Michel Aires
Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.
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Indústria Cultural e a produção da subjetividade, por Michel Aires de Souza Dias

Bosi critica ainda uma certa vertente culta, ocidentalizante, de fundo colonizador, que procura estigmatizar a cultura popular como fóssil correspondente aos estados de primitivismo, atraso e subdesenvolvimento.

Bosi critica ainda uma certa vertente culta, ocidentalizante, de fundo colonizador, que procura estigmatizar a cultura popular como fóssil correspondente aos estados de primitivismo, atraso e subdesenvolvimento.

Indústria Cultural e a produção da subjetividade

por Michel Aires de Souza Dias

O grande feito do capitalismo foi produzir uma cultura que não é genuinamente popular, mas é produzida por uma indústria. Uma indústria que produz produtos e entretenimentos padronizados para o grande público. Não se trata de uma cultura espontânea, que busca seus anseios estéticos nas massas, mas de uma cultura intencionalmente administrada desenvolvida para a exploração econômica e para garantir a adesão dos indivíduos ao sistema capitalista.       

Podemos indagar se essa indústria não poderia ter se transformado em um instrumento de formação cultural, assumindo fins pedagógicos. Este não é o caso. Se a ela fosse um instrumento de consciência, minaria os próprios pressupostos de dominação e reprodução da sociedade capitalista. Para reproduzir as condições de exploração econômica e as distinções de classe ela teve que se transformar em um instrumento de deformação da cultura e da consciência.

No século XX, com o advento da sociedade de massas, a cultura formativa, típica das sociedades pré-capitalistas, começou a desaparecer; e a industrial cultural, que produz uma semicultura, tomou seu lugar. A semicultura deve ser entendida como uma espécie de pseudocultura, ou seja, uma cultura deformada em seus princípios, cuja característica é ser unidimensional e limitada. Todos os seus produtos e as suas criações estão voltados e adaptados ao consumo de massa. Eles são criados com o fim da rentabilidade econômica, de integração e adaptação dos indivíduos à sociedade capitalista. No âmbito da subjetividade, ela produz a semiformação, isto é, uma formação definida a priori, que forma a consciência a partir de conteúdos padronizados e homogeneizados, com o objetivo de adaptação. 

Octávio Ianni (1992) em seu livro, “A sociedade Global”, detectou o desenvolvimento de uma nova cultura globalizada no mundo contemporâneo. Se antigamente invadiam-se os mercados estrangeiros com mercadorias, hoje se invade culturas inteiras com informações, entretenimentos e ideias. Formam-se linguagens globais. O que é local, regional, nacional, entra no jogo das relações internacionais ou propriamente globais. A cultura internacional popular nasce, circula e é consumida como mercadoria lançada simultaneamente em diferentes mercados nacionais. Por sobre e além da cultura nacional popular toma lugar e generaliza-se a cultura internacional popular, que povoa o imaginário da audiência, público e massa. Diverte, distrai, irrita, ilude, carrega padrões e ideias. Nesse sentido, nos diz Ianni, a cultura internacional popular entra na construção e reconstrução da hegemonia dos grupos ou classes sociais que se articulam em escala global.

É fato que hoje não conhecemos mais a cultura popular como ela se manifestava nos períodos pré-capitalistas. Como avalia Alfredo Bosi (1992), o patrimônio sociocultural perdeu-se ou encontra-se depositado em bibliotecas e museus como relíquias. O que acontece é a destruição de formas sociais de vida e de trabalho, modos de ser das coletividades, povos e culturas. Bosi critica ainda uma certa vertente culta, ocidentalizante, de fundo colonizador, que procura estigmatizar a cultura popular como fóssil correspondente aos estados de primitivismo, atraso e subdesenvolvimento. A cultura são os modos de existir de uma nação, é o cotidiano “físico e simbólico e imaginário dos homens” (BOSI, 1992, p.324).

A cultura é a expressão de autenticidade de um povo, de seus valores e modos de ser, ver e compreender o mundo. Por esta razão, um povo que não preserva sua cultura é um povo sem história e sem identidade. Um indivíduo sem cultura é permeável a manipulação. Segundo o geógrafo Milton Santos (2000), o conceito de cultura está intimamente ligado às expressões da autenticidade, da integridade e da liberdade. Ela é uma manifestação coletiva que reúne heranças do passado, modos de ser do presente e aspirações, isto é, o delineamento do futuro desejado. Por isso mesmo, tem de ser genuína, isto é, resultar das relações profundas dos homens com o seu meio, sendo por isso o grande cimento que defende as sociedades locais, regionais nacionais contra as ameaças de deformação ou de dissolução de que podem ser vítimas.

O filósofo alemão Herbert Marcuse no seu clássico texto, “Sobre o caráter afirmativo da cultura”, de 1937, entendeu a cultura como o entrelaçamento entre o mundo espiritual e simbólico com o processo histórico da sociedade, ou seja, o entrelaçamento entre o plano da reprodução ideal (cultura) e o plano da reprodução material (civilização).  Contudo, ele percebeu uma grande mudança no mundo moderno, percebeu   que a cultura burguesa separou essas duas esferas. O mundo espiritual foi banido do plano material. A partir disso, a arte e a cultura tornaram-se ideológicas.  A separação da sociedade burguesa em dois mundos – o da reprodução material da vida (civilização) e o mundo espiritual das ideias, da arte, dos sentimentos, etc (cultura) – permitiu a essa sociedade justificar a exploração e alienação que a grande maioria sofria nas linhas de montagem e de produção, na administração burocratizada, e no cotidiano miserável.  (FREITAG, 1994)

Para Marcuse, os ideais iluministas de liberdade, felicidade, fruição do prazer, igualdade e verdade ficaram apenas no plano da arte e da cultura espiritual burguesa, não se manifestando no plano da realidade, no plano da reprodução material da vida. Desse modo, estes valores tornaram-se ideológicos. Foi o que ele denominou de cultura afirmativa, ou seja, aquela cultura pertencente à época burguesa que no curso de seu próprio desenvolvimento levaria a distinguir e elevar o mundo espiritual anímico, nos termos de uma esfera de valores autônomos, em relação à civilização. Seu traço decisivo é a afirmação de um mundo mais valioso, eternamente melhor, que é essencialmente diferente do mundo do fato da luta diária pela existência, mas que qualquer indivíduo pode realizar para si a partir do interior, sem transformar aquela realidade de fato. (MARCUSE, 1997).

Enquanto Marcuse publicavam seu texto, Theodor Adorno chegava aos Estados Unidos para trabalhar com Horkheimer. A primeira coisa que o impressionou foi a cultura americana, que era organizada em bases industriais. Ele ficou espantado com o planejamento racional e a padronização dos meios de comunicação de massa. O Estados Unidos, já naquela época, tinha um aparato produtivo imenso desde 1910, quando a indústria cinematográfica foi criada. Foi analisando essa nova indústria que Adorno juntamente com Max Horkheimer escreveram, nos anos 40, o ensaio que os tornariam famosos: “Indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas.”  Neste texto eles investigaram o poder de manipulação dos meios de comunicação de massa sobre a consciência dos indivíduos. Eles foram os primeiros a perceber uma crise nos mecanismos de formação (Bildung), sendo este o indício de uma crise mais ampla da cultura. Eles perceberam que a cultura estava sendo deformada. Com isso, usaram esse termo para substituir a expressão “cultura de massas” cunhada pelos apologistas da comunicação, que afirmavam ser porta-vozes de uma cultura que brotava espontaneamente das próprias massas, da forma que assumiria, atualmente, a arte popular.

Para os dois pensadores, a grande consequência do advento da indústria cultural foi a degradação da formação cultura e a perda da autonomia dos indivíduos. O indivíduo soberano, autônomo do iluminismo, deixou de existir. O aparato produtivo e as mercadorias se impuseram ao sistema social como um todo.  A autonomia do homem enquanto indivíduo, a sua capacidade de opor resistência ao crescente mecanismo de manipulação da massa, o seu poder de imaginação e o seu juízo independente sofreram aparentemente uma redução. O avanço dos recursos técnicos de informação foi acompanhado de um processo de desumanização. (Horkheimer, 1974)

A semiformação planejada e produzida pela indústria cultural renegou os valores transcendentes da literatura, da arte e da música, de um mundo melhor, mais justo, com liberdade e igualdade. Citando as palavras de Marcuse, “foi somente na arte que a burguesia tolerou a realização efetiva de seus ideais, levando-os a sério como exigência universal” (MARCUSE, 1997, p.113). Ao renegar esses valores, a indústria cultura produziu outros valores em substituição daqueles, como a beleza, o corpo, a família, as qualidades da alma e a felicidade individual. Esses valores foram veiculados em seus filmes, romances, novelas, músicas e propagandas. Em lugar dos ideais de liberdade e felicidade para todos, ela respondeu com ideais de felicidade individual, fama, dinheiro, beleza e glória.

O papel fundamental da indústria cultural é a defesa intransigente do espírito da reificação. A reificação deve ser entendida como a transformação das relações humanas e do ser humano em coisa, em objeto. Todas as relações humanas passam a ser relações mediadas por mercadorias. Essas relações reificadas produziram inevitavelmente o egoísmo, a competição insaciável, o individualismo exacerbado.  Neste processo, o homem se aliena de sua própria vida. A busca desenfreada pelo dinheiro, a competição, o consumo, a busca de reconhecimento simbólico, a labuta do dia a dia não permite ao homem determinar sua própria vida como projeto, como determinação consciente. Ele deixa de ser livre, sendo impedido de realizar suas potencialidades, sua autonomia e sua autodeterminação. Sua vida deixa de lhe pertencer, assim como seu tempo, sua interioridade e seus projetos.

O mundo irracional da sociedade capitalista é racionalizado pela indústria cultural e se apresenta como representação realista para os indivíduos. O mundo surge como realidade simulada. A realidade dos filmes, novelas e entretenimentos aparecem como se fossem o mundo real, mas, na verdade, é a deformação deste.  A realidade deixa de ser fragmentada, as diferenças sociais são apagadas, os problemas parecem ser solúveis, surge o modelo ideal de família, de beleza, de corpo, de felicidade, tudo é representado como se fosse a verdadeira realidade. O mundo que permanece irracional seria reconstruído como racionalização, num esquematismo planejado que substitui o que seria a experiência do consumidor, antecipando-a sob os desígnios do capital, resultando na ilusão de que o mundo exterior seria o prolongamento da produção nos termos da indústria cultural (MAAR, 2003).

 Adorno (1995), em um debate com o educador Helmut Becker, em 1963, afirmou que a televisão dá aos homens uma imagem falsa do que seja a vida de verdade. Na medida em que é mediada pelas imagens, ela cria uma pseudorrealidade. O mundo torna-se um mundo-cópia. O indivíduo não consegue distinguir mais o que vem da realidade e o que é representação simulada. Nesse processo ele perde a compreensão do real e passa a se relacionar com este mundo-cópia. O mundo da representação torna-se o governo invisível dos homens. 

A televisão como principal veículo de semiformação é em sua própria essência “deformativa da consciência”, contribuindo “para divulgar ideologias e dirigir de maneira equivocada a consciência dos espectadores” (ADORNO, 1995, p.77).  Ela usurpa do expectador sua capacidade crítica. Nas novelas, filmes, programas e telejornais, ela sempre buscou ludibriar, criando falsos problemas. Estes foram tratados e discutidos como se fossem “atuais” e “substantivos”. Mas, na verdade, eles têm o objetivo de ocultar a verdade sobre a realidade. A impressão do telespectador é que todas os problemas e contradições sociais podem ser resolvido no âmbito das relações humanas. Tudo depende da boa vontade, da iniciativa e perseverança dos indivíduos.

Na opinião de Adorno e Horkheimer, a mentalidade da indústria cultural é imutável. Ela sempre duplica, reforça e consolida essa mentalidade. Tudo o que poderia transformá-la é por ela excluída. Ela dá aos homens um critério de orientação num mundo fragmentado e caótico, inculcando conceitos de dever e ordem.  Ela apaga as diferenças de classe e cria a falsa impressão que existe uma coesão social e uma harmonia entre os homens. A indústria cultural, como domínio técnico, torna-se a engenharia do real, produzindo o engano das massas. Dessa forma, ela impede a formação de indivíduos autônomos, independestes, capazes de julgar e se decidir conscientemente.      

 Referências

 ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de janeiro: Jorge Zarhar, 1985

_______. Educação e emancipação.  São Paulo: Paz e Terra, 1995.

_______. Teoria da Semicultura. In: Revista “Educação e Sociedade”. Campinas: n. 56, ano XVII, dezembro de 1996, pág. 388-411.

BOSI, Alfredo. Cultura Brasileira e Culturas Brasileiras. In: Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

FREITAG, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje, São Paulo: Brasiliense, 1994.

HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. Rio de janeiro: Labor do Brasil, 1974.

MARCUSE, Herbert.  Sobre o caráter afirmativo da cultura. In: Cultura e sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 89-136.

IANNI, O. A sociedade global. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1992.

MAAR, W.L. Adorno, Semiformação e Educação. In: Educação e Sociedade., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 459-476, agosto 2003

SANTOS, Milton. Da cultura à indústria cultural.  Folha. de São Paulo – Caderno Mais, São Paulo, p. 18, mar. 2000.


Michel Aires de Souza Dias – Doutorando em educação pela Universidade de São Paulo. E-mail:[email protected]

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Michel Aires

Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.

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