Do golpe à lona: o melancólico fim da Lava Jato, por Tiago Muniz Cavalcanti 

Se a Lava Jato já havia cumprido seu papel, sofria derrotas no Supremo Tribunal Federal e suas atividades esmoeciam, Sérgio Moro perdia espaço e voz no governo.

do Coletivo Transforma MP

Do golpe à lona: o melancólico fim da Lava Jato

por Tiago Muniz Cavalcanti 

A história da Lava Jato é a história da ruptura da democracia brasileira. Não é possível analisá-las separadamente, como acontecimentos estanques e desconectados: foi a operação o principal personagem da quebra do regime democrático, da escalada do autoritarismo e da guinada à extrema direita no País. Hoje, cumprida sua (acaçapada, porém insuspeita) função, avizinha-se um desfecho melancólico.

A Lava Jato foi constituída em 2014, ano das eleições presidenciais e do início do arranjo golpista. Àquela altura, o governo sofria clamorosas contestações nas ruas, iniciadas no ano anterior com as manifestações de junho. Era, de fato, um momento bastante propício para o crescimento dos partidos de direita e o ressurgimento do conservadorismo moral.

Apesar do cenário adverso, Dilma se reelegeu para um segundo mandato numa eleição apertadíssima. O resultado, no entanto, foi rejeitado pela oposição. Não há dúvidas de que o plano já estava traçado: se perdessem nas urnas, dariam início à tentativa de levar no tapetão. E foi assim.

Aécio Neves, candidato derrotado, e seu partido, o PSDB, inconformados com o resultado do pleito, solicitaram auditoria especial e recontagem dos votos, pedidos negados pela Justiça Eleitoral. Em seguida, tentaram impedir a diplomação da presidenta eleita, sem sucesso. Em março de 2015, pouco após o início do segundo mandato, chegaram ao presidente da Câmara dos Deputados os primeiros pedidos de impeachment.

Como se sabe, os pleitos não se baseavam em prática de corrupção. Apoiavam-se em duas acusações que supostamente poderiam caracterizar crimes de responsabilidade: o atraso no pagamento a instituições financeiras de despesas que financiavam programas sociais, o que se denominou “pedalada fiscal”, e a edição de decretos que resultaram na abertura de créditos suplementares, alegadamente sem a autorização do Congresso Nacional. Num país marcado pela corrupção, as razões do impedimento eram claros subterfúgios ao conluio que ocorria nas surdinas.

O cenário de crise política foi capaz de agravar a crise econômica. Ao tempo em que a base parlamentar governista se dissolveu, a oposição cresceu e passou a ditar a agenda legislativa. Mediante as denominadas pautas-bombas, por meio das quais aumentavam gastos públicos e reduziam receitas estatais, a oposição cuidou de agravar, ainda mais, a crise econômica e a recessão. Os superávits deram lugar aos déficits na balança comercial. Austeridade, aumento do desemprego e descumprimento de promessas de campanha implicaram uma queda vertiginosa de popularidade.

Foi nesse momento que entrou em cena a Lava Jato. Não bastasse o cenário político turbulento, o noticiário policial passou a atingir fortemente o núcleo-duro do governo com a explosão do escândalo do “petrolão”, um esquema que já era operado sob governos anteriores na Petrobras mas que vinha até então sendo mantido eficientemente na surdina.

A Lava Jato ditou a narrativa do golpe. Por meio de prisões preventivas, vazamentos de escutas telefônicas e conduções coercitivas transmitidas ao vivo em rede nacional, a operação acusava o Partido dos Trabalhadores de ser uma “organização criminosa” chefiada pelo ex-presidente Lula. Com o apoio incondicional prestado pela grande mídia, a espetacularização punitivista contra o partido e seus dirigentes foi capaz de criar um sentimento anticorrupção e antipetista em grande parte da população, sobretudo na classe média, que foi às ruas pedir o impeachment.

No meio dessa fissura política, Dilma nomeou Lula para Ministro Chefe da Casa Civil, numa tentativa de livrá-lo das perseguições lavajatistas e, ademais, de angariar o apoio do ex-presidente, cujo poder de articulação política poderia ser bastante útil para atenuar os efeitos da crise democrática. Antes da posse, no entanto, o juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba, Sérgio Moro, usando a mídia em seu favor, autorizou o vazamento de um grampo telefônico ilegal em que Dilma e Lula conversavam sobre a posse. Muito embora tenha infringido a Constituição Federal e a Lei de Interceptações Telefônicas (Lei nº 9.296/1996), o juiz pediu “escusas” ao Supremo Tribunal Federal e não recebeu qualquer punição.

Apesar de ilegal, o vazamento surtiu o efeito desejado. O áudio foi reproduzido dezenas de vezes pela grande mídia, em horário nobre, gerando uma enorme comoção social. O Supremo Tribunal Federal, ouvindo o clamor das ruas, vetou a nomeação de Lula para o cargo. O episódio representava uma vitória da Lava Jato, e uma duríssima derrota política do governo, a esta altura já bastante fragilizado.

O impedimento tornava-se cada dia mais factível. Aproximava-se mais um golpe na histórica tradição brasileira de conluios ardilosos praticados pelas classes dominantes, que já haviam “assassinado” Getulio Vargas e derrubado João Goulart. Consumou-se, assim, um golpe protofascista que suspendeu a normalidade institucional e colocou a democracia brasileira de joelhos.

Mas a história da Lava Jato e da ruptura da democracia brasileira ainda teria outros capítulos. O ressentimento voraz antipetista e a demonização da atividade político-partidária, legados lavajatistas, foram os principais ingredientes para a eleição vitoriosa de Jair Bolsonaro, um “outsider” que, paradoxalmente, estava imerso na política nacional por quase 30 anos como deputado federal.

Cumprindo promessas de campanha, o novo governo passou a aplicar um verdadeiro manual antipolítico: liberou a posse de armas de fogo, contingenciou orçamentos de universidades públicas, retirou radares de velocidade das estradas, transferiu a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura (historicamente capturado pelo ruralismo), propôs abstinência sexual para adolescentes, modificou a distribuição das verbas publicitárias do governo para favorecer mídias ideológicas, afirmou que o nazismo é um movimento de esquerda e pretendeu indicar o filho do presidente para o cargo de embaixador do Brasil nos Estados Unidos.

Com um perfil autoritário e um ministério majoritariamente militarizado, o governo entrou em tensão com instituições e poderes. Apoiou manifestações violentas que pregavam o fechamento do Parlamento, esbravejou contra Ministros do Supremo Tribunal Federal, perseguiu e exonerou servidores, elaborou dossiês contra professores, interferiu e modificou o alto escalão da Polícia Federal, tentou esconder informações e dados públicos. Flertou com a ditadura.

A aliança com o lavajatismo, evidente antes mesmo das eleições, foi coroada com a entrega da pasta da Justiça e Segurança Pública ao condecorado ex-juiz Sérgio Moro, que abrira mão da toga para aventurar-se na política, logo após ter sido responsável pela condenação do principal oponente nas eleições.

Pouco depois da formalização da união, a Intercept Brasil passou a fazer graves revelações de comportamentos antiéticos, transgressões processuais e interesses políticos da força-tarefa. De acordo com a série de reportagens, mensagens privadas trocadas entre seus integrantes e o Juiz Sérgio Moro deixavam claro que a Lava Jato:

  • tramava em segredo para impedir entrevista de Lula antes das eleições por medo de que ajudasse a ‘eleger o Haddad’;
  • duvidava das provas contra Lula e de propina da Petrobras horas antes da denúncia do triplex;
  • fingiu investigar FHC apenas para criar uma percepção pública de ‘imparcialidade’;
  • usou o Vem Pra Rua e o instituto Mude como lobistas para pressionar STF e governo;
  • usava chats para pedir dados fiscais sigilosos sem autorização judicial ao atual chefe do Coaf;
  • vazou informações das investigações para a imprensa;
  • usou denúncia do sítio contra Lula para distrair o público da crise com Temer e Janot e proteger procuradores.

As gravíssimas revelações da Intercept não foram capazes, no entanto, de desestabilizar a união entre governo e lavajatismo. Nem mesmo as frequentes notícias de corrupção na alta cúpula do governo e o intencional enfraquecimento de órgãos fiscalizadores, como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), a Controladoria-Geral da União e a Polícia Federal, ameaçavam o íntimo vínculo, que se mantinha incólume.

Mas o casamento não durou muito. Se a Lava Jato já havia cumprido seu papel, sofria derrotas no Supremo Tribunal Federal e suas atividades esmoeciam, Sérgio Moro perdia espaço e voz no governo.

A operação se fragilizava e perdia capital político. Nesse momento, Moro abandonou o governo sob pretextos de interferência política em sua atividade ministerial e na Polícia Federal, um claro subterfúgio para descolar-se da imagem do presidente e possibilitar a construção de pretensões políticas autônomas.

Pouco depois, a Lava Jato entrou em rota de colisão com o chefe do Ministério Público da União. O líder da força-tarefa em Curitiba abandonou seu cargo. Pedidos de demissão coletiva de outros integrantes da operação ocorreram em São Paulo e Brasília. E, assim, depois de se aliar ao conservadorismo político, fomentar a cultura punitivista, causar danos à Petrobras, alavancar a ideologia da extrema direita e ajudar a fazer emergir e eleger o bolsonarismo, a operação sucumbiu.

O fim da Lava Jato, nada ironicamente, veio pelas mãos de antigos aliados. Daqueles que dizem ter acabado com a corrupção, mas que estão com as roupas íntimas cheias de dinheiro. Assim como a democracia brasileira que ajudou a assassinar, a operação teve vida curta e faleceu melancolicamente.

Tiago Muniz Cavalcanti – Procurador do Trabalho e membro do Coletivo MP Transforma

Redação

3 Comentários

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  1. Se considerarmos a lava jato um projeto, podemos dizer que ela foi um sucesso.
    Foi um esforço temporário para produzir um resultado final exclusivo (tirar o PT do poder).
    Cumpriu o objetivo, agora deve ser encerrado.

  2. Mineirinho disse td.
    Lava jato tinha um objetivo. Uma missão.
    Alcançou o objetivo. Cumpriu a missão.
    Td bem: os rapazes não sairam de mãos abanando. Ganharam mt grana com viagens e diárias. E tb com palestras. Ademais, não seria incoerente supor q, naquele tempo, eram muitos os convites q recebiam para jantar de graça em renomados restaurantes da elite. E q poderiam almoçar nas melhores churrascarias sem ter q pagar.
    Os caras tinham status de heróis da nação. Sr. e sra. Smith. O dr. X determinou isso. Amém! O dr. Y estará presente em tal evento. Será ótimo!
    Meu Deus, foram anos de chumbo!

  3. eles ainda não encerraram a suja a jato porque ainda existe o risco lula/pt que não foram totalmente destruidos conforme determinação do amigão trump

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