D’Ancona e a negação plausível, por Fábio de Oliveira Ribeiro

D’Ancona e a negação plausível, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Aqui mesmo no GGN publiquei a resenha a obra Pós-Verdade – A nova guerra contra os fatos em tempos de Fake News, Matthew D’Ancona, Faro Editorial, São Paulo, 2018. Volto ao assunto para fazer uma crítica ao trabalho do autor.

O livro faz referências aos antecedentes ideológicos, filosóficos e econômicos da pós-verdade. Mas ele deixou de abordar um aspecto importante: os antecedentes políticos do fenômeno. Refiro-me, obviamente, à deliberada disseminação de informação falsa como instrumento de guerra híbrida e de desestabilização política de governos estrangeiros.

A campanha que levou à deposição de Mosaddegh foi um caso típico de emprego político-diplomático da pós-verdade. O governo dos EUA deliberadamente fomentou e financiou a construção de um cenário político em que o governo laico nacionalista iraniano, que havia nacionalizado o petróleo afetando de maneira negativa os interesses das petrolíferas norte-americanas, deveria ser substituído porque lhe faltava legitimidade. O sucesso do golpe de estado no Irã estabeleceu as bases para todas as operações da CIA desde então.

O mesmo padrão foi repetido de novo e de novo na Guatelama (1954), Haiti (1959), Brasil (1964), Uruguai (1969), Bolívia (1971), Chile (1973), Argentina (1976), El Salvador (1980), Panamá (1989), Peru (1990). A suspeita de que a CIA também ajudou a organizar os golpes de estado disfarçados de processo de impedimento no Paraguai (2012) e no Brasil (2016) são inevitáveis, inclusive porque a mesma diplomata estava representando os EUA nos dois países no momento em que Fernando Lugo e Dilma Rousseff começaram a ser intensamente desacreditados através de campanhas de fake news.

A eleição de Donald Trump, como Matthew D’Ancona deixa bem claro no livro Pós-Verdade – A nova guerra contra os fatos em tempos de Fake News, somente se tornou uma realidade em razão de uma campanha de fake news num ambiente social e político propício ao império da pós-verdade. Portanto, guardadas as devidas proporções esse fenômeno pode ser considerado muito semelhante às operações de guerra híbrida orquestradas pela CIA para depor governos indesejados pela Casa Branca. O feitiço se virou contra o feiticeiro. Controlar de maneira sutil a imprensa privada de um país estrangeiro para utilizá-la como arma de destruição em massa da credibilidade de um governo é algo relativamente simples (o dinheiro dos anunciantes quase sempre compra a linha da casa). Controlar a internet é algo impossível. A desnecessidade de violência extrema durante o golpe de estado disfarçado de eleições que levou Trump ao poder não chega a ser um fato muito relevante. Em vários golpes orquestrados pela CIA isso não foi necessário.

D’Ancona não chega a tocar neste assunto. Ele é explosivo demais e seria facilmente desacreditado como uma teoria da conspiração. Isso além de ofender profundamente a autoestima dos leitores norte-americanos, que de arquitetos de repúblicas de bananas durante quase um século haveriam se tornado bananas podres numa república da pós-verdade.  

Outro aspecto interessante que o autor de Pós-Verdade – A nova guerra contra os fatos em tempos de Fake News não aborda de maneira específica é a utilização do discurso jurídico pelos inventores de campanhas para desacreditar a ciência. A “plausible deniability, um conceito importante dos operadores do Direito nos EUA.

“In the US, plausible deniability is also a legal concept. It refers to lack of evidence proving an allegation. Standards of proof vary in civil and criminal cases. In civil cases, the standard of proof is “preponderance of the evidence” whereas in a criminal matter, the standard is “beyond a reasonable doubt”. If an opponent cannot provide evidence for his allegation, one can plausibly deny the allegation even though it may be true.”

Tradução:

“Nos EUA, a negação plausível é também um conceito legal. Refere-se à falta de provas que comprovem uma alegação. Padrões de prova variam em casos civis e criminais. Em casos civis, o padrão de prova é “preponderância da evidência”, enquanto que em um assunto criminal, o padrão é “além de uma dúvida razoável”. Se um oponente não puder fornecer provas de sua alegação, pode-se negar a alegação, mesmo que possa ser verdade.”

Não por acaso, o próprio artigo da Wikipedia informa o respeitável público que o conceito de “plausible deniability também tem sido utilizado para fins de preservar os oficiais da CIA que realizam atividades impopulares, ilegais e até criminosas. O uso desse conceito é bem claro na descrição que o autor deu da campanha orquestrada pela indústria de tabaco na década de 1950 para desacreditar as provas científicas de que o fumo poderia ser associado ao câncer de pulmão. O mesmo conceito tem sido utilizado contra os cientistas que demonstraram uma ligação de causa e efeito entre o uso de derivados de petróleo e o aquecimento global.

Na gênese da crise política, institucional e jurídica em que os países ocidentais se meteram (seja com a eleição de Trump nos EUA, na Inglaterra com a vitória do Brexit ou no Brasil com a deposição de Dilma Rousseff através de um processo fraudulento) está a universalização do uso de um conceito jurídico. No processo, a “plausible deniability é incapaz de causar muito dano, pois o processo será decidido invariavelmente com base nas provas. No mundo político, porém, não existem decisões definitivas. Tudo é instável e negociável, exceto os padrões constitucionais que definem as regras do jogo.

A pós-verdade mudou isso. Não existem mais regras do jogo. Os regimes constitucionais estão definitivamente mortos. Vivemos sob os escombros de um mundo racionalmente construído. O que nós chamamos de constituição dos EUA ou constituição brasileira são apenas simulacros, pois os princípios que elas definem para estabilizar o mundo político se tornaram eles mesmos tão sólidos que desmancham no ar em razão da “plausible deniability”.

O desejo neurótico dos líderes norte-americanos de manter a negação plausível no centro das atividades políticas, econômicas e diplomáticas do império, dentro e fora dele, explica o ódio irrefreável que alguns deles devotam a Julian Assange. Ao expor os documentos secretos que provam como os agentes imperiais dos EUA realmente agem, o fundador do Wikileaks impediu-os de recorrer a “plausible deniability para garantir sua impunidade.

 

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

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