Conexões – espiritualidade, política e educação - Dora Incontri
Dora Incontri é paulistana, nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora
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Linchamento virtual – uma prática de ódio de todos os lados, por Dora Incontri

O que está se destruindo com todo esse discurso ralo e odiento nas redes sociais é a capacidade de raciocinar, de argumentar.

seventeeth century fresco of an agressive mob of children throwing stones at a man

Linchamento virtual – uma prática de ódio de todos os lados

por Dora Incontri

Tudo o que vou falar aqui são obviedades. Mas o trágico de nossos tempos é que é preciso proclamar o óbvio aos quatro ventos das redes, porque é justamente o óbvio que perdeu espaço na irracionalidade vigente.

Vou falar sobre discursos de ódio, linchamento virtual, cancelamento e todas essas mazelas de nossas redes. Ao invés (ou às vezes, antes) de eliminar alguém fisicamente, com uma bala, há hoje a possibilidade de se eliminar a reputação, a honra e sobretudo, a paz de alguém, arrancando sua cidadania digital.

Para discutirmos essa questão é preciso diferenciar bem o que é crime, o que é debate, o que é opinião… Crime é clara incitação à violência, ao terrorismo, atos de racismo, pedofilia, exposição da imagem alheia (sem autorização). Então, pessoas que praticam tais crimes devem ser denunciadas às próprias redes sociais e/ou à polícia. Mesmo assim, não é preciso que aqueles que estejam indignados com esses atos trucidem digitalmente seus autores. Já basta a sanção da lei. Assim como alguém que comete um crime não pode e não deve ser linchado fisicamente, não deveria ser linchado virtualmente. O linchamento é sempre injusto, exagerado, cheio de ódio e rebaixa o linchador ao nível de quem cometeu ou crime. É como se quiséssemos apagar um incêndio com gasolina. Ou reverter um crime com outro crime. Consertar uma injustiça com outra injustiça, às vezes até maior.

O ódio enceguece, é incapaz de ver nuanças. Por isso, muitas vezes o que está possuído pela fúria supostamente santa de varrer criminosos ou apenas politicamente incorretos ou adversários de seus pontos de vistas, pode sofrer de uma restrição cognitiva temporária ou permanente que consiste em: 1) rotular rápida e sumariamente o outro, sem entender qualquer sutileza do pensamento; 2) não escutar o outro, dando espaço para entender o que o outro está dizendo ou ainda qual emoção está sendo expressa mesmo quando o outro diz coisas que nos parecem bárbaras (o outro está bem psiquicamente? Está consciente do que está dizendo? Está manifestando alguma revolta justificável ou pelo menos compreensível?) 3) atacar sem escutar, usar jargões generalistas e ofensivos e obstruir qualquer possibilidade de diálogo.

O que está se destruindo com todo esse discurso ralo e odiento nas redes sociais é a capacidade de raciocinar, de argumentar. A razão em declínio e na esteira da razão, a ciência, a filosofia e todo conhecimento humano. Tudo vira uma questão de lado, de torcida, de paixão desmedida. Não é à toa que temos hoje terraplanistas no mundo.

Já falei aqui do dano mundial que as Fekes News estão promovendo em toda parte, inclusive facilitando a ascensão e manutenção de governos nazifascistas (o nazifascismo é sobretudo um discurso de ódio). Ora, justamente um antídoto contra essas Fake News é recuperar o pensamento racional, o poder de argumentação, a valorização da pesquisa, da ciência e não o discurso esvaziado do achismo de cada um.

Outra questão que me parece mais aflitiva são os discursos de ódio dentro dos grupos que pressupostamente estão do mesmo lado. Então, há cartilhas em cada gueto e quem não segue a cartilha em todos os pontos tenderá a ser desqualificado e linchado pelo seu próprio gueto. Eu por exemplo, sou de esquerda, mas não sou marxista, sou anarquista e espírita, anarquista e partidária da não violência. Já tenho aí vários motivos para ser aniquilada: a esquerda não pode aceitar que anarquistas e marxistas dialoguem? Que partidários da não violência e partidários da luta armada argumentem, respeitando os pontos de vista uns dos outros? Ou é preciso ser anarquista ateu? Não pode haver um anarquismo que inclua a espiritualidade? Ou seja, não há possibilidade de diversidade, debate educado e respeito às posições alheias? Cada qual com sua cartilha irredutível… e assim como há fundamentalismo e fanatismo religioso, que não se compadece com a diversidade de cultos, há fundamentalismo político e fanatismo em determinadas agendas de grupos, que não aceita o debate claro e procura linchar quem pensa diferente!

As mentes realmente independentes não seguem cartilha alguma, sempre mantêm aceso o espírito crítico e não precisam “matar” quem pensa diferente.

Como sempre insisto em muitos textos, para mudar essa situação deprimente, em que vemos pessoas amigas e do mesmo lado (sem mencionar as “inimigas” de lados opostos) se cancelando e se difamando nas redes, porque tiveram alguma discordância num ponto específico, há dois caminhos complementares e urgentes: educação e terapia. Educação no sentido da polidez, do respeito, da civilidade, mas também educação no sentido do conhecimento sólido, da autonomia de pensamento, de alguma base científica e filosófica. E terapia, para que o indivíduo não saia por aí distribuindo patadas como forma de liberar recalques e fugir de traumas.

 

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Dora Incontri é paulistana, nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora

2 Comentários

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  1. A autora usa um verbo que eu não conhecia: “enceguecer”. Não seria mais fácil e melhor português o mais simples e direto “cegar”?
    (Espero que ela não considere este pequeno comentário como linchamento virtual).

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