
Juros se aproximam do trilhão
por Paulo Kliass
No penúltimo dia de 2024, o Banco Central (BC) nos brinda com a divulgação de seu Boletim de Estatísticas Fiscais. Nesta edição do documento mensal com informações relevantes para a compreensão dos movimentos associados à implementação da política fiscal os números seguem assustadores. É compreensível que tais informações não tenham sido objeto de comemoração por parte da área de comunicação, que procurou centrar sua atenção nos dados mais positivos. Esse é o caso do que ocorre com o nível de emprego e massa salarial, por exemplo. As novidades são boas e ajudam a compreender as razões que podem levar o crescimento do PIB para este ano a atingir o nível de 3,5%.
No entanto, é bastante preocupante que todo o esforço para efetivar as regras draconianas da austeridade fiscal continue sendo implementado exclusivamente sobre o lombo dos setores de base da nossa vergonhosa pirâmide da desigualdade social e econômica. A confiança que Lula vem depositando em Fernando Haddad desde antes mesmo do início de seu terceiro mandato tem levado o governo a cometer sérios equívocos do ponto de vista da política econômica. Esse foi o caso, por exemplo, da manutenção da essência do austericídio, por meio da substituição do Teto de Gastos de Temer pelo Novo Arcabouço Fiscal. Ao retirar a regra que limitava as despesas orçamentárias da Constituição Federal (Emenda Constitucional nº 95/13) , Haddad convenceu Lula a introduzir o espírito da contenção de gastos na Lei Complementar nº 200/23.
Na sequência, o governo vem se comprometendo com metas tão inexequíveis quanto equivocadas em termos de política fiscal e de política monetária. A obsessão do Ministro da Fazenda com o objetivo de zerar o déficit primário é uma demonstração de bom mocismo junto à turma da Faria Lima e não ajuda em nada a retomada de um necessário projeto de desenvolvimento econômico e social. Por outro lado, a insistência do mesmo com o compromisso irresponsável de uma inflação de 3% ao ano opera como combustível para tresloucada política monetária que mantém a SELIC em níveis cada vez elevadas da estratosfera.
Austeridade fiscal e juros nas alturas.
Assistimos ao desenrolar do enredo de alguns novos episódios neste final do ano da longa temporada da série “Austeridade Fiscal no Brasil”. Apesar de Lula ter estabelecido um limite para o nível das maldades desejadas pelo responsável pela área econômica, o fato é que o resultado foi um conjunto de medidas de redução de despesas orçamentárias que afetam basicamente os miseráveis e os mais pobres. Esse foi o caso do Benefício de Prestação Continuada (BPC), o abono salarial e a redução das regras de reajuste do salário-mínimo. O Presidente deve ter percebido o risco político e eleitoral de avançar na linha proposta por seu auxiliar de retirar da Constituição os pisos para saúde e educação, por exemplo. Mas o espírito de orientar a austeridade sobre os setores que compõem a principal base de apoio ao governo se manteve.
Pois enquanto governo se desgasta com esse tipo de medida no âmbito da dimensão primária de suas despesas, o povo do financismo segue se locupletando com a farra dos recursos bilionários assegurados ao parasitismo. O boletim do BC nos informa que durante o mês de novembro foram transferidos R$ 92 bilhões aos detentores dos títulos da dívida pública brasileira. Ou seja, em um único mês o governo despendeu quase 30% a mais do que as promessas de redução dos gastos em 2025 e 2026 – o pacote das maldades mencionava a diminuição de dispêndios em R$ 71 bi. Como se sabe, a armadilha permanece na manutenção do conceito de “primário”, uma vez que por definição tautológica as despesas financeiras são consideradas como “não primárias”.
Dessa forma, a insistência de promover austeridade e a busca idílica por superávit primário se mantém nos cortes em contas como saúde, previdência social, educação, assistência social, segurança pública, salários de servidores, saneamento, infraestrutura e outras. Mas ninguém ouve de nenhum “especialista” em finanças públicas a serviço do povo da finança que seja uma “gastança irresponsável” esse tipo de despesa com juros. Assim, não existe meta, teto ou contingenciamento para tanto. Aqui, literalmente, o céu é o limite.
Despesas com juros: o céu é limite.
Ocorre que, ao divulgar estes dados, o BC nos permite concluir que ao longo dos último 12 meses (dezembro de 23 a novembro de 24) o montante total de gastos com juros atingiu novo recorde de R$ 918 bi. Uma loucura! Esta é a verdadeira farra com os recursos públicos e não a “fortuna” de um salário-mínimo mensal que o BPC contempla membros idosos ou com deficiência de famílias que contam com uma renda per capita de ¼ do salário-mínimo. Esse valor dos juros representa uma elevação nominal de 28% em relação aos R$ 718 bi que haviam sido gastos em 2023. Vale observar que nenhuma outra rubrica do Orçamento da União foi contemplada com tamanho aumento ao longo do mesmo período. Enquanto a planilha dos responsáveis da Fazenda fica amealhando aqui e ali bilhões das áreas sociais e dos investimentos públicos para perfazer a meta da austeridade, as despesas com juros seguem bombando livremente.
Esta tendência de privilegiar os gastos da administração pública direcionados para a elite de nossa sociedade vem de longa data e não foi alterada em nenhum milímetro nem nenhum centavo sequer desde janeiro do ano passado. O gráfico abaixo nos exibe os valores reais do total de pagamento de juros. Como diria Lula, “nunca antes na História deste País” se transferiu tanto recurso público para os setores privilegiados.

Em 2025 juros próximos de R$ 1 trilhão!
Outro problema associado a este movimento refere-se às decisões do Comitê de Política Monetária (COPOM). Os dados de novembro não incorporam os efeitos das decisões do colegiado, que elevaram a SELIC em 0,5% e 1% nas 2 reuniões mais recentes. Como a taxa oficial de juros opera como uma referência para remuneração dos títulos da dívida pública, é de esperar que as próximas edições do Boletim do BC revelem o montante anual de despesas com juros se aproximando perigosamente da marca de R$ 1 trilhão. Nem mesmo Paulo Guedes, que tinha uma fixação inexplicável com tal cifra, poderia imaginar que essa façanha caberia a seu sucessor no comando da economia.
O quadro se agrava ainda mais se levarmos em consideração as recomendações do COPOM para as próximas reuniões. A Ata mais recente que elevou a SELIC para 12,25% já avançou a séria possibilidade de realizar mais 2 reajustes de 1% para os encontros previstos para janeiro e março:
(…) “O Comitê então decidiu, unanimemente, pela elevação de 1,00 ponto percentual na taxa Selic e pela comunicação de que, em se confirmando o cenário esperado, antevê ajuste de mesma magnitude nas próximas duas reuniões” (…)
Assim, o que se deveria esperar de Lula é que ele exija de seu indicado para a Presidência do BC o mesmo comportamento que ele cobrava de Roberto Campos Neto. Assim quando Gabriel Galípolo assumir o órgão, ele deveria comandar um processo de redução da SELIC. No entanto, a se considerar a aparição pública que o Chefe do Executivo fez com o futuro comandante do COPOM, é bem difícil que isso ocorra. Ao contrário, Lula deu apoio explícito à condução futura do responsável pelo órgão de regulação e fiscalização do sistema bancário e financeiro. Desta forma, caso nada seja feito, é bem provável que o governo bata mais um recorde em termos de política econômica: antes do final do primeiro trimestre de 2025, o montante anual de despesas com juros terá ultrapassado o patamar simbólico de um trilhão de reais.
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
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Como já mencionei em outros comentários, em 2002 o PT e Lula fizeram uma inflexão aguda no social liberalismo, herdado do tucanato.
A agenda enunciada pela Carta aos Brasileiros não deixava dúvidas.
Não haveria qualquer espaço para a busca por um estado de bem estar social, que ousasse mexer nas estruturas da desigualde social, mantidas por uma tributação regressiva.
As taxas de juros praticadas nos dois primeiros mandatos oscilaram sempre em patamares altos.
Mesmo que a folga das comoditties permitisse equilibrar a inflação (acho que ainda não havia as famigeradas metas), balança comercial, câmbio, reservas, enfim, ainda que os marcadores macroeconômicos estivessem “controlados”, mantiveram o pé no acelerador dos juros…
https://www.bcb.gov.br/controleinflacao/historicotaxasjuros
A engenhosidade política de Lula permitiu aproveitar uma breve expansão da base de consumo, reprimida há décadas antes das políticas compensatórias do período 2003/2006.
Uma (falsa) sensação de prosperidade que não resistiu ao primeiro inverno.
A essência da desigualdade se manteve intacta, ou seja, não houve a chamada mobilidade social preconizada pelos ideólogos do regime lulista, como Jessé de Souza, e a sua, já desmascarada, tese da nova classe média ou classe pobre emergente, a classe “C”.
Tão logo houve um recrudescimento do ultra liberalismo predatório de Temer e Bolsonaro, milhões acordaram na mesma faixa de miséria de sempre.
De nada adiantaram as aquisições de geladeiras, TV, carros ou passagens de avião.
Tudo isso foi pelo ralo, assim que a porca capitalista torceu o rabo, e aumentou a concentração de renda no topo da pirâmide, em níveis jamais vistos.
O capital político de Lula e do PT não sobreviveram às restrições do período Dilma, e já naquela época era possível enxergar a cadela do fascismo jurídico-parlamentar, no cio desde o mensalão de 2006.
Aqui um parêntese:
Foi em Dilma que o PT experimentou a menor taxa de juros reais da série histórica, algo perto de 2%, com uma taxa de desemprego de 7%, e alguma expansão do PIB.
Quando declarou o plano plurianual da Petrobrás (120 bi/decênio), o uso de parte das rendas do pré sal em educação e saúde, e o avanço do uso da tecnologia nuclear em submarinos (cruciais na defesa do petróleo), foi golpeada pela “primavera dos 0.20 centavos”, pilotada por STF, Cunha & Cia.
Dilma cometeu erros?
Muitos, mas caiu pelos acertos e sim, foi abandonada a própria sorte pela hesitação de Lula e do PT em sair a campo em sua defesa.
Foi sabotada dentro de seu quintal.
A então ortodoxia petista, hoje hegemônica no atual governo, fez o que pode para fazer coro aos “especialistas do mercado”, bestas do fim do mundo, que urravam em editoriais pela volta dos juros.
Abstinência severa, e saíram a campo como os zumbis da Cracolândia.
É verdade que pouco poderia ser feito, porque os EUA haviam dado a ordem.
Mas era obrigatória a resistência.
Dilma caiu, Lula se entregou.
Resultado?
Mesmo com o retorno de Lula, e a acomodação de Dilma em uma espécie de “prêmio de consolação “, o governo Lula 3 é uma sombra pálida daquele social liberalismo de 2003.
Restou apenas o liberalismo rentista, a covardia institucional, o cansaço trazido pela repetição de fórmulas para problemas diferentes.
Nada mais de preocupação social.
Lula se encaminha, a passos largos, para o aterro sanitário da História.
A questão nem é se vai ou não se reeleger.
O estrago causado por Lula e pelo PT vai muito além de sucessos eleitorais.
O que está em curso é a morte da esperança.