Conexões – espiritualidade, política e educação - Dora Incontri
Dora Incontri é paulistana, nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora
[email protected]

Devemos falar de um suicídio? O caso de Flávio Migliaccio. Por Dora Incontri

Quem procura a morte está no extremo do sofrimento físico ou psíquico, no total desespero, na sensação absoluta de vazio. Por isso, não temos o direito nem de julgar, nem de aplaudir quem se suicida.

Devemos falar de um suicídio? O caso de Flávio Migliaccio

Por Dora Incontri

Na semana passada, entre tantas notícias tristes e comoções nacionais e internacionais, tivemos o suicídio do ator Flávio Migliaccio, amplamente divulgado e comentado em todas as mídias e redes sociais. Há muitas questões que se levantam a partir de um fato como esse que nos arranca do eixo e nos deixa perplexos (claro, para aqueles que se importam com as vidas humanas e não são sociopatas!). Entre essas questões estão as que se conectam com o sentido da vida e da morte e se a opção do suicídio é mesmo uma opção válida; se podemos compreender e apoiar, se devemos julgar e condenar, se podemos nos manter indiferentes ou se corremos o risco de sermos contagiados… Ainda, se devemos falar sobre o tema ou não, com receio de que a propagação de um ato de suicídio deflagre outros suicídios…

Advogo a tese de que sim, devemos falar sobre o assunto, porque nenhum assunto pode ser tabu e todos os temas que nos afligem devem encontrar meios de expressão e debate que nos esclareçam e que nos ajudem a pensar. Mas, sim, é preciso tomar cuidado em como falar, em como noticiar, em como divulgar, porque existe o efeito Werther (o termo vem da época do Romantismo alemão, quando o poeta Goethe publicou o romance  Os sofrimentos do jovem Werther,  onde o herói do drama se suicidava ao final. Isso teria deflagrado uma onda de suicídios na Europa. Há outras obras literárias e mesmo dramas musicais que estetizam o suicídio: lembro-me logo da ópera Madame Batterfly de Puccini e de Romeu e Julieta de Shakespeare. Numa escola em que trabalhei, depois de minha saída, os adolescentes encenaram Romeu e Julieta  (talvez sem um debate adequado) e logo depois houve ali um suicídio de uma adolescente.

Há algo que pode atrair no suicídio, como uma solução, como um final bem feito, um ciclo voluntariamente acabado. Para Freud, todos temos uma pulsão de morte, que pode num dado momento vencer a pulsão de vida. Mas a verdade é que ninguém quer morrer, o instinto de sobrevivência é potentíssimo. Os que sobrevivem a uma tentativa frustrada de suicídio costumam dizer que, assim que tinham acabado de praticar o gesto, já estavam arrependidos. Quem procura a morte está no extremo do sofrimento físico ou psíquico, no total desespero, na sensação absoluta de vazio. Por isso, não temos o direito nem de julgar, nem de aplaudir quem se suicida. Podemos lamentar, chorar, compadecermo-nos, pensando que aquela pessoa não conseguiu achar motivos para continuar vivendo, que não recebeu talvez apoio suficiente, que estava numa profunda depressão e não teve ou não quis o tratamento adequado…

Então, nem podemos louvar o suicídio como um ato de coragem (embora certas tradições culturais assim o façam) e nem julgar o suicida como um desertor, como um fracassado ou, um criminoso, como muitas tradições religiosas afirmam.

O suicida é alguém que não deu conta de superar com vida a tempestade que estava atravessando e merece nossa solidariedade e todas as orações de quem acredita que a vibração da prece possa aliviar as almas ainda em sofrimento.

O que não se deve fazer é explorar a notícia do suicídio com sensacionalismo, com detalhes dispensáveis ou, como fizeram os policiais que descobriram o corpo de Flávio, que divulgaram criminosamente nas redes sociais a fotografia da cena que encontraram. Isso é vilipendiar, desonrar, desrespeitar o morto e a sua família. Mas, sim, pode-se noticiar, debater e lamentar.

Nesse caso, segundo a própria carta que ele deixou, o suicídio teve também um caráter político, como bem compreendeu Lima Duarte, cujo vídeo emocionou muita gente. Embora eu tenha discordado num ponto das palavras fortes do grande ator: “não tenho a coragem de fazer o que você fez”, como que referendando o gesto, que ele também gostaria de seguir, mas não o faz porque não possui a coragem do outro. Eu diria justamente o contrário: coragem maior é continuar vivendo nesse mundo tão complexo e nesse Brasil tão absurdo. Mas a própria fala de Lima Duarte nos dá a dimensão do porquê seria melhor que Flávio não tivesse se suicidado: Lima Duarte está aí, dando sua mensagem às novas gerações, sendo uma testemunha viva, histórica de um passado recente e que é necessário que todos conheçam, ainda mais porque muitos querem relativizá-lo ou apagá-lo. Então, estar vivo, aqui nesse mundo, apesar do custo de sofrimento, sempre pode resultar na utilidade de uma palavra, de um discurso, de um exemplo, de uma superação que se mostra e que sustenta. E continuar viver até onde pudermos sempre vai confortar os familiares, os amigos, os que estão próximos, enquanto que o suicídio provoca um luto devastador nos que ficam. Por isso, lamentamos, sem julgar, o ato de Flávio Migliaccio, mas lamentamos sobretudo pela perda de uma voz que poderia ainda nos ter ajudado. Lamentamos sobretudo por uma pessoa que não conseguiu superar o desespero. Lamentamos ainda mais porque a sociedade desmantelada em direitos, em acolhimento e em justiça em que vivemos pode atingir profundamente as almas sensíveis, destruindo sua vontade de viver.

Tudo é motivo de lamento, nada de indiferença, nada de condenação.

Para a visão espírita, o suicídio é inútil como tentativa de acabar com o sofrimento. A vida continua sempre e se morremos desesperados, acordaremos desesperados do lado de lá. Se não conseguimos nos recompor por aqui, teremos que fazer esse trabalho por lá, com o acréscimo muitas vezes da dor de termos causado a dor dos que ficaram. Mas teremos sempre a eternidade a nosso favor.

Conexões – espiritualidade, política e educação - Dora Incontri

Dora Incontri é paulistana, nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora

4 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Dora, seu sobrenome italiano é bem coerente com seu jeito de pensar: ALGUÉM QUE PREZA O ENCONTRO, QUE VAI AO ENCONTRO, QUE COLOCA SUA PALAVRA A SERVIÇO DO ENCONTRO… E tudo isso, no plural.
    fiquei profundamente tocado por sua capacidade de compreender um drama humano desse porte e com essas consequências. Vou salvar esse artigo como uma página antológica, profundamente esclarecedora e – o que é melhor – questionadora, sobre o suicídio, seus motivos e suas implicações. Muito agradecido.

  2. Não devemos julgar os suicidas, pois somente a pessoa que o comete sabe a dor e o sofrimento que o acomete. A visão espírita está longe de ser a correta, uma vez que não podemos julgar o ser humano por um único ato. A visão espírita está eivada, infelizmente, dos preconceitos herdados do cristianismo. A vida é um grande laboratório, e estamos nela como aprendizes. E o suicídio é apenas uma das muitas experiências possíveis.

  3. Concordo em tudo, inclusive no ponto sobre Lima Duarte. Só não teria citado que há fotos dele, porque embora gere perplexidade e repulsa a muitos, gera curiosidade a outros

  4. Excelente artigo: opiniões equilibradas, palavras amorosas, espírito cristão ao longo do texto e esperança de uma nova vida. Estou integralmente alinhado com o seu pensamento, Dora.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador