André Roncaglia
Estudante deslumbrado com a complexidade da economia e das ferramentas que a ciência econômica oferece.
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Mais um teto capenga sobre a nossa cabeça, por André Roncaglia

Em mais um terraplanismo econômico semanal, Guedes soma a carga tributária ao déficit fiscal para mostrar como o Estado brasileiro é pesado. Esta nova contabilidade criativa é mais uma falácia de uma equipe econômica comprometida com o emagrecimento intransigente do Estado.

Foto Fundação Astrojildo Pereira

Mais um teto capenga sobre a nossa cabeça

por André Roncaglia

A decretação da calamidade pública e a PEC do orçamento de guerra suspenderam, até o final do ano, as metas de superávit primário e a regra de ouro da política fiscal. Ainda que a atuação federal tenha sido tímida e tardia, o déficit público deve alcançar 9% do PIB em 2020 e a dívida pública deve ultrapassar os 90% do PIB. O dinheiro continua escasso para milhões de empresas e famílias, mas o debate público foi rapidamente dominado por temores quanto ao controle dos gastos no pós-pandemia.

Paulo Guedes passou, então, a ventilar a proposta de um teto para a dívida pública. Batido o limite, acionam-se “gatilhos” que levam à venda de ativos da União para pagar pelos gastos em excesso. Este ajuste patrimonial é mais uma das facetas do liquidacionismo que caracteriza a visão de Guedes. No limite, ele deseja reduzir nosso Estado para que ele caiba em sua mistificação teórica: a família como arquétipo econômico. Como o tema é árido, a fábula a seguir ajuda a identificar os mecanismos fiscais e seus efeitos sobre a economia.

Estado como uma família

Imaginemos que o Estado enfrente as mesmas restrições financeiras que uma família. A regra de ouro das finanças domésticas obriga a família a apenas se endividar se for comprar ou reformar a casa ou um curso de qualificação etc. Nada de contrair dívida para bancar um final de semana na praia. Afinal, dívida acumula juros e precisa ser paga com os retornos dos investimentos feitos com o dinheiro emprestado.

A responsabilidade fiscal exige que a família apenas aumente gastos se previr fontes adicionais de renda. Por exemplo, os jantares semanais fora de casa precisam ser pagos com renda adicional, para não sacrificar o pagamento da conta de água ou o material escolar dos filhos. Sem aumento da renda, sem gasto adicional.

Em terceiro lugar, para evitar prodigalidade, a herança milionária que a família recebeu de um parente rico não pode ser utilizada para aumentar o consumo da família.

Porém, um certo dia, o pai da família perde seu emprego, o que diminui bruscamente a renda, enquanto as contas crescem. Inevitavelmente, a família passa a usar o cheque especial do banco para manter o padrão de vida anterior. A cada mês, o limite do cheque especial é atingido. Visitas sucessivas à agência bancária buscam ampliar os limites do cheque especial e do cartão de crédito. Confiantes de que esta é uma situação passageira, a família amplia seu endividamento. Em pouco tempo, acreditam, o pai encontrará um emprego melhor e, assim, poderá pagar a dívida. A herança recebida serve como garantia de que haverá dinheiro para pagar a dívida no futuro, muito embora não possa ser utilizada hoje.

Preocupada com o avanço da dívida no banco, a mãe estabelece um limite aos gastos. As despesas da família só podem crescer pela taxa de inflação do ano anterior. Suponha que esta última tenha sido 3%; se a conta de energia elétrica subiu 5%, estes 2% em excesso precisam ser cortados em outra conta, por exemplo, na assinatura do serviço de streaming, nas viagens de férias, na compra de livros ou de medicamentos etc.

A revolta cresce dentro do lar quando a mãe esclarece que, mesmo se ela receber um bônus da empresa onde trabalha, a renda adicional só poderá ser usada para quitar as dívidas contraídas para comprar a casa, o automóvel etc.

Como a inflação vinha mais alta nos anos anteriores, o teto não se fez sentir. Porém, com o desemprego do marido, o uso do cheque especial cresceu muito. Mesmo com taxas de juros caindo, a dívida cresce por que a família constantemente entra em brigas a respeito da prioridade das despesas. Para manter a paz, a mãe ia pedindo extensão do limite do cheque especial para acomodar todas as demandas.

A mãe se dá conta, então, de que o consumo da família produz muita desigualdade dentro do lar. Enquanto o marido usa gasolina aditivada em seu carro de luxo, o caçula mal consegue pagar suas aulas de inglês. A filha mais velha deixa de ir ao médico por que a mãe quer o novo smartphone da moda. Prioridades… você sabe como é.

O pavor toma conta dos pais quando eles notam a trajetória da dívida. A família precisa de disciplina para focar no que importa. É hora de fazer uma correção de rumos que seja crível. Os pais decidem que não voltarão a pedir extensão do limite do cheque especial. Se a família ainda assim não reduzir o consumo, começarão a vender o automóvel, o sofá, a televisão, os computadores, a própria casa… tudo para pagar pelos jantares fora de casa, pelas viagens e pela mesada dos filhos. Esperam, com isso, explicitar aos membros da família a necessidade de rever as prioridades e de viver dentro dos limites da renda familiar.

A mãe sobe o tom e adverte: “mesmo se o banco subir a taxa de juros do cheque especial, não pediremos um limite maior. Venderemos até ‘o Banco do Brasil’. Acabou, porra! A partir de agora, é ‘faca na caveira’. Selva!!!”

A metáfora se perdeu, eu sei. Mas você pegou a ideia: o “limite de gastos” é o teto da Emenda Constitucional 95, aprovada em tempo recorde e com pouco debate em 15 de dezembro de 2016; A “herança milionária” é o poder emissor do Banco Central, o “bônus da empresa” é a receita não recorrente do Estado e o “limite do cheque especial” é o novo teto da dívida pública.

Paulo Guedes quer impor uma restrição orçamentária rígida ao Estado em meio à maior calamidade da história do país. Ele quer que o Estado funcione como uma família ou uma empresa, talvez para se servir de sua experiência empresarial. Para isso está disposto a manipular conceitos, somando carga tributária ao déficit nominal para vender a ideia de que o Brasil taxa excessivamente a sua população (vídeo explicativo aqui e dados aqui). Sua esperança é que isso convença o Congresso a acelerar as reformas que desobrigam gastos obrigatórios e facilitam as privatizações.

O liquidacionismo de Guedes é uma condição de saúde que precisaria de tratamento psicológico. No entanto, sua correção definitiva virá por meio das urnas, sob pena de tais vícios privados levarem à destruição de toda e qualquer virtude ligada à coisa pública. Não precisamos de mais um teto a colapsar sobre nossas cabeças. Precisamos de fundamentos econômicos sólidos, a começar por uma estrutura tributária mais progressiva em que os ricos deem sua parte para manter a cidadania e a democracia operantes.

O Estado não precisa de desnutrição, mas de se exercitar, de forma a construir a capacidade “muscular” para auxiliar a economia em todos os momentos, não apenas nas crises. É hora de abandonar fadas e fábulas e começar a enfrentar a realidade.

André Roncaglia é professor de economia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e pesquisador associado do CEBRAP. Twitter: @andreroncaglia

* Uma versão estendida do argumento foi publicada no Portal Disparada.

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