Michel Aires
Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.
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Coringa e o mal-estar na civilização, por Michel Aires de Souza Dias

Coringa é a imagem simbólica de uma totalidade socialmente culpada, que enclausura o indivíduo em uma realidade cada vez mais opressiva

Coringa e o mal-estar na civilização

por Michel Aires de Souza Dias

O filme Coringa se passa na distópica cidade de Gotham City, onde uma grande parte de seus habitantes vive em condições de extremo mal-estar, opressão e desemprego. Ela poderia representar qualquer grande metrópole de hoje, infestadas de ratos, com milhares de mendigos e um exército de desempregados. O personagem principal Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) também poderia representar um desses milhares de indivíduos no limite, que são explorados e oprimidos por um trabalho precarizado em uma grande cidade do mundo capitalista. Arthur Fleck trabalha como palhaço em uma agência de entretenimento e toda semana é obrigado a conversar com uma assistente social, devido aos seus problemas mentais. Ele sofre de epilepsia gelástica, é um tipo de convulsão que o leva a dar risadas compulsivamente. Também possui um tipo de doença mental não especificada, que o leva da euforia à depressão: “Só o que eu tenho são pensamentos negativos”, diz ele à assistente social. Os problemas mentais do Fleck estão ligados ao seu passado traumático e a uma vida de violência, de privações e frustração.  Para controlar seus sintomas, toma sete diferentes tipos de remédio. Mas, devido uma existência solitária e angustiada, sem o amparo de ninguém, os remédios pouco surtem efeito. Após ser demitido, ele chega ao seu limite. Ao presenciar o assédio de três jovens de classe média a uma moça no trem, a partir de uma crise de ansiedade, ele começa a dar risadas involuntariamente. Os jovens tomam sua risada como uma afronta e começam a espancá-lo. Fleck reage puxando uma arma do bolso e os mata a sangue frio. Os assassinatos dão início a uma onda de violência contra a burguesia de Gotham City, da qual Thomas Wayne (Brett Cullen) é seu maior representante. Surge a partir desse trágico episódio a figura do Coringa.  

Coringa é a imagem simbólica de uma totalidade socialmente culpada, que enclausura o indivíduo em uma realidade cada vez mais opressiva. É a crua realidade reificada que produz a desumanidade. Todo drama, frustração e angústia interior de Fleck são consequência de uma infância perturbada, onde ele se tornou objeto de violência.  Adorno em Mínima Moralia avaliou que “a deformação não é uma doença sofrida pelo homem e sim a doença da sociedade” (ADORNO, 2008, p. 147). No decorrer do filme, ao ler uma carta escrita por sua mãe, Penny, ao então bilionário Thomas Wayne, o protagonista descobre que seria filho dele. Mas, sua mãe, por ser empregada doméstica em sua casa, não poderia se relacionar com o empresário. Nas próprias palavras dela: “ele disse que seria melhor não ficarmos juntos pelas aparências”. O que está por trás de toda a história do filme são as relações humanas reificadas e o conflito de classes, que condenaran Fleck a uma infância de privação, sofrimento e violência.  Um dos namorados de Penny não só a espancava, mas também surrava seu filho constantemente. Quando a polícia o encontrou, ele estava amarrado no apartamento em um radiador, desnutrido, com múltiplas escoriações pelo corpo e com um trauma severo na cabeça. 

O sofrimento de Fleck é agravado pela enorme pressão social. Na sociedade capitalista, tal como na ficcional Gotham City, a organização econômica da realidade obriga a maioria das pessoas a depender de situações dadas em relação as quais são impotentes, bem como as impede de desenvolverem sua liberdade e autonomia. Os indivíduos são dessubjetivado para se adaptarem à realidade. Fleck vivia de um trabalho subalterno, ganhava pouco e tinha que sustentar sua mãe. Em seu emprego sofria enorme pressão de seu patrão e era vítima de violência nas ruas. Em uma das cenas, ao trabalhar vestido de palhaço no centro da cidade, fazendo propaganda de uma loja, tem sua placa roubada por alguns jovens. Ao correr atrás dos mesmos para recuperá-la é brutalmente espancado.  O Estado também o desampara ao fechar o departamento que o atende, para tratar sua doença mental. Esse é outro fator de injustiça social contra Fleck, pois dificulta sua vida e leva a agravar ainda mais sua doença.  

A vida miserável de Fleck pode ser comparada ao de um lumpemproletariado. No século XIX, Marx (2011) já havia observado na classe trabalhadora um conjunto de indivíduos propensos a criminalidade. Ele denominou de lupemproletariado a parcela degradada e desprezível do proletariado. Eram vagabundos, ladrões, jogadores, mendigos, alcaguetes, prostitutas e todos arruinados (rouéis) com duvidosos meios de vida.  Foram esses apartados da vida social que deram origem ao moderno criminoso na sociedade de massas. Hoje, no auge do capitalismo flexível, onde o trabalho está cada vez mais precarizado e a informalidade atinge uma grande parcela da população, o lupemproletariado pode se tornar uma novo grupo social nas sociedades modernas. Fleck se aproxima dessa camada da população, pois possuía um emprego informal, que não possibilitava uma existência digna e estima social.  Ele vive em condições degradantes de trabalho. Seu emprego é apenas um bico, pois seu maior sonho é ser um comediante de “Standup”. Mas, no decorrer do filme, fica claro que ele não tinha nenhum talento ou formação para isso. A insatisfação e a frustração são as condições de sua existência. Em razão disso, a violência surge como uma resposta a esse grande mal-estar na civilização. 

A sobrevivência do indivíduo depende de sua capacidade de adaptação as pressões que a sociedade exerce sobre ele. Para sobreviver, ele deve se transformar em um mecanismo que deve reagir à realidade de maneira mais apropriada às situações desconcertantes e difíceis que compõe a sua vida. Todo indivíduo deve estar pronto para enfrentar qualquer situação e deve se ajustar as exigências da realidade. É desse modo que o indivíduo se constrói socialmente como sujeito adaptado. Mas Fleck possuía um ego fragilizado, ele não possuía capacidade de se adaptar. Toda sua vida foi determinada pela brutalidade e por uma atmosfera de opressão. Ele não tinha condições psicológica e nem apoio familiar ou do Estado para se impor na realidade. Todo seu comportamento era determinado pela pulsão de morte. Segundo Adorno e Horkheimer (1985), a energia necessária para se destacar no mundo e, ao mesmo tempo, para estabelecer uma ligação com ele, através das formas de comunicação autorizada, e assim nele se afirmar estão corroído no criminoso: “A tendência a perder-se em vez de impor-se ativamente no meio ambiente, a propensão a se largar, a regredir a natureza. Freud denominou de pulsão de morte” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 187). Em certo sentido Fleck é a imagem da regressão da natureza como pulsão de morte. Seus impulsos destrutivos liberados decorrem da crueldade, exploração e maus tratos que a sociedade lhe impôs. Desse modo, a violência é uma produção social, uma vez que as desigualdades, as condições precárias de existência e as injustiças sociais são fatores de grande mal-estar e de estresse mental.

O filme Coringa nos leva a refletir sobre a condição existencial do homem na sociedade capitalista. Em uma época em que o espírito da reificação se instalou em todos os âmbitos da existência humana, as condições objetivas para a violência, a criminalidade e a barbárie se tornaram presentes em nossa cultura.  O triunfo do capital representa o triunfo de uma realidade que se confronta com o indivíduo como algo absoluto e esmagador. Esse caráter repressivo do capital, que transforma o corpo em um instrumento de produção, gera um grande mal-estar, que tem como resultado a violência contra o mundo civilizado. Freud no início do século XX já nos alertava de um modo essencialmente psicológico a tendência a barbárie, mostrando que por intermédio da cultura as pessoas continuamente experimentam fracassos, desenvolvendo sentimentos de culpa subjacentes que acabam se traduzindo em agressão (ADORNO, 1995). Por causa disso, sujeitos como Fleck surgem todos os dias para assombrar e aterrorizar o mundo em que vivemos.   

Michel Aires de Souza Dias –  Doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo. Membro do grupo de estudos sobre “Educação, Filosofia, Engajamento e Emancipação”, vinculado à FEUSP e ao CNPQ. E-mail: [email protected]

 Referências

 

ADORNO, Theodor. Minima Moralia: reflexões da vida lesada. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008. 

ADORNO, Theodor W. Educação contra a barbárie. In: ADORNO, Theodor. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

MARX, K. 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.

Michel Aires

Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.

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