Haja Sócrates! A utilidade da não-filosofia, por Eliseu Raphael Venturi

Vivemos uma época de uma exaltação da leiguice que parece demandar a reconstrução de fundamentos, ou a efetiva construção de noções

Jacques Louis David. Detalhe de “A morte de Sócrates”. 1787. (1)

Haja Sócrates! A utilidade da não-filosofia

por Eliseu Raphael Venturi

“Damnosa quid non imminuit dies”.

Vivemos embalados em más marés e embolados em ondas profundamente questionáveis. Parece não haver dúvidas, a quem ocorra pensar, de tamanho constrangimento intelectual, moral, cívico. Que somos afogados pela incredulidade ante certas declarações públicas e seus apoios público-privados, igualmente, parece ser algo que se sente tal qual água salgada em vias respiratórias. Farto futum.

Se uma das maiores liberdades democráticas é a de dizer – e, vale dizer, não consiste em se dizer “qualquer coisa” –, um dos maiores desafios democráticos é o de se ter de ouvir, muitas vezes, “qualquer coisa”.

Há alguns discursos que constrangem por sua mistura insólita de puerismo intencional com rusticidade inacreditável. É um opaco que chega a ser brilhante, uma ignorância genial, uma contrapoesia concreta em menos de cento e quarenta nauseabundos caracteres mal gestados.

Mas o pior mesmo é que se trata de uma forma de governar, uma expressão de governamentalidade, a expressão dos nossos tempos.

De algum modo, pelo assenhoramento coletivo de um opilião maldito, vivemos uma época de uma exaltação da leiguice que parece demandar sempre a reconstrução de fundamentos, ou, melhor dizendo, nos terrenos desertos, a efetiva construção (indesejada e inaudita) de noções. É como se viver se reduzisse a uma repetição eterna de busca de sinônimos para “ignorância”, acompanhado de um desespero etimológico para quem deseje captar o espírito de seu tempo.

Não se tratam de discussões na esfera cívica, de formulações na arena pública, de confrontos da política. Trata-se, apenas, da equalização de quaisquer noções (sobretudo as antidemocráticas, excludentes, discriminatórias etc.) e de sua elevação ao plano discursivo-decisório; crê-se que haja aí uma igualdade e uma liberdade democrática, quando, novamente, o que há é apenas um modo espúrio de governar e de ser governado. É o modo como a comunicação tem sido efetiva já se cumprindo um quinto do Século XXI. Nada mais decepcionante aos antigos entusiastas dos Iluminismos e dos Futurismos!

O problema, então, passa a ser a “falta” que está embutida na “ignorância” ou o “excesso” que está embutido na “vontade de poder”?

Talvez haja uma insuficiência de palavras porque todas elas são estéticas demais, inapropriadas demais para fazer qualquer referência ao que remetem: um abuso de seu uso, portanto. Talvez a maior lesão e a maior fratura destes mares seja justamente a ruptura com o potencial dos signos: não é justo com a poesia contida nas palavras utilizá-las (dar-lhes a utilidade) de se referir ao produto de determinados fenômenos mentais circulantes – porque sequer se poderia chamá-los de “processos mentais” e, então, faltam palavras, expressões, locuções aptas a qualquer descrição.

Quem não precisa de Filosofia? Para o seco e para o sal da linguagem não precisamos da Filosofia.

Um questionamento infantil feito por não-crianças sobre a Filosofia, reiteradamente, diz respeito à “utilidade da Filosofia”. Tanto assim que um dos capítulos típicos da educação filosófica passa justamente por esta discussão. Qualquer pessoa minimamente instruída, portanto, teria o assunto por superado há muito.

Mas tal triunfo da razão não é o que acontece nas picarias do contemporâneo poder soberano – que, de repente, se tornou um caçador epistemológico –, e o pior, tal postura se repete ciclicamente em um “questionamento” (uma frase seguida de uma interrogação, formalmente) que apenas evidencia a cardina candura de quem o profere.

O primeiro problema deste cenário é supor que existam “A Filosofia”, assim como “O Direito”, “A Educação”, “A Saúde”, “A Universidade”, “O Governo”, “O Estado”, “O Mercado” etc. É sabido que todas estas tecnologias, que não são dádivas da natureza ou do gênio humano, mas, antes, técnicas secularmente elaboradas, impostas e enfrentadas, são pluralidades. Pluralidades para a Antropologia, pluralidades históricas para a História. Que também são Antropologias e Histórias, que também têm seus pontos de instabilidade, de crítica interna e de potenciais de se tornarem outros conhecimentos.

De qualquer modo, sabe-se com clareza o sentido empregado às Filosofia e Sociologia que se pretende desestimular – desmontar, destruir, abolir, extinguir –, e isto muito apesar do status destas disciplinas e formações tanto como direito humano quanto direito fundamental, nas vias dos direitos à educação, à cultura, à liberdade de consciência e de pensamento, para referenciar o mínimo envolvido no controle do poder soberano. Parte-se de uma visão muito simplista da realidade, mas que não é insciente das ameaças do pensar.

Em um livro para a formação filosófica de adolescentes – longe de ser inútil aos biologicamente adultos, vale frisar – Aranha e Martins (2) argumentam didaticamente sobre a utilidade da Filosofia.

Para tanto, as autoras precisam se perguntar, antes, “o que é a Filosofia”. Assim, partindo do exemplo socrático, identificam que a Filosofia se dá na praça pública, entre vínculos intelectuais e emotivos, calcada na experiência cotidiana, guiada pela perplexidade primeira, pelo questionamento e pela interrogação do familiar, criticando o saber dogmático, sendo discutida intersubjetivamente e buscando soluções de modo criativo.

A Filosofia, “[…] por ser alteradora da ordem, é perturbadora, é incômoda e é sempre ‘expulsa da cidade’: as pessoas se riem do filósofo, consideram-no ‘inútil’. Por via das dúvidas, o amordaçam. Cortam o ‘mal’ pela raiz” (3).

Sobre a “utilidade” da Filosofia (4), as autoras, após se perguntarem, afinal, o que é esta tal “utilidade”, apontam que, em termos de alteração da ordem pragmática, a Filosofia realmente seria inútil.

Contudo, a Filosofia permitiria ao homem o distanciamento das expectativas imediatas do mundo prático, de modo que aquele possa exercer sua liberdade ao ver a vida enquanto um projeto sobre cujo destino suas ações podem interferir. Além disso, a Filosofia impediria a estagnação do conhecimento no imobilismo das coisas feitas e, por isso, mortas.

A Filosofia, ainda – e por sua vocação contra a estagnação e o dogmatismo e da devolução da liberdade – seria o constante confronto com o “poder”, não se alheando da ética e da política, mas, antes, se colocando em oposição às repressões e simplificações e à serviço da liberdade, razão pela qual a Filosofia seria a crítica constante da Ideologia (aquilo que está encoberto pelo costume, pela convenção, pelo poder). A Filosofia, assim, exigiria a coragem de enfrentar a segurança aparente e de aceitar o desafio da mudança.

Parecem, pois, motivos suficientes para a Filosofia ter tantos não-adeptos quanto franco opositores no mundo das marés do farto futum, poder-se-ia dizer mais: franco atiradores, declarados destruidores. Pode-se ver, assim, que a exposição das utilidades da Filosofia exige esforços e construções intelectuais – demanda em si um exercício filosófico – a utilidade da negação da Filosofia é de uma evidência nua, crua, chocante.

A utilidade de não se filosofar. A utilidade de que não se filosofe. Os efeitos potentes da inutilidade ela mesma da Filosofia (inútil, porém estrondosa) parecem em muito superar a pontualidade e o exaurimento das coisas úteis à razão instrumental. Quem nunca foi atravessado pelas forças da comodidade, não as sentiu dentro de si? Uma espécie de tentação pecaminosa, um desejo induzido de ilícito moral, de ilícito existencial, de transgressão egoística, fútil, frívola?

Não questionar, não problematizar, não duvidar, não criticar, não debater, não analisar, não controverter, não refletir, não argumentar, não interpretar, não pretender compreender, não buscar, não historicizar, não pensar! Uma dádiva para aguentar uma produção alienada, seguida de um lazer alienado, seguido de uma existência alienada. Ter o corpo dado, a linguagem posta, a estética servida, a ética encerrada, a política perfeita, a sexualidade localizada, o erotismo contido, o sexo impraticado, a morte certa, a vida perdida, o destino desenhado nas estrelas ou nas areias.

Há muitas gerências e ingerências. Mas há poucos que, depois que olharam, voltaram. Como sugeriria Deleuze: “descobrir a que estão sendo levados a servir, assim como seus antecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas” (5). Talvez em nossas servidões, a forma mais íntima de uma devoção constante instalada dentro dos nossos corpos, vejamos nossos maiores espelhos, e então a Filosofia terá exercido sua missão mais destruidora, de cujo parto nunca nos esqueceremos.

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Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

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(1) Disponível em: < https://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/31.45/>. Acesso em: 04 maio 2019.

(2) ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando. Introdução à Filsoofia. São Paulo: Moderna, 1986.

(3) ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando. Introdução à Filsoofia. São Paulo: Moderna, 1986. p. 43.

(4) ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando. Introdução à Filsoofia. São Paulo: Moderna, 1986. p. 47-49.

(5) DELEUZE, Gilles. Postscriptum sobre as sociedades de controle. Conversações. 1972-1990. Tradução de Peter Pal Perbart. Rio de Janeiro: Edições 34, 1992. p. 219-226.

A propósito do tema, uma clássica argumentação de Gilles Deleuze.

Excerto de: DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Tradução de Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Editora Rio, 1976 p. 78-80.

“O conceito de verdade só se determina em função de uma tipologia plura­lista. E a tipologia começa por uma topologia. Trata-se de saber a que região pertencem tais erros e tais verdades, qual é o seu tipo, quem os formula e os concebe. Submeter o verdadeiro à prova do baixo, mas também submeter o falso à prova do alto é a tarefa realmente crítica e o único meio de reconhecer-se na ‘verdade’. Quando alguém pergunta para que serve a filosofia, a resposta deve ser agressiva, visto que a pergunta pretende-se irônica e mordaz. A filosofia não serve nem ao Estado nem à Igreja que têm outras preocupações. Não serve a nenhum poder estabelecido. A filosofia serve para entristecer. Uma filosofia que não entristece a ninguém e não contraria ninguém não é uma filosofia. Ela serve para prejudicar a tolice, faz da tolice algo de vergonhoso (89). Não tem outra serventia a não ser a seguinte: denunciar a baixeza do pensamento sob todas as suas formas. Existe alguma disciplina, fora da filosofia, que se proponha a criticar todas as mistificações, quaisquer que sejam sua fonte e seu objetivo? Denunciar todas as ficções sem as quais as forças reativas não prevaleceriam. Denunciar, na mistificação, essa mistura de baixeza e tolice que forma tão bem a espantosa cumplicidade das vítimas e dos autores. Fazer enfim do pensamento algo agressivo, ativo, afirmativo. Fazer homens livres, isto é, homens que não confundam os fins da cultura com o proveito do Estado, da moral ou da religião. Vencer o negativo e seus falsos prestígios. Quem tem interesse em tudo isso a não ser a filosofia? A filosofia como crítica nos mostra o mais positivo de si mesma: obra de desmistificação. E que não se apressem em proclamar o fracasso da filosofia a esse respeito. A tolice e a bizarria por maiores que sejam, seriam ainda maiores se não subsistisse um pouco de filosofia que as impedisse, em cada época, de ir tão longe quanto desejariam, que lhes proibisse, mesmo que fosse por ouvir-dizer, de serem tão tola e tão baixa quanto cada uma desejaria por sua conta. Alguns excessos lhes são proibidos, mas quem lhes proíbe a não ser a filosofia? Quem as força a se mascararem, a assumirem ares nobres e inteli­gentes, ares de pensador? Certamente existe uma mistificação propriamente filosófica; a imagem dogmática do pensamento e a caricatura da crítica são testemunhos disso. Mas a mistificação da filosofia começa a partir do momento em que esta renuncia a seu papel… desmistificador e faz o jogo dos poderes estabelecidos, quando renuncia a contrariar a tolice, a denunciar a baixeza. É verdade, diz Nietzsche, que os filósofos de hoje tornaram-se cometas (90). Mas de Lucrécio aos filósofos do século XVIII, devemos observar esses cometas, segui-los se possível, reencontrar seu caminho fantástico. Os filósofos-cometas souberam fazer do pluralismo uma arte de pensar, uma arte crítica. Souberam dizer aos homens o que a má consciência e o ressentimento deles escondiam. Souberam opor aos valores e aos poderes estabelecidos pelo menos a imagem de um homem livre. Após Lucrécio, como é possível perguntar ainda: para que serve a filosofia?

É possível fazer essa pergunta porque a imagem do filósofo é constantemente obscurecida. Faz-se dele um sábio; ele que é apenas o amigo da sabedoria, amigo num sentido ambíguo, isto é, o anti-sábio, aquele que deve mascarar-se com a sabedoria para sobreviver. Faz-se dele um amigo da verdade, ele que faz o verdadeiro enfrentar a mais dura prova; da qual a verdade sai tão desmembrada quanto Dionísio, a prova do sentido e do valor. A imagem do filósofo é obscure­cida por todos os seus disfarces necessários, mas também por todas as traições que fazem dele o filósofo da religião, o filósofo do Estado, o colecionador dos valores em cursos, o funcionário da história. A imagem autêntica do filósofo não sobrevive àquele que soube encarná-la por algum tempo, em sua época. É preciso que ela seja retomada, reanimada, que encontre um novo campo de atividade na época seguinte. Se a tarefa crítica da filosofia não é ativamente retomada em cada época, a filosofia morre e com ela a imagem do filósofo e a imagem do homem livre. A tolice e a baixeza são sempre as de nosso tempo, de nossos contemporâ­neos, nossa tolice e nossa baixeza (91). Diferentemente do conceito intemporal de erro, a baixeza não se separa do tempo, isto é, dessa transposição do presente, dessa atualidade na qual se encarna e se move. Por isso a filosofia tem uma relação essencial com o tempo: sempre contra seu tempo, crítico do mundo atual, o filósofo forma conceitos que não são nem eternos nem históricos, mas intem­pestivos e sem atualidade. A oposição na qual a filosofia se realiza é a do intempestivo com o atual, do intempestivo com nosso tempo (92). E no intem­pestivo há verdades mais duráveis do que as verdades históricas e eternas reu­nidas: as verdades do tempo por vir. Pensar ativamente é ‘agir de maneira intempestiva, portanto contra o tempo e por isso mesmo sobre o· tempo, em favor (eu o espero) de um tempo por vir’ (93). A corrente dos filósofos não é a corrente eterna dos sábios, ainda menos o encadeamento da história, mas uma corrente quebrada, a sucessão dos cometas; sua descontinuidade e sua repetição não se reduzem nem à eternidade do céu que eles atravessavam nem à historicidade da terra que sobrevoam. Nem há filosofia eterna, nem filosofia histórica. A eterni­dade, assim como a historicidade da filosofia reduzem-se ao seguinte: a filosofia, sempre intempestiva, intempestiva em cada época”.

Notas de rodapé do excerto:

89) Co.In., II, “Schopenhauer educador”, 8: “Diógenes objetou, quando louvaram um filósofo diante dele: O que ele tem de grandioso para mostrar, ele que se dedicou tanto tempo à filosofia sem nunca entristecer ninguém? Com efeito, seria preciso colocar como epitáfio sobre o túmulo da filosofia universitária: Ela não entristeceu ninguém.” – GC, 328: os  filósofos antigos fizeram um sermão contra a tolice, “não nos perguntemos aqui se esse sermão é melhor fundamentado do que o sermão contra o egoísmo; o que é certo é que ele despojou a tolice de sua boa consciência: esses filósofos prejudicaram a tolice. ”

90) NF – Co.ln., II, “Schopenhauer educador”, 7: “A natureza envia o filósofo à humanidade como uma flecha; ela não mira, mas espera que a flecha prenda em algum lugar.”

91) AC, 38: “Tal como todos os clarividentes eu sou de grande tolerância para com o passado. isto é. generosamente domino a mim mesmo…  Mas meu sentimento se modifica. explode. a partir do momento em que entro no tempo moderno, em nosso tempo.”    .

92) Co. In., I, “Da utilidade e do inconveniente dos estudos históricos”, Prefácio.

93) Co. In., II, “Schopenhauer educador”, 3.4.

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