Aldo Fornazieri
Cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política.
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Impeachment e voto secreto: judicialização ou defesa da Constituição? Por Aldo Fornazieri

Impeachment e voto secreto: judicialização ou defesa da Constituição?

Por Aldo Fornazieri

A decisão do Supremo Tribunal Federal de anular a votação secreta que escolheu a comissão do impeachment da Câmara dos Deputados continua causando ondas de indignação nos arautos da falsa ciência, nos pregoeiros da hipocrisia travestidos de democratas e nos manipuladores da opinião pública. Alguns atacam o STF por, supostamente, ter favorecido uma tese do governo. Outros, autoinvestidos de insustentável neutralidade, reclamam da judicialização da política. Terceiros, inconformados em seus desígnios escusos, investem contra a interferência do Judiciário no Legislativo.  Todos, juristas, analistas políticos, jornalistas ou agentes públicos não podem alegar desconhecimento da Constituição, se bem que seja duvidoso que alguns a tenham lido, ou da teoria política democrática e republicana. O fato é que o voto secreto em questão não encontra abrigo nem na teoria política e nem na Constituição Federal.

Norberto Bobbio, um dos maiores filósofos políticos dos últimos tempos, coligiu as posições de diversos pensadores modernos acerca da relação entre democracia e segredo, na qual está implicado também o tema do voto secreto. Com base em vários autores clássicos, Bobbio mostra que o segredo de Estado (razão de Estado) foi uma postulação reivindicada e praticada pelos regimes da monarquia absoluta e por todos os regimes autocratas. No campo da filosofia política o segrego de Estado opôs autores alinhados com o absolutismo do poder, a exemplo de Hobbes, a autores alinhados com o pensamento democrático e liberal, a exemplo de Bentham, Stuart Mill, Kant, Carl Scmitt, Elias Canetti e, mais recentemente, Carlo Ginzburg, Richard Sennett e o próprio Bobbio.

Tanto Jeremy Bentham quanto seu discípulo Stuart Mill anteciparam o problema atual do direito dos cidadãos ao acesso à informação. Bentham entendia que o poder público deveria ser inspecionado não apenas pelos inspetores, mas também pelo público. Para Mill, o governo representativo deveria permitir que a soberania popular se expressasse de forma ativa no exercício do poder, na assembleia dos representantes deveria prevalecer o interesse público e as decisões do poder deveriam ter caráter público.

Kant é categórico na condenação do segredo de Estado. Do ponto de vista do poder público nada deveria ser secreto já que manter em segrego um propósito, um pacto, uma deliberação pública é em si uma prova de ilicitude, nota Bobbio. O parlamento da Inglaterra liberal foi vanguardista na luta pela exigência do caráter público das deliberações e decisões do poder. O mistério e o segredo são ainda mais incompatíveis quando se trata de uma decisão de assembleia de representantes (Câmara dos Deputados) na medida em que os representantes são eleitos pelo povo e ele devem satisfação de seus atos.

A esse respeito, a formulação de Carl Schimitt coligida por Bobbio é notável: “A representação pode desenvolver-se apenas na esfera da publicidade. Não há nenhuma representação que ocorra em segredo e a portas fechadas… Um parlamento só tem caráter representativo enquanto acreditar que sua verdadeira e própria atividade tem lugar em público”. Ora, fica claro que quando os deputados escolheram a comissão do impeachment por voto secreto, não estavam exercendo a representação, mais seus interesses pessoais. O STF, simplesmente restituiu o caráter público de uma decisão que deve ser pública, ainda mais quando se quer retirar o mandato de uma presidente eleita pelo povo. Classificar este ato de defesa da Constituição de judicialização, de intervenção ou de ingerência, mal disfarça o caráter golpista dos defensores do voto secreto.

Bobbio lembra ainda Richard Sennett, segundo o qual, “todas as ideias de democracia que herdamos do século XVIII baseiam-se na noção de uma autoridade visível”.  Para o próprio Bobbio, “o poder invisível torna-se um pretexto, uma ameaça intolerável, que deve ser combatida por todos os meios”. O voto secreto, salvo as exceções, se presta a todo tipo de chantagem, de manipulação, de manifestação de desígnios inconfessáveis e, por si, suspeitos e condenáveis. Chega a ser fantásticos que os defensores da posição golpista de Eduardo Cunha sequer ficam rubros ao criticarem o Supremo e ao reclamarem de judicialização da política e de ingerência.

O STF e a Defesa da Constituição

O artigo 102 da Constituição Federal é claro ao estabelecer que cabe precipuamente ao STF a guarda da Constituição e que cabe a ele se pronunciar sempre que a isto for instado na forma legal, tal como ocorreu na questão do voto secreto da escolha da comissão do impeachment. As demais decisões acerca do rito do impeachment adotadas pelo STF seguem também a Constituição e aquilo que foi estabelecido no processo de impeachment de Collor de Mello.

Há que se observar, então, o que a Constituição estabelece sobre o voto secreto. O artigo 52 da Constituição define apenas três possibilidade de voto secreto, todas atribuídas ao Senado: 1) Escolha de Magistrados, Ministros do TCU, Governadores de Território, diretores do Banco Central e diretores de agências reguladoras; 2) Escolha de chefes de missões diplomáticas de caráter permanente; 3) Exoneração, de ofício, do Procurador Geral da República antes do término de seu mandato. Isto quer dizer que todas as demais votações da Câmara e do Senado devem ser públicas, pois esta é a consequência direta e inapelável do caráter público da democracia e da representação e do direito que o cidadão tem à informação.

Além disso, os regimentos da Câmara dos Deputados e do Senado preveem votação secreta para a escolha das respectivas mesas diretoras das duas Casas. A Constituição não se pronuncia sobre este ponto. A rigor, pela via de um entendimento constitucional estrito, a própria escolha das mesas diretoras deveria ser aberta.

Por fim, é preciso dar novamente a palavra a Bobbio para rebater os arautos da falsa ciência e os manipuladores da opinião pública. Ele assevera que não se pode inverter a relação entre a regra e a exceção na democracia. Num regime democrático “a publicidade é a regra e o segredo é a exceção”. A nossa Constituição é clara no artigo 52 ao definir a exceção. Tudo o demais é a regra, é a visibilidade, é a publicidade é a res publica. A transformação da regra em exceção é golpe. Ao menos nesse aspecto, o golpe em curso, travestido de impeachment, foi constitucionalmente barrado pelo STF.

Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. 

Aldo Fornazieri

Cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política.

5 Comentários

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  1. O artigo 52 da Constituição

    O artigo 52 da Constituição define apenas três possibilidade de voto secreto, todas atribuídas ao Senado:…

    Isto quer dizer que todas as demais votações da Câmara e do Senado devem ser públicas, pois esta é a consequência direta e inapelável do caráter público da democracia e da representação e do direito que o cidadão tem à informação.

    Não sabia que o artigo da CF que define privativamente a competência do Senado Federal tem o dom de atribuir competência a Camara dos Deputados……deve ser uma nova forma de interpretação……ou falta de entendimento mesmo por parte do autor….

     

    1. NRA,

      Achei correto o raciocínio do articulista. Regra expressa: somente o Senado tem casos de votação secreta e aqueles previstos expressamente. Regra implícita: todos os demais casos, tanto do Senado, como na Câmara, votação aberta.

      1. Não meu caro, o raciocínio

        Não meu caro, o raciocínio está errado. Veja bem, as normas listadas no art. 52 referem-se as competências privativas do Senado Federal e não às matérias que podem ou não ser objeto do voto secreto. Isso é fundamental para interpretar corretamente este artigo da CF. Então, quando o constituinte originário menciona no art 52, III e IV, que o voto é secreto nesses casos não significa que o voto é secreto somente para esses casos. Significa que especificamente nesses casos os senadores não tem a liberdade de realizar a votação de outra maneira que não seja secreta. Concluindo, uma coisa é você interpretar “os senadores só podem votar secretamente nos casos A, B e C”; outra é você interpretar “nos casos A, B e C os senadores só podem votar secretamente” (que acho que é a interpretação correta).

  2. sobre manipulações:

    Jessé de Souza, ” A Tolice Da Inteligência Brasileira  – Ou Como O País se Deixa Manipular Pela Elite “.

    na livraria, tava folheando (além de entrevistas e programas que já vimos, o BRASILIANAS, com esse que é o novo presidente do IPEA): Não sobra pedra sobre pedra, do PSDB, PT, de S.B. de Hollanda, G. Freyre, R. Da Matta, Faoro. Jessé analisa a visão que norteia as cabeças pensantes mais conhecidas e as decorrências nas prática políticas.

    Se eu fundir a cabeça (mais do que já tá) e desaparecer, já sabem.

    E não adianta insistir pra eu voltar, nem mesmo pro multimídia do dia, e nem por abaixo-assinado

    ( Alguns dirão Amém -, sou sensitivo ).

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