Guerra de facções num mundo sem povo, por Rogério Mattos

Sem compreender esse projeto alternativo de poder, baseado exclusivamente nas elites intelectuais e financeiras do Atlântico Norte, não há capacitação mínima para se discutir adequadamente a política internacional como um todo.

Guerra de facções num mundo sem povo, por Rogério Mattos

A recente mudança de hegemonia

Entre 2014 e 2016 assistimos a uma escalada militar sem precedentes desde a Crise dos Mísseis. Ao contrário da histeria macartista da atual Guerra Fria, o conflito entre EUA e URSS foi televisionado. Era um conflito aberto desde que Churchill iniciou a guerra com os soviéticos em seu discurso sobre a Cortina-de-Ferro. Para alguns, foi o início da recolonização dos EUA pelo Império Britânico…

O presidente Truman desvinculou das receitas correntes do Estado os investimentos nas agências da inteligência. A partir de mecanismos não oficiais, porém que passavam pelo Estado, a máquina de guerra irregular da CIA pode ser montada naquela longínqua década de 1940. A política de “relações especiais” entre EUA e Inglaterra foi acompanhada nas décadas seguintes pela recriação do Império Britânico através da rede financeira sediada na City de Londres. O império territorial passou a ser eminentemente financeiro [aqui]. British brain and American brawn.

Para quem acompanhou de perto o conflito entre 2014-16, existia uma incredulidade dupla: o conflito que poderia explodir a partir de múltiplos focos e a ausência de cobertura mínima da mídia sobre o tema. Com ameaça tão acintosa à paz mundial, não existiam meios adequados para informar uma opinião pública, pelo menos parte um pouco mais ampla desta? A doutrina utópica da OTAN, a de eliminar o inimigo com um só ataque, total, precisa do silêncio da mídia. A guerra só começaria a ser vista quando estivesse em seu ponto de não retorno, ou seja, talvez alguns minutos antes de estourar o primeiro cogumelo termonuclear.

A guerra por enquanto é coisa do passado. Seu último estertor foi o assassinato de Soleimani em janeiro, quando o mundo atônito assistiu (de surpresa, como deveria ser) a uma provável escalada termonuclear. Contudo, antes da última tentativa de provocar os russos a uma reação violenta para se justificar um “ataque preventivo”, dois momentos foram cruciais. 1) a eleição de Trump distensionou a conflituosa relação dos neocons com seu “arco das crises”, do Oriente Médio a Moscou. Foi o momento também em que se inventou o termo “fake news” [aqui]. 2) Em março de 2018, Vladimir Putin fez conhecer ao mundo as armas e aviões supersônicos, mísseis não-balísticos e submarinos ultramodernos com capacidade de lançarem mísseis sem subir à superfície [aqui].

Enquanto aconteciam todas essas movimentações, as quais resumi aqui de um modo quase escolar, as mídias, tantos as hegemônicas como as chamadas alternativas, caíam na propaganda fajuta do “Russiangate” e simplesmente ignoraram a capacidade neocon de provocar um desastre sem precedentes a partir da Ucrânia e/ou do Oriente Médio. O fator Trump continua sendo bastante mal compreendido, porque jamais se tratou de uma pessoa, mas de um projeto político alternativo fora da aliança entre as lideranças tradicionais dos partidos democrata e republico, ultraliberal e ultrabelicista (Bush/Clinton – Bush Jr./Obama: governos de gêneros diferentes, mas com caráter idêntico).

O projeto alternativo que levou Trump ao poder não pertence exclusivamente à extrema-direita. Entre inúmeros veículos de comunicação internacionais, do Consortium News ao The Intercept [aqui], passando pela iniciativa do professor Stephen Cohen em seu projeto de détente entre as potências militares (American Committee for East-West Accord), entre tantos outros, houve um apoio robusto à eleição de Trump. Não era por questões de política interna, discussões sobre a economia americana, etc., mas especificamente uma postura negativa. Killary Clinton deveria perder a disputa e, cumpridas as promessas de Trump, aliviar as tensões entre Ocidente e Oriente.

Se não houve um movimento de ampliação do entendimento público sobre os riscos de guerra que se corria especialmente naqueles anos, Trump acabou por ser o catalizador da atenção dos norte-americanos para pautas diferentes das de guerra infinita. Não fez isso sem apelo ao “sangue e terra”, característica de sua personalidade e de parte do grupo que o apoia. Um sintoma da incontornável ambiguidade do Projeto-Trump está em seus dois colaboradores mais próximos até chegar à presidência. De um lado, o general Michael Flynn, anti-belicista e com posições firmes contra a política expansionista da OTAN, aviltado publicamente e defenestrado da vida pública americana nas primeiras horas do novo governo. De igual importância, Steve Bannon, que não amargou a saída inglória de Flynn, mas teve que se manter a uma distância sanitária de Trump por motivos, em resumo, de aparência.

Sem compreender esse projeto alternativo de poder, baseado exclusivamente nas elites intelectuais e financeiras do Atlântico Norte (com divergências e embates entre si), não há capacitação mínima para se discutir adequadamente a política internacional como um todo, inclusive o papel do Brasil nesse concerto. A Coronacrise deixa entrever a cada dia sua origem em um dos grupos que apoia Trump, isto é, o chamado “dinheiro velho” ou as famílias europeias que acumulam riquezas há séculos, mas que perderam as duas guerras mundiais. Agem como o nobre criado por Pasolini em Salò, segundo o qual “a verdadeira anarquia é a do poder”. Como compreender isso? No governo de terra e sangue, impera o arbítrio do corpo soberano sobre os súditos e não o império das leis das facções ultraliberais.

Dois grupos em disputa

A chamada Internacional Negra (que remonta ao partido dos guelfos negros e à montagem do primeiro sistema financeiro no Ocidente a partir de Florença e Veneza, até sua mudança para o norte, Holanda e Reino Unido [aqui]), junto ao Vaticano, se inclina para buscar conter o avanço do desenvolvimento chinês e a interrupção de suas parcerias internacionais expostas na Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota. O “velho dinheiro”, se em conflito constante com o “dinheiro novo” do Narcóticos S.A. [aqui] e de toda série de novos ricos que surgiram após o fim dos acordos originais de Bretton Woods, acredita ser inviável a criação de uma América de proporções homéricas com a capacidade de impulsionar através de projetos de infraestrutura, ciência e tecnologia, todo o antigo Terceiro Mundo.

A Internacional Financeira (Fininter) ou Nova Babilônia, o “dinheiro novo”, de John Bolton a Michele Obama (a carta na manga dos democratas frente ao zumbi Joe Biden), continua com sua mentalidade de Guerra Fria e financeirização total da economia. Mas os liberais mantém sempre aquela áurea de respeitabilidade, de conversação “racional”, sua mentalidade de planilha, seus economistas-contadores, suas utopias ultradesenvolvimentistas com carbono zero, BlackRock e infinita flexibilização quantitativa: Nova Democracia + Green New Deal [aqui]), que leva de roldão os incautos, em boa parte cidadãos bem intencionados que se colocam à esquerda do espectro político.

O alvo destes é a Rússia e seu objetivo de curto prazo a guerra termonuclear. Ironia histórica, este projeto por enquanto fracassou completamente em janeiro no Iraque. Contudo, o “reset” da economia global, como previamente expresso antes do coronacirco pelo Fórum Econômico Mundial, está muito bem encaminhado por outra medida de “força maior”, depois que a OMS decretou a nível burocrático uma pandemia mundial, apesar de ter deixado no caminho duas mortes suspeitas [aqui]. Não importa se é a aparição de Godzilla em Manhattan, discos voadores, a chegada do segundo sol ou do 12º planeta, a volta da peste negra propagada via aplicativos de celular ou a catástrofe climática de um inverno nuclear, a montanha de dívidas das elites financeiras do norte do Atlântico deve ser anulada. Somente através de um ato de força maior isso poderia ser realizado. Chegamos a esse ponto, enfim.

Por esse motivo, qualquer perspectiva otimista agora pode se mostrar uma postura apressada. Existe uma multiplicidade nunca antes vista de diferentes fatores que jogaram qualquer projeção econômica para os próximos cinco anos na mais inacreditável das incertezas. Porém caso não seja seguido o padrão CNN, nada impede uma análise minimamente razoável do que está acontecendo.

O grupo que apoia Trump, cujo precursor sombrio não é Bannon, mas Kissinger, há muito redirecionou suas atenções para a China. Os chineses tem a capacidade, nas próximas décadas, de mexer com força (sacudir à força, praticamente), as instituições ocidentais que funcionam há séculos sem maiores perturbações. Tanto o sistema financeiro, quanto domínios territoriais e culturais nunca mais serão os mesmos se passarem por um processo de hibridização com o exótico povo asiático. Derrotar militarmente a Rússia, mesmo com uma guerra nuclear que a OTAN acredita poder ser controlada, isto é, com impactos mínimos para eles, não faz o menor sentido se a China continuar de algum modo viva. A história de pelo menos cinco séculos do atual capitalismo mudará para sempre.

Esse novo entendimento que começou a se formar entre 2014-16 e ganhou força nos últimos quatro anos é a razão, em linhas gerais, da mudança tão drástica na política internacional. Se a demonização da China começou a ganhar corpo a partir de então, o ato de guerra total que substituiu a antiga aspiração bélica da facção liberal-financista contra a Rússia, isto é, a invenção de uma pandemia chinesa, acabou por ser bloqueada em sua origem. Como dito outra vez, o teatro de Wuhan anulou qualquer possibilidade de campanha mais feroz contra o país, o que deixou os fabricadores da nova crise praticamente com a brocha na mão [aqui]. Passou a ser um problema ocidental, enquanto a Ásia controla um vírus através aplicativos…

Mas a facção liberal não se deu por vencida e imediatamente, através do amplo controle das redes sociais, da política do Vale do Silício [aqui], criou uma primavera colorida dentro dos EUA. Além do mais, já se previa alguma espécie de desordem civil de larga escala no país, e ainda se desconfia de uma possível guerra civil de fato. O atual favoritismo de Joe Biden pode ser rapidamente descartado a qualquer momento. Nunca antes o liberalismo clássico do pós-guerra teve tão pouca força. Contudo, outra força não menos devastadora, a cada dia deixa ver mais claramente seus contornos. Em 2019, sem querer teorizar esse novo acontecimento, apenas observando sua estranha emergência, defini que as únicas opções que pareciam existir no Ocidente era entre capitalismo ou anarquia [aqui]. O Brasil, por poder se aliar a outro bloco com o objetivo de reconstituição dos BRICS, pode no médio prazo retomar o caminho da devida sanidade. A ver.

Redação

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