Marx de “carro velho”
por Ricardo Cappelli
Começaram os testes com caminhões autônomos nos Estados Unidos. Eles entram em rodovias movimentadas, trocam de faixa, freiam e aceleram sem ninguém ao volante.
Existem nos EUA mais de 1,8 milhão de caminhoneiros. O veículo autônomo não precisa parar para que o motorista vá ao banheiro, não sente cansaço e roda 24 horas.
Em boa parte das fábricas, a presença de um sapiens está com os dias contados.
No recente debate sobre a reforma da previdência, o economista João Sayad disse que a esquerda parecia querer consertar “carro velho”, afirmando que o mundo do trabalho sobre o qual se assenta a atual estrutura da seguridade social não existirá mais daqui a dez anos.
O marxismo continua atual. O desenvolvimento das forças produtivas com a internet 5G, inteligência artificial e outros feitos notáveis, sinaliza a implosão do trabalho nos meios de produção.
Se não existirão mais operários, como fica a teoria em torno da revolucionária classe operária?
A esquerda marxista se construiu sobre o mito do operariado como núcleo e motor da luta de classes, apesar dos exemplos históricos não confirmarem esta vontade.
A Rússia migrou de uma monarquia agrária, com incipiente sociedade industrial, direto para o socialismo. Ninguém conhece as fábricas de onde emergiram Ho Chi Minh, Fidel, Che, Mao, Lênin ou Stalin, simplesmente porque nunca foram líderes operários.
Lula, extraordinária liderança operária, chegou ao poder pelo voto. Social democrata convicto, nunca nutriu simpatia pela palavra revolução.
Ao acabar com os operários inaugurando fábricas autônomas, o capitalismo pode ter resolvido a questão do mito antes da esquerda.
O Brasil possui mais de 12 milhões de desempregados. Possuímos a terceira maior população carcerária do planeta. Temos impressionantes 812 mil presos. Destes, mais de 40% são “Lulas”, pessoas presas provisoriamente, sem julgamento definitivo.
O número de desalentados e excluídos não para de crescer. Marx previu o fim do trabalho. A evolução das forças produtivas e suas contradições nos levariam ao socialismo, com as pessoas se dedicando cada vez mais às tarefas lúdicas. Seria o triunfo do “ócio criativo e harmonioso”.
Concentração histórica de riqueza, exclusão em massa e precarização das relações de trabalho, com jornadas desumanas, são a tônica atual. Estamos à beira de uma virada histórica?
Não é o que parece. Seria uma arrogância sem tamanho acreditar que só um lado vê os dilemas. A principal bandeira dos bilionários mundiais se tornou a “Renda Mínima Universal”. Que tal?
Um gigante colchão de morfina para subcidadãos condenados a viver eternamente “no canil”. Para o cãozinho não morder, doses homeopáticas de ração, todos os dias.
No debacle da glamurosa classe operária, o desafio da esquerda parece ser dialogar com os excluídos, os “inúteis”, os “inimpregáveis”. Enquanto falta a este encontro, as almas vão sendo colhidas e acalentadas por quem os promete o céu.
Marx é imprescindível. Mas, de fusca em pleno século XXI, é pouco provável que vá muito longe.
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Ótimo começo de uma discussão que consumirá ainda muitos anos, tinta e papel.
Uma pequena ressalva, no entanto. É fato que as revoluções chinesa, vietnamita e cubana, para ficar nas vitoriosas, não foram revoluções proletárias. As duas primeiras foram camponesas, ainda que dirigidas por partidos que se identificavam, através do marxismo e de suas filiações internacionais, com um proletariado ainda “por vir”. A cubana, sequer foi camponesa, mas também terminou, e, em parte, começou, sendo dirigida pro uma vanguarda marxista identificada com o proletariado “por vir”. O caso da revolução russa foi diferente. Foi uma revolução proletária. Ainda que em um país agrário, teve sua força social principal na classe operária e foi dirigida por um partido identificado e embasado nela. O atraso da Rússia, o cerco do capitalismo, a ascensão de uma burocracia de Estado e mais um montão de fatores levaram-na ao fracasso. Por sua vez, é muito difícil ver em Cuba e mesmo na China experiências que prefigurem sociedades socialistas como pretenderam seus líderes revolucionários. O fato é que uma sociedade mais social e democrática, socialista na tradição histórica que não acho que devamos renunciar, ainda está por ser inventada, na prática e na teoria. E no capitalismo de hoje, isso não virá de uma classe operária, que desaparece, nem exclusivamente do marxismo, este, no meu entender, ainda vivo.
Caro Ricardo,
Você colocou o dedo na ferida: do capitalismo atual, mas também do marxismo tradicional/operário. O trabalho está obsoleto, massas e massas de pessoas estão se tornando supérfluas para o siste(desempregadas e subbempregadas) e os trabalhadores que restam são superexplorados e estão atomizados e sem força política. A emancipação do capitalismo, se vier, não será pelo trabalho. Ela terá que ser contra o trabalho, justamente porque este está finalmente se tornando obsoleto.
Há uma vertente marxista que vê este dileme com toda clareza, que é a “Crítica do valor” e que escreveu, inclusive um “Manifesto contra o trabalho”. Ela relega a luta de classes para segundo plano, como um conflito interno ao capitalismo, incapaz de proporcionar a emancipação e ressalta a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas (a automação) e a obsolescência do trabalho. Como este último é a única fonte de valor, com sua obsoslescência é o próprio valor (capital) que se desvaloriza. Trazendo para o mundo real, a produção de mercadorias não está dando lucro o suficiente a nível global – por isso a montanha de dívida impagável (capital fictício) cresce sem parar, para sustentar o vício de capital que o sistema não consegue mais reproduzir com seus meios produtivos.
O fascismo avança sobre as frustrações e desespero das classes médias e da ralé e a esquerda tradicional, que só consegue sonhar com um mundo de trabalho bem remunerado está completamente desacreditada, pois no fundo todos sabem que esta “utopia” social-democrata não é mais realizável em lugar nenhum do mundo.
A saída é ter a coragem de propor um outro mundo, extremamente desenvolvido tecnologicamente, organizado em comunidades sem trabalho abstrato, onde as tarefas humanas que restarem (não forem automatizadas) sejam divididas igualmente entre todos, como se faz no serviço de casa, por exemplo. O que proporcionaria uma grande quantidade de tempo livre para todos. Neste mundo, as decisões eriam coletivas e não haveria valor, dinheiro, trabalho ou estado. É isto o a barbárie neoliberal/fascista que se anuncia.
Desde quando Estado de bem-estar e marxismo sao sinônimos?
A esquerda está em campanha para consertar o “carro velho” pela via da anacronica luta de classes? De fato?
1. É a esquerda intelectual e parlamentar a mentora da renda mínima universal.
2. O próprio texto do autor ilustra a confusao conceitual ao se remeter à figura de Lula, que nunca teria sido simpático ao maxismo.
O autor tenta colocar na conta de Marx a precariedade de uma esquerda que nunca foi marxista, para amparar isso conta com uma leitura histórica nao menos genial… pois vejam, sequer o socialismo real teria reproduzido com rigor as teses do marxismo.
Confusões:
1) Sobre o termo “operário”: é aquele que opera, que põe a mão na massa. Não necessariamente trabalhador da indústria como se convencionou pensar. Motorista de Uber é classe operária. Empregada doméstica é classe operária. Frentista de posto é classe operária. Enfim, classe operária é a classe trabalhadora.
2) Classe social não está associada com emprego. Como se quem está desempregado não pertencesse a uma classe social. A classe trabalhadora o é não porque tem emprego e trabalha, mas porque só dispõe da FORÇA DE TRABALHO para sobreviver. Isto é, esses novos desempregados do século XXI são classe trabalhadora.
3) O embate de classes entre a burguesia que domina o sistema econômico, social e político e aqueles que são oprimidos pela violência estatal, ideologia televisiva e pilhagem imperialista permanece mais vivo que nunca. Na verdade, o desemprego só acentua a luta de classes.
Conclusão: por uma confusão conceitual, toda a lógica interna do artigo é nula. Embora os enunciados isolados do artigo possam ser fatos verdadeiros, a “amarração” é absolutamente equivocada.
Prezado André. Acho que não. A questão levantada não é de lógica e, muito menos, de semântica. O problema é histórico e diz respeito ao desenvolvimento do capitalismo, às condições em que passaram a se dar os conflitos de classe e o que o marxismo disse e tem a dizer sobre isso. A classe operária, uma parcela dos trabalhadores em geral, é claro, era tida como o sujeito histórico e social da revolução, exatamente pelas condições específicas de sua posição nas relações de produção que favoreciam seu crescimento, sua organização e sua conscientização. Isso mudou e a organização dos trabalhadores em geral é muito mais difícil e ainda não estão claros, se é que um dia estarão, os caminhos que essa organização tomará.
Penso que se adotassemos semelhantes leis agora os valores das custas judiciais teriam uma expressiva diminuição.