Graciliano Ramos e o Brasil de hoje: «Memórias do Cárcere», por Franklin Frederick

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
[email protected]

Graciliano Ramos e o Brasil de hoje: «Memórias do Cárcere»

por Franklin Frederick

«Mas não vivemos em tempo ordinário (…). Cada indivíduo se julga com o direito de ensinar qualquer coisa, surgem apóstolos de todos os feitios, sumiu-se o ridículo e o mundo se vai tornando inabitável».

Graciliano Ramos, Linhas Tortas

Graciliano Ramos foi a vítima mais célebre da repressão do Governo Vargas. Foi preso em Maceió no dia 3 de março de 1936, permanecendo detido sem acusação formal até o dia 13 de janeiro de 1937. Sobre este período escreveu «Memórias do Cárcere», publicado pouco depois de sua morte, faltando um capítulo que ele não teve tempo de terminar. Relendo-o hoje, percebo que mais do que uma grande obra literária e um documento fundamental sobre aquela época, «Memórias do Cárcere» é uma obra profética: fala do Brasil de hoje e do que ainda está por vir. Isto porque nesta obra Gracialiano Ramos analisou e descreveu com clareza e profundidade um conjunto de mecanismos, comportamentos e atitudes que dominaram grande parte da sociedade e das instituições do Brasil naquele período. Passada a repressão, porém, este conjunto não desapareceu, apenas submergiu. E no Brasil de hoje volta à superfície muito do que Graciliano Ramos já havia visto e denunciado, fazendo de «Memórias do Cárcere» um guia indispensável para compreender nosso próprio tempo. Separei algumas frases, poucas, de «Memórias do Cárcere», que descrevem com precisão o Brasil de hoje. Espero com isso despertar o interesse pela releitura desta obra e resgatar sua importância na luta pela democracia no Brasil.

Sobre a necessidade do capitalismo de construir uma ideologia que disfarce sua atuação e seus verdadeiros propósitos, por exemplo, Graciliano Ramos escreveu:

« Se o capitalista fosse um bruto, eu o toleraria. Aflige-me é perceber nele uma inteligência, uma inteligência safada que aluga outras inteligências canalhas.»

Como não ver no Brasil de hoje a atuação desta «inteligência safada» alugando outras «inteligências canalhas» no processo que levou ao golpe que derrubou a presidente eleita Dilma Rousseff, à prisão do ex-presidente Lula e, por fim, à eleição de Jair Bolsonaro? Que esta «inteligência safada» do capitalismo seja inimiga profunda da cultura e de todo o pensamento crítico é um outro fato observado por Graciliano Ramos e muito obviamente presente no Brasil da era Bolsonaro, onde abundam «inteligências canalhas» de aluguel dispostas a defender propostas como as escolas sem partido, ou a homofobia, a tortura, as ditaduras e a exterminação dos povos indígenas. Isso sem mencionar a entrega das riquezas públicas brasileiras para o capital financeiro através das privatizações. Já desde algum tempo no Brasil procura-se encarcerar o pensamento e o espírito. Sobre tudo isso Graciliano foi – e é – contundente:

«O emburramento era necessário. Sem ele, como se poderiam aguentar políticos safados e generais analfabetos?»

Nada mais atual. O obscurantismo pregado por certas igrejas evangélicas ligadas ao novo Presidente, a escolha de Ricardo Velez Rodriguez para o Ministério da Educação, de Damares Alves para Ministra dos Direitos Humanos e de Ernesto Araújo para as Relações Exteriores são sinais claros de que o Governo Bolsonaro está em guerra contra o pensamento e a cultura. Guerra inevitável, como bem viu Graciliano Ramos, para se levar adiante um projeto econômico profundamente elitista, anti-popular e anti-nacional.

Graciliano Ramos estava bem consciente também da extensão da opressão necessária para manter um tal regime:

«É o que me atormentava. Não é o fato de ser oprimido: é saber que a opressão se erigiu em sistema.»

E ele sabia que não precisaria muito para ser enquadrado como «inimigo» pelo regime – de então e de agora – e nos avisou:

«Tínha-me alargado em conversas no café, dissera cobras e lagartos do fascismo, escrevera algumas histórias. Apenas. Conservara-me na superfície, nunca fizera à ordem ataque sério, realmente era um diletante.»

Diante da combinação de brutalidade e ignorância da repressão do governo Vargas, Graciliano chegou a pensar na possibilidade do exílio:

« Imaginei-me em país distante, falando língua exótica, ocupando-me de coisas úteis, terra onde não só os patifes mandassem.»  

Graciliano Ramos também denunciou a abjeta subserviência do Brasil da época a um outro país, a Alemanha nazista. Mas suas palavras também descrevem com clareza a subserviência, alardeada com orgulho pelo Ministro Araújo, do Brasil de hoje aos EUA, basta substituir, na frase abaixo, «ditadura ignóbil» por «Donald Trump» (ou talvez, apenas acrescentar « de Trump» depois de «ignóbil», também funciona):

« A subserviência das autoridades reles a um despotismo longínquo enchia-me de tristeza e vergonha. Almas de escravos, infames; adulação torpe à ditadura ignóbil.»

Graciliano também observou e denunciou a deterioração do sistema legal, procedimento fundamental para o estabelecimento de um estado de repressão:

«A lei fora transgredida, a lei velha e sonolenta, imóvel carrancismo exposto em duros volumes redigidos em língua morta. Em substituição a isso, impunha-se uma lei verbal e móvel, indiferente aos textos, caprichosa, sujeita a erros, interesses e paixões. E depois? Que viria depois? O caos, provavelmente.»

E Graciliano prossegue, escrevendo o que parece ser um comentário à atuação do Poder Judiciário de hoje:

«Se os defensores da ordem a violavam, que deveríamos esperar? Confusão e ruína.»

Mas o pior ainda pode estar por vir. «Memórias do Cárcere» contém uma sombria profecia sobre um possível futuro deste governo:

« O governo se corrompera em demasia: para aguentar-se precisava simular conjuras, grandes perigos, salvar o país enchendo as cadeias.»

Desde o governo golpista de Temer já se tenta «simular conjuras, grandes perigos», inventou-se ameaças terroristas porque nada melhor que um inimigo interno para disfarçar fracassos econòmicos e justificar a repressão. Este processo continua, sobretudo através da criminalização de movimentos sociais como o MST. A política econômica proposta pelo Ministro Paulo Guedes beneficia principalmente o setor financeiro e fatalmente vai aumentar os niveis de desigualdade e de pobeza. E as privatizações apenas vão entregar ao capital internacional as riquezas públicas do país, diminuindo ainda mais a possibilidade de recuperação econômica real. As forças que estão por trás da eleição deste governo não tem a menor preocupação e nem o menor compromisso com o Brasil e com o seu povo, apenas com o mercado. A combinação de despreparo, rapina, mediocridade e submissão aos interesses dos EUA, características do Governo Bolsonaro, inevitavelmente levarão ao desastre econômico e social, gerando cada vez mais resistência popular. Para o Governo, que conta com uma enorme participação de militares, só restará aumentar a repressão – sob qualquer pretexto – para manter-se no poder: «salvar o país enchendo as cadeias».

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

4 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Inteligência safada alugando inteligências canalhas

    Acho que o Graciliano era um viajante do tempo. Acho que ele fez uma viagem a 2019.

     

    Sobre a inteligência safada alugando inteligências canalhas, eu me lembrei da seguinte passagem de uma obra de Karl Marx:

    “O que existe para mim por intermédio do dinheiro, aquilo por que eu posso pagar (isto é, que o dinheiro pode comprar), tudo isso sou eu, o possuidor de meu dinheiro. Meu próprio poder é tão grande quanto o dele. As propriedades do dinheiro são as minhas próprias (do possuidor) propriedades e faculdades. O que eu sou e posso fazer, portanto, não depende absolutamente de minha individualidade. Sou feio, mas posso comprar a mais bela mulher para mim. Consequentemente, não sou feio, pois o efeito da feiúra, seu poder de repulsa, é anulado pelo dinheiro. Como indivíduo sou coxo, mas o dinheiro proporciona-me vinte e quatro pernas; logo, não sou coxo. Sou um homem detestável, sem princípios, sem escrúpulos e estúpido, mas o dinheiro é acatado e assim também o seu possuidor. O dinheiro é o bem supremo, e por isso seu possuidor é bom. Além do mais, o dinheiro poupa-me do trabalho de ser desonesto; por conseguinte, sou presumivelmente honesto. Sou estúpido, mas como o dinheiro é o verdadeiro cérebro de tudo, como poderá seu possuidor ser estúpido? Outrossim, ele pode comprar pessoas talentosas para seu serviço e não é mais talentoso que os talentosos aquele que pode mandar neles? Eu, que posso ter, mediante o poder do dinheiro, tudo que o coração humano deseja, não possuo então todas as habilidades humanas? Não transforma meu dinheiro, então, todas as minhas incapacidades em seus contrários?”

  2. Nossa elite nunca foi de

    Nossa elite nunca foi de primeira divisão. No seu melhor momento, quase subiu pra primeira, mas não conseguiu. Hoje, desde Temer, estamos na terceira e agora com Boçal ela se encaminha pra ir pra quarta divisão. E o trágico é que essa elite não consegue fazer dum país que tem quase todos os requesitos pra ser uma nação respeitada ( população, território fértil, recursos naturais, independência alimentar, língua única, etc ) e sendo forte também projetar seus melhores artistas. O pouco peso que o Brasil no mundo faz com que autores como Machado, Drummond e o próprio Graciliano Ramos não tenham o reconhecimento internacional que deveria – só pelo capítulo Baleia, de Vidas Secas, já mereceria ser reconhecido internacionalmente como um dos melhores escritores do século XX. 

  3. Essa Terra que nunca muda

    Realmente Gracialino Ramos descreveu o Brasil de ha sessenta anos como se fosse o de hoje. E olha que se ja estavamos emburrecendo, em breve voltamos às cavernas.  

    Getulio Vargas parece que resolveu copiar Stalin na Russia e fazer uma espécie de limpeza no Brasil, so que ao contrario do paranoico russo, aqui combatia-se o comunismo… Até hoje “combate-se o comunismo” em nome da ordem, da familia, de Deus e da propriedade. Como diz Neruda em um poema “Essa Terra que nunca muda”. 

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador