“Intervenção militar constitucional”, mais uma Fake News da seita bolsonarista, por Eduardo Borges

Na última semana os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro saíram mais uma vez às ruas e novamente fomos inundados por palavras de ordens contrárias às instituições democráticas e a favor da intervenção militar. 

“Intervenção militar constitucional”, mais uma Fake News da seita bolsonarista

por Eduardo Borges

Uma coisa é fato na era bolsonarista o que não falta é tema para debates. Entre os diversos dessa semana (entrevista bombástica de aliados, saída de ministro da saúde e retirada de candidaturas no campo da esquerda) escolho como tema de provocação para esse artigo a rotineira solicitação de intervenção militar pelos adeptos da seita bolsonarista e a oportunista interpretação do Artigo 142 da Constituição Federal.

Na última semana os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro saíram mais uma vez às ruas e novamente fomos inundados por palavras de ordens contrárias às instituições democráticas e a favor da intervenção militar.  Esse tipo de atitude reivindicando a instauração de um regime de perfil autoritário não é novo e remonta aos movimentos em favor do impeachment de Dilma Rousseff. Ao mesmo tempo, essa atitude tem gerado um interessante debate entre jornalistas, intelectuais e juristas sobre o Artigo 142 de nossa Carta Magna.

O que diz o artigo:

“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

O grifo é proposital. Ele mostra onde mora o perigo de interpretações precipitadas e oportunistas do texto constitucional.

Na boca de um bolsonarista mais exaltado esse trecho vira uma ameaça constante ao regime democrático.

Mas não só bolsonaristas exaltados de perfil autoritário nos “ameaçam” com o Artigo 142 em punho. O renomado jurista Ives Gandra Martins citou o artigo 142 em texto em que se posicionava contrário à decisão do ministro do STF Alexandre de Moraes que barrou a posse de Alexandre Ramagem na chefia da Polícia Federal. Gandra Martins usou a mesma base dos argumentos de quem discordou da decisão do ministro, ou seja, houve uma invasão de competência de um poder em outro (algo semelhante ao que aconteceu na época em que Dilma nomeou Lula para a Casa Civil, mas que na oportunidade a politização da justiça ainda ditava o ritmo do moralismo seletivo da Direita brasileira).

Escreveu o professor Gandra Martins:

“Não entro no mérito de quem tem razão (Bolsonaro ou Moro), mas no perigo que tal decisão traz à harmonia e independência dos poderes (artigo 2º da CF), a possibilidade de uma decisão ser desobedecida pelo Legislativo que deve zelar por sua competência normativa (artigo 49, inciso XI) ou de ser levada a questão — o que ninguém desejaria, mas está na Constituição — às Forças Armadas, para que reponham a lei e a ordem, como está determinado no artigo 142 da Lei Suprema”.

É triste ver um renomado jurista se submeter sem nenhum constrangimento a uma escancarada e seletiva politização da justiça.

Outro renomado jurista, o professor Lênio Streck, escreveu em resposta:

Com todo o carinho e respeito que merece o professor Ives Gandra, digo: se o artigo 142 pudesse ser lido desse modo, a democracia estaria em risco a cada decisão do STF e bastaria uma desobediência de um dos demais poderes. A democracia dependeria dos militares e não do poder civil”.

Demonstrando a dimensão do perigo que existe por trás dessa linha de interpretação autoritária da Constituição Federal, Streck complementou:

“Por fim, todos sabemos que, em uma democracia, não há de se falar em autonomia da parte de quem porta armas, como polícias e forças armadas. Por essa razão é que somente um poder eleito poderá dispor da palavra final, como Constituição e lei aqui determinam”.

Defesa da lei e da ordem não significa “licença para matar”. Desculpe leitor, não resisti ao uso de infame metáfora com o espião britânico James Bond, o 007.

Minucioso em seus argumentos, Streck tratou de fazer a ponte necessária entre o texto constitucional e a conjuntura atual do Brasil:

“O fato de, circunstancialmente, o Poder Executivo estar ocupado por alguém que tenha simpatia por AI-5 e quejandos, não pode, nem de longe, dar azo a uma hermenêutica do retrocesso democrático”.

Para quem acha exagero do professor Lênio Streck o capitão/presidente que nos governa tem o precedente apoio de seus colegas de fardas mais graduados. Em outubro de 2017 o general da reserva Luiz Eduardo da Rocha Paiva, em meio à crise do governo Temer, abriu de maneira radical a porteira das interpretações perigosas do artigo 142. Em texto no jornal O Estado de São Paulo escreveu sem nenhum constrangimento ou pudor:

A intervenção militar será legítima e justificável, mesmo sem amparo legal, caso o agravamento da crise política, econômica, social e moral resulte na falência dos Poderes da União, seguida de grave instabilidade institucional com risco de guerra civil, ruptura da unidade política, quebra do regime democrático e perda de soberania pelo Estado”.

O general Rocha Paiva apenas reverberava outro famoso colega de farda. Em setembro de 2017 o agora vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, durante uma conferência para a Loja Maçônica em Brasília, fez a seguinte ameaça baseado no Artigo 142:

“[…] Ou as instituições solucionam o problema político, pela ação do Judiciário, retirando da vida pública esses elementos envolvidos em todos os ilícitos, ou então nós teremos que impor isso”.

É o caso de se perguntar: quem esses generais pensam que são? Não vivemos mais em uma republiqueta de bananas.

O Exército parece carecer permanentemente de nos tentar convencer de que a instituição tem uma espécie de ethos garantidor do equilíbrio social. Fica um alerta para as forças progressistas que um dia voltem a governar o Brasil, que se faça um sério debate sobre o real papel das Forças Armadas em tempos de regime democrático.

O general Mourão e seu parceiro Rocha Paiva não foram os únicos poderosos que invocaram oportunisticamente o Artigo 142. Em 2019, a hoje “anti-bolsonarista” e “defensora” intransigente da ordem democrática, a deputada Joice Hasselman, ao criticar a Segunda Turma do STF por tirar do então juiz Sérgio Moro trechos da delação da Odebrecht contra Lula, a parlamentar invocou o Artigo 142 e vociferou:

“Essa palhaçada tem que acabar. Porque se continuar desse jeito, até quem, até esse momento relutou em falar numa intervenção do Exército, vai falar. Entre eles eu. Entre eles, eu. Se o Supremo continuar agindo como está, o Supremo tem que ser dissolvido”.  

Os bolsonaristas de hoje têm boas referências no passado.

Não sou jurista (somente curioso do Direito), mas como jornalistas, filósofos e outros menos votados resolveram dar opinião sobre o tema, vou tentar entrar no debate usando o lugar de fala do historiador.

Desde já antecipo que apesar de não ter tempo de aprofundar o debate nesse texto, é imprescindível que na base de qualquer discussão em torno do Artigo 142 da CF esteja a disposição da sociedade em debater as funções das Forças Armadas em uma democracia.

O primeiro caminho metodológico do historiador é buscar compreender o momento histórico em que o objeto de análise foi produzido. É preciso entender a cabeça do legislador envolto em uma conjuntura de transição política entre um regime ditatorial e um regime democrático. A função do historiador é cavucar documentos de época, mas, também, tentar entrar na mente dos personagens que desempenhavam os papéis do teatro político.

O Congresso Constituinte que gerou a Constituição Federal de 1988 foi um microcosmo das relações de poder entre as forças políticas que ocupavam a arena da transição brasileira para o regime democrático. Os generais, em despedida, ainda buscavam assegurar para a posteridade alguns resquícios de autoridade e poder. Os civis, encastelados em seus grupos ideológicos ou fisiológicos se digladiavam por hegemonizar os diversos dispositivos legais que compunham os temas da Comissão de Sistematização da futura Carta.

Para os partidos de esquerda a ideia era transformá-la na mais universalista possível, assegurando direitos amplos às camadas mais vulneráveis e resguardando à sociedade civil e aos poderes institucionais mediar a condução do poder público. Por outro lado, os partidos conservadores, muitos contando em suas fileiras com viúvas do regime anterior, buscavam assegurar seus privilégios de classe e estabelecer uma transição  lenta, gradual e controlada. Para tanto, criaram o “Centrão” um conglomerado de partidos de direita (eles continuam firmes até hoje) com o objetivo de preservar uma ordem conciliadora com o regime militar em queda. Portanto, o debate em torno do Artigo 142 do capítulo referente às Forças Armadas, se deu em meio a esse tom de negociação entre as forças conservadoras e os militares. A esses foi garantido, na Nova República,  a manutenção de algum protagonismo no campo político.

Uma rápida leitura nas Constituições republicanas encontraremos desde 1891 o investimento das Forças Armadas na função de garantidor dos poderes constitucionais. Isso é uma prerrogativa bastante perigosa, pois concentra poderes de grande dimensão nas mãos de quem possui as armas. Contudo, essa premissa constitucional somente refletia a ausência, nos períodos anteriores a 1988, de um sistema político que priorizasse a preservação e a legitimidade de relações democráticas.

Mas o diabo gosta de fazer morada nos detalhes. Diferente de suas precedentes, a Constituição de 1988 fez questão de trazer registrada no texto do artigo 142 a expressão “por iniciativa de qualquer destes”. Isso foi o bastante para retirar das Forças Armadas a condição de única grande defensora da lei e da ordem. O Desembargador Reis Friede, em artigo publicado na Revista da Escola Superior de Guerra, intitulado “Do status institucional das Forças Armadas na história constitucional brasileira” afirmou que o objetivo do registro da expressão “por iniciativa de qualquer destes”, “foi justamente evitar o manejo, antes frequente, das Forças Armadas como instrumento de estabilização política, como tantas vezes ocorreu durante o século passado”.

Nesse mesmo artigo, Friede faz uma citação do jornalista Ricardo Noblat que informou em publicação no Jornal do Brasil, em agosto de 1987, o seguinte:

O general Leônidas conheceu um artigo, mas o que saiu impresso no substitutivo foi outro. Os ministros militares queriam – e continuarão querendo – que o artigo reservado ao emprego das Forças Armadas fizesse expressa menção à função delas de garantirem, também, a lei e a ordem, como está dito, por exemplo, na Constituição atual. A referência à manutenção da lei e da ordem desapareceu no substitutivo de Cabral. Poderá retornar depois que o substitutivo for examinado na Comissão de Sistematização”.

A promulgação final do texto constitucional mostra que a referência em relação à lei e a ordem foi mantida no Artigo 142, o que significou, na época, uma vitória dos militares.

O Cabral a quem Noblat se refere é o ex-deputado Bernardo Cabral que dirigiu a Comissão de Sistematização da Constituinte. A função de Cabral passava por mediar  os diversos interesses dos grupos partidários no interior do Congresso. O PT, por exemplo, defendia que o novo texto Constitucional não deveria “permitir, em nível interno, a intervenção das Forças Armadas na vida política do País, restringindo-se sua atuação à garantia da soberania em casos de agressão externa”. Vários partidos de esquerda tinham opinião semelhante. A votação em plenário derrotou o projeto da esquerda. O Centrão, representando os conservadores, aqueles que defendiam uma transição sem rupturas (a democracia paga hoje o preço dessa vergonhosa capitulação), manteve para os militares a função – ainda que por iniciativa dos três poderes – de defesa da lei e da ordem.

Portanto, hoje, apesar de ter sido mantida no texto constitucional, entre as funções das Forças Armadas a defesa da lei e da ordem o simples registro da expressão “por iniciativa de qualquer destes” não lhes concede o direito de tomar o poder político de maneira unilateral e por vias alternativas às previstas na Constituição Federal.

Essa deve ser a premissa democrática básica que deve mediar qualquer interpretação do Artigo 142 da Constituição Federal. Para os bolsonaristas mais exaltados ou mesmo os que não sejam membros da seita, mas têm perfil autoritário, é preciso deixar claro que o Artigo 84 da CF apesar do inciso XIII assegurar ao presidente da República o comando supremo das Forças Armadas, nenhum de seus 27 incisos lhes dá o direito de exercê-lo desrespeitando a Constituição e o Estado Democrático de Direito.

Essa parcela da sociedade que vive de maneira inconsequente a vociferar por uma intervenção militar desconhece profundamente a importância da defesa intransigente da democracia e do equilíbrio entre os poderes para a devida manutenção da lei e da ordem. Quando se diz que falta conhecimento histórico a essa gente, isso não é uma retórica ideológica. Eles estão dentro da bolha bolsonarista, esse mundo paralelo que insiste em negar as evidência e continuar atirando no próprio pé.

Possivelmente foi pensando de forma profética no oculto desejo autoritário dessa  gente que o legislador da Assembleia Constituinte de 1988 resolveu registrar no artigo 60 § 4º., III, como clausula pétrea, de que não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional abolir:

I – a forma federativa de Estado;

II – o voto direto, secreto, universal e periódico;

III – a separação entre os Poderes;

IV – os direitos e garantias individuais.

Os brasileiros que defendem a intervenção militar e usam para isso o Artigo 142 o fazem de má fé. Usam de uma distorção interpretativa que caiba em seus anseios voluntaristas e autoritários. Aproveitam-se da crise da política e do desgaste da própria classe política, para terceirizar às Forças Armadas o exercício da politica e a condução do cambaleante Estado Democrático de Direito. Alguém precisa avisá-los de que não existe uma “intervenção militar constitucional”.

Portanto, repito, urge um sério debate nesse país em torno das verdadeiras funções das Forças Armadas em um contexto de exercício democrático das relações de poder. A jovem democracia brasileira não pode ficar refém de um bando de oportunistas insanos e autoritários. Que a interpretação do Artigo 142 ou da totalidade dos artigos que formam a nossa Carta Magna, parta exclusivamente de uma única premissa, a manutenção e defesa da democracia, do equilíbrio entre os poderes e do respeito ao Estado de Direito. Qualquer coisa diferente disso deve ser veementemente condenada pelos democratas desse país.

Eduardo Borges – Doutor em História/Professor da Uneb Campus XIV

Redação

1 Comentário

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  1. O discurso golpista move montanhas. Retórica retorcida, eufemismos, argumentos falaciosos e distorcidos nao faltam. Iriam poupar a Constituição? Claro que não.
    Bozo, que foi criado no fisiologismo do baixo claro, à base de rachadinhas e outras práticas corruptas porcas, farejou o óbvio com clareza: a saída é pelo fisiologismo mesmo, aproximar os militares dos códigos milicianistas. O militarismo que se quer implantar hoje é ainda pior do que o de 64/68. É um milicianismo, uma tirania de resultado, a “aética da irresponsabilidade”, em que o príncipe fardado, ungido pelos deuses, tudo pode.
    Qual o caminho farejado por Bozo? Fácil: basta empregar em postos civis alguns milhares da caserna e colocar os filhos dos estrelados em cargos comissionados. Os papais afagados, com isso, apoiam qualquer absurdo. Afinal, o patriotismo que alguns desses de farda mofada arrotam, o verde-amarelismo de conveniência, vai até a página 2. Nada que uma boa leva de empreguismo, asponismo, fisiologismo… enfim, um belo nepotismo, não dê jeito.

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