógica relativo a questões empíricas confere a essas ciências um perfil bastante distanciado das outras, parecendo já aceitável para a maioria considerá-las entidades autônomas diferenciadas da ciência, de um modo análogo ao que acontece com a filosofia, consensualmente aceita como atividade independente e distinta da ciência.

2. Ciências popperianas, ou proféticas

A física, e uns poucos desenvolvimentos tópicos em outras áreas, é estruturada da maneira descrita pelo método hipotético-dedutivo, que consiste na formulação de hipóteses a serem empiricamente testadas.

Penso que as grandes teorias físicas podem ser encaradas como livres concepções do espírito humano, análogas às criações musicais, ficções e manifestações artísticas em geral. O grande cientista comporta-se como um Deus imbuído da tarefa de criar mundos, ou como um compositor, ou ficcionista, ambos empenhados na criação de mundos.

Tendo engendrado uma teoria – como a mecânica de Newton, ou a relatividade de Einstein – o cientista a anuncia ao mundo para que aqueles que a recebem extraiam dela as profecias que consistirão em seus testes.

Ao contrário de profecias vãs, proferidas por profetas ordinários – desses que afirmam consultar os astros, ou crendices análogas –, as profecias científicas podem e devem ser refutáveis, lançando as teorias científicas a prova, distinguindo-as, assim, de outras.

Desse modo, foi uma profecia decorrente da teoria de Newton que resultou na inusitada descoberta de Netuno, astro até então desconhecido, cuja localização precisa foi prevista com base em considerações teóricas. Quero dizer, foi uma conclusão teórica realizada através de cálculos no papel, profetizada por um cientista teórico, sem o auxílio de observações, que sugeriu que os astrônomos direcionassem seus telescópios para o ponto exato onde encontraram o planeta profetizado. Insisto, grandes teorias precedem as observações que as sustentam.

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Outra profecia notável foi extraída da teoria da relatividade em 1919, levando uma equipe de astrônomos a se deslocar até Sobral, no Ceará, para, durante um eclipse, constatar a espantosa contração do espaço, manifestada através do deslocamento da posição das estrelas observadas nas proximidades do Sol durante o eclipse.

Atente!: Einstein profetizou a ocorrência de fenômenos absurdamente inusitados – como a contração do espaço e a dilatação do tempo, entre inúmeros outros augúrios igualmente notáveis –, baseado em sonhos e delírios estéticos, não tentando se equilibrar sobre experimentos, ou observações de qualquer tipo, que o intimidassem e tolhessem. Einstein deu completa vazão a seus êxtases estéticos, concebendo o mais belo mundo que sua mente conseguiu engendrar, como se compusesse, livremente, uma sinfonia. Sua obra maior, a teoria da relatividade, consistiu em uma livre criação teórica, posteriormente transformada em abundante fonte de inspirações proféticas que vêm sendo sucessivamente confirmadas a medida em que tecnologias suficientemente precisas vão sendo desenvolvidas.

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Fora do escopo tradicional da física, poucas teorias lograram alcançar o status de profecias, merecendo destaque a teoria da evolução especialmente sob a linhagem Darwin – von Neumann – Dawkins que acabou por desembocar no conceito de replicador enquanto entidade passível de gerar réplicas de si.

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Pode-se considerar a teoria proposta na referência acima, como um transbordamento da física para a biologia, consistindo no deslocamento do estilo profético de teorização, típico da física, para a biologia. Convém notar, além desse, a ocorrência do transbordamento da teoria dos replicadores para as ciências humanas em geral, destacadamente para a psicologia e a sociologia, evidenciando o transbordamento generalizante do método profético para todas as outras áreas, desenvolvimento, aliás, previsto por Darwin já em Sobre a origem das espécies.

3. Ciências normais, ou kuhnianas

Em seu best-seller, “A estrutura das revoluções científicas”, um dos textos mais citados pelos cientistas, Thomas Khun defendeu a existência daquilo que ele considerou a etapa mais comum no decorrer da atividade científica, um procedimento a que ele denominou “ciências normais”, em contraposição ao estágio científico denominado “ciência revolucionária” cuja dinâmica se assemelha à das ciências proféticas mencionadas acima.

Penso que aquilo que Khun denomina “ciências normais” corresponda a um enorme saco de gatos, e descreva com precisão a atividade de biólogos, geólogos e outros cientistas que empenham seu tempo em observações e experiências que os levam a exaustivas descrições.

Trata-se de uma atividade conservadora que não se coaduna com grandes voos teóricos como os pressupostos nas manifestações proféticas expostas acima. Cientistas normais tendem a ser fortemente avessos a mudanças, aferrando-se às teorias que seus mestres lhes ensinaram outrora, que acolhem como dogmas que impõem, de igual maneira, a seus próprios pupilos. Avessos às teorizações, aos raciocínios e elucubrações mentais típicas dos teóricos, cientistas normais aferram-se fortemente ao hábito, embasando na tradição todo o seu conhecimento. Trata-se do trabalho de formiguinha que consiste no dia a dia da quase totalidade dos profissionais da ciência, cujo resultado constitui o estofo da infinidade de publicações que inundam as revistas científicas.

A atividade foi, a meu ver, descrita com maestria por Khun, que a considera uma fase inerente e necessária ao desenvolvimento científico.

4. Ciências tecnológicas

A química, assim como sua prima, a biologia molecular, têm sido tradicionalmente enquadradas entre as ciências, embora tivessem sido mais propriamente alinhadas ao lado das engenharias, consistindo mais precisamente em tecnologias que em ciências.

A distinção entre essas duas atividades, ciência e tecnologia, costumava ser muito clara até um século atrás, quando a gula desenfreada por lucros permitiu que a tecnologia se apossasse do prestígio angariado anteriormente pela ciência, confundindo ambas as práticas.

Para discernir entre as duas, basta lembrar que, ao contrário da tecnologia, ciência não gera patentes, consistindo em conhecimento genérico, impossível de ser apoderado por um dono – a frase anterior é falsa; absurda, mas não justificavelmente, qualquer coisa pode ser usurpada por vilões suficientemente descarados para reivindicar sua posse, desde o ar que respiramos, a água que bebemos, o chão que pisamos, até o conhecimento, tudo. Ultimamente, os descarados têm se apossado da comida e das plantas, fazendo-nos temer que em breve todas as coisas terão um usurpador que se proclame seu dono, sustentado por sistemas legais e coercitivos que asseverarão despudoradamente a legitimidade de tais reivindicações.

Tecnologias correspondem a aplicações práticas das ciências e produzem resultados imediatos, na forma de bens tangíveis, palpáveis, que podem ser facilmente apossáveis e vendidos, propiciando lucros imediatos. O conhecimento científico corresponde ao conhecimento de base, necessário para o desenvolvimento tecnológico subsequente, mas que não se confunde com ele.

A ciência resulta na compreensão das coisas, abrindo caminho para o desenvolvimento de novas tecnologias com as quais produzem-se os bens que resultam diretamente em lucros.

A designação tradicional dada à física aplicada é engenharia, que abarca a tecnologia gerada a partir das profecias científicas. A mecânica quântica e a física molecular dão hoje certo respaldo à química, que se desenvolveu enquanto tecnologia independente, baseada em conhecimentos teóricos superficiais.

Penso que a química seria mais propriamente alinhada entre as tecnologias, ao lado das engenharias. A tradição, no entanto, atribui à química o status de ciência, justificando sua classificação enquanto ciência tecnológica.

A nanotecnologia não disfarçou sua natureza, evidenciando-a desde sua designação.

5. Ciências humanas

Outro imenso saco de gatos ao qual o rótulo de ciência tem sido atribuído, ao menos nominalmente, constitui as ciências humanas. Trata-se de um amplo conjunto de modos de descrição, bastante amorfo, variado e permissivo.

Postulo que o mundo seja aberto, consideração que sugere fortemente que construamos teorias tão magistrais e belas quanto nos seja possível, fazendo supor que o universo tradicionalmente englobado pelas ciências humanas constitua campo ideal para as teorizações; talvez o seja. Suspeito, no entanto, existirem marcadas diferenças entre os gostos usuais dos que se dedicam às ciências humanas tradicionais e os dos profetas científicos. Creio que tais diferenças manifestem-se de forma análoga àquelas que se apresentam entre os ouvintes de variados gêneros musicais, cuja determinação decorre fundamentalmente do hábito. Ouvintes fieis de rock, samba, ou música clássica que se dediquem à audição exclusiva de apenas um gênero musical cultivam um único gosto, e tendem a se manter refratários às outras manifestações musicais, que não lhes sensibilizam. Do mesmo modo, cientistas humanos e profetas científicos tendem fortemente a manifestar gostos muito diversos, talvez apenas em decorrência do hábito. Cientistas humanos tendem a valorizar o que pode ser descrito como visões poéticas, certo lirismo típico das humanidades. Profetas científicos, em contraposição, parecem mais afeitos a um ribombar de formato romântico, tonitruante.

A diferença mais acentuada entre esse tipo de teorização e o profético, caracterizado em 2, acima, consiste na não exigência da necessidade de extração de predições refutáveis das teorias que constituem as humanidades.

Já se encontra em curso o transbordamento das ciências proféticas para campos tradicionalmente monopolizados pelas humanidades. É provável que as duas práticas coexistam por longo tempo sem a ocorrência simultânea de intercâmbio significativo entre os diferentes paradigmas.

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Penso que as 5 concepções de ciência explicitadas acima distinguem-se de maneira suficientemente marcada para que sejam caracterizadas por rótulos distintos. Ganhariam, com isso, os cientistas, por descortinar, aos olhos de especialistas, práticas extremamente profícuas eventualmente desconhecidas por eles, especialmente a prática da teorização profética característica de 2, acima.

A distinção propiciaria também aos epistemólogos a visão imediata das distinções acima descritas, eliminando de imediato algumas das nebulosidades que os vêm confundindo há décadas.

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Gustavo Gollo é multicientista, multiartista, filósofo e profeta

Redação

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