Meu “Bom Juiz” – Bezerra da Silva e a operação Lava Jato

A utilização dos meios jurídicos e policiais para fins políticos não foi instituída pela lava-jato, mas sua sistematização, enquanto mecanismo de afrouxamento da lei, tornou a cena política refém de si mesma

Por Nathan Caixeta*

Quando iniciada, a operação lava-jato não apresentava os sinais do que viria a se tornar. Investigações policiais que levavam a “trilha” do dinheiro público ao particularismo político, ou rastreavam as origens das relações incestuosas entre grandes empresas privadas e o poder público não eram novidade no país. Nem era novidade, o decantamento da corrupção como “o problema do país”. Antes da luta pela moralização da política e as CPI’s que marcaram o Brasil dos anos 1990, Jânio Quadros já havia ameaçado a corrupção com sua vassoura. Igualmente, o fez Fernando Collor ao caçar marajás. As empresas estatais já tinham seus balanços financeiros remexidos por todos os lados, os partidos e os políticos já se encontravam na folha de pagamento das empresas privadas no tempo da ditadura militar.

Rastrear a corrupção no Brasil nos levaria a carta de Pedro Vaz de Caminha, mas sem fôlego para tanto, relembremos o caso denunciado pelo Filosofo e Cientista Político Paulo Arantes no artigo “o que restou da ditadura?”. Arantes descreve a cena de um forte mandatário das diretrizes econômicas do governo militar “passando o chapéu” em uma reunião com empresários para recolher fundos que financiariam os órgãos de repressão do regime. A anistia política passou para a história como episódio confuso da redemocratização do país, varrendo para debaixo do tapete não apenas os atos pudendos de torturadores e genocidas, mas também de quem os financiou. Obviamente, o DOI-CODI não foi o primeiro a ter “caixa 2”.

O que diferenciou de longe a operação lava-jato não foi sua estrutura de investigação, tampouco sua extensão, mas a simbólica conjuntura que o envolvia, gerando impactos políticos e econômicos que só a distância do tempo tem permitido avaliar. Ainda assim, conferiu a jurisprudência o poder de operar acima da lei. Se a distorção do republicanismo virou a mesa política com a derrubada de Dilma, assim também tem ocorrido com o governo Bolsonaro. A utilização dos meios jurídicos e policiais para fins políticos não foi instituída pela lava-jato, mas sua sistematização, enquanto mecanismo de afrouxamento da lei, tornou a cena política refém de si mesma.

O brusco movimento da operação lava-jato com a prisão de dois presidentes, interferências diretas nas ações do governo Dilma, e confessional ato simbólico de refundação da moralidade nacional, acabou por punir empresas estatais e privadas, deixando as pontas soltas dos crimes, as pessoas que os praticaram, sob a tenra sentença de prisões domiciliares, celas separadas dos crimes comuns, dando ainda mais destaque ao “marco-zero” que pretendia fundar. No filão das denúncias, investigações e prisões, ascenderam politicamente diversas figuras, sejam aquelas de pouca expressão no cenário político, como o Presidente, e outras que surfaram na onda, e receberam sua coroa em 2018, o Governador João Doria, “Youtubers” e celebridades que viraram políticos, e até mesmo o Juiz encarregado de conduzir as sentenças da operação, Sergio Moro. A eleição de Bolsonaro premiou quem dela fez de “grito chucro e conservador” em realidade. Como se sabe, o status de vidraça é bem mais incomodo do que o de “pedregulho” e quando chegada a hora de “administrar” o caos, Bolsonaro fez do caos sua ferramenta, elegendo seus aliados como inimigos.

As controvérsias que rondam o presidente superam em muito seus deslizes, preconceitos e atos de tragicomédia. Sem perceber, o redemoinho que o elegeu ao ser fomentado enquanto pratica de governo acabou por engoli-lo. Nada menos simbólico do que o mesmo aparato que elevou Sergio Moro, de Juiz à Ministro, de “estrela” do governo para “Comunista”, de “outsider” à réu, aparecer para “limpar” a bagunça. O mesmo sistema jurídico que protegeu a operação lava-jato e sua forma de operação, utiliza os mesmos meios para catapultar Lula, principal “aquisição” da lava-jato, ao status de presidenciável.

Contudo, não se pode deixar que a sedução do autoengano empurre o mecanismo da jurisprudência para o monopólio partidário, tão pouco para os extremos da disputa ideológica. É bem verdade que a operação Lava-Jato e  o STF nunca entraram em sintonia, senão nas conjunturas em que a colaboração compensou mais do que o conflito. Desfeita, a operação lava-jato serviu para alinhar o mecanismo entre a investigação de “alto escalão” do ministério público e a instância máxima do judiciário. Disposto ao cenário político, a “sentença” de cartas marcadas contorce a lei ao sabor da disputa diária, ao estado momentâneo da correlação de forças políticas.

Por desfruto do símbolo, trarei o “mestre da Malandragem” Bezerra da Silva para o palco de ilusões, usando o maior símbolo contemporâneo da desordem da jurisprudência, procurando desvelar as conexões entre os movimentos recentes da Política Brasileira e o mecanismo da jurisprudência como monumento apoteótico da moral pública.

“Meu Bom Juiz”

A música “meu bom juiz” marca o repertorio do raro sambista Bezerra da Silva que fez da favela seu palco, do papel e da caneta suas armas, do partido alto “sem nó na garganta” seu lema e da boa malandragem sua conduta. Composta em homenagem a um dos principais figurões das páginas policiais cariocas durante as décadas de 1980 e 1990, esse patrimônio cultural da periferia denuncia em âmbito microscópico os transvios de julgamento do “bom juiz” ante ao embate entre a realidade da favela e da pobreza, protegida pelo “espirito da comunidade”, e os desmandos dos poderosos que perseguem a manutenção da miséria como forma de manutenção do status quo, bem justificada pelas perspectivas intelectuais do progresso social.

A política do dinheiro

Entender e transpor para nossos dias o ritmo de Bezerra requer que voltemos um passo de uma década atrás. O Brasil experimentava franca ascensão social e descontados os desvios neoliberais na condução econômica, os bons ventos que marcaram a primeira década do milênio haviam inaugurado uma encruzilhada entre afluência social dos mais pobres e a conservação do atraso social como mecanismo de reprodução da estrutura de interesses que, até hoje, vai muito além da elevada concentração de renda existente no país, mas encontra vazão no incesto entre o interesse dos poderosos e de uma classe política cooptada para a reprodução de tais interesses. O vácuo inaugurado pelo avanço social dos mais necessitados por muito encontrou sua solvência na conciliação, como revelou o “lema” tão comemorado pelo progressismo: “a boa política se faz colocando o operário e o banqueiro para conversar”.

Se a virtude do progressismo enquanto esteve no poder verificou-se na conciliação entre o avanço da “agenda social” ao mesmo tempo em que mantinha e alimentava o circuito de interesses da “elite”, sua desgraça não havia de encontrar-se longe deste redemoinho. Nem mesmo, o nascimento da chamada “Nova classe média” constituiu base forte o suficiente para romper com os particularismos na condução do “público”, tão pouco foram combatidas severamente a concentração de renda. Curiosamente, o “ponto de ruptura” não se deu a partir de um golpe contra os interesses do “povo”, mas no transbordamento do “homem cordial” de Buarque de Holanda pela selvageria, fruto e vazão do ressentimento.

Se os protestos de Julho de 2013 acenderam os faróis para a percepção de que “os ventos estavam mudando”, os meios pelos quais se processaram as recentes mudanças do cenário político passaram distante da vergonhosa disputa diletante entre “direita e esquerda”, “moral e corrupção”, “bem e mal”, sendo estes apenas adesivos que colorem, de um lado o “sangue-azul” da elite, de outro a vermelhidão das bandeiras progressistas, bem mescladas pelo “verde-militar”.

A chamada “classe-média” em seu mimetismo trouxe às ruas a insatisfação da elite, enquanto o dinheiro de “quem tem” flutuava buscando boas oportunidades em meio à liquidação da riqueza trazida pelo caos político. A pobreza atenuada pelo avanço das políticas sociais persistiu tão miserável quanto antes, porém devastada pelo desemprego. A classe política assistiu a mutação social de perto, verificando que deter a dianteira no jogo de interesses não coroa ninguém, apenas empurra mais facilmente para a eliminação.

O meio jurídico, por sua natureza, amarrado à lei, é capaz de por isso mesmo subverte-la, sem a pena da indiscrição. As togas substituem a imagem do “Rei Sol”, legando à cordialidade do “homem da lei”, as prerrogativas para atuar como “saneador moral da nação”. Os ventos e contraventos do estado de coisas político flamulam entre a moderação e o extremismo, quando a calmaria dá vez a bonança, ou é dispensada pelo desejo do caos. Passada uma década, a ordem dos fatores não alterou o resultado, embora a magnitude das apostas tenha crescido enormemente.

Não se tratou de tirar o povo do poder, tão pouco de impor a tirania das armas, mas de repor pela violência e pela lei, o mesmo mecanismo de sustentação da ordem social desigual. Neoliberais eram os governos ditos progressistas, neoliberal persistiram os governos conservadores. Qual a diferença concreta entre eles, senão a substituição do “cafezinho com aperto de mãos, pela canetada num mandado de prisão, ou a inflamação do caos no ‘messiânico’ exercício da destruição”?

Lula e Jair Bolsonaro não se antepõe pela linha ideológica mal demarcada pelos chavões habituais, tão pouco figuram nos extremos da moralidade, são, pois, expressões dissonantes de um mesmo processo: a movimentação de peões num tabuleiro que em muito suplanta os três poderes, que move a grande mídia como cão numa caça às bruxas da vez, que inflama e sossega as insatisfações sociais quando verificada, ora a estabilidade, ora a necessidade de mudança. A ferramenta jurídica, o martelo do bom juiz, espanca o tratado republicano, quando a política, por si, não é capaz de operar mudanças com a celeridade desejada.

Há quem pergunte, com certo azedume, não havendo distinção possível dos sentimentos: se não o povo, os políticos, a mídia e a lei, quem manda então?

A título de ilustração recordemos a delação de Marcelo Odebrecht, quando perguntado sobre suas contribuições eleitorais. Textualmente, declarou deter em seu “caixa 2”, não apenas um, ou outro partido, mas mandatários de todos os partidos relevantes. Como se em um páreo de apostas, a banca compre as probabilidades de todos os cavalos ao mesmo tempo. Tão visceral são as relações entre a elite financeira e a grande mídia, pois “quem paga, fala o que quer”. Ainda que os peões procurem oportunidade nas batalhas se metendo no esgueiro e pantanoso “núcleo” do poder, “[aqueles que tem dinheiro], movem todas as peças, tanto brancas, quanto pretas”. Quem ganha, também manda, protegendo o conjunto de valores, alianças e ideias que convém ao momento. O sistema eleitoral passa o laço, enfeitando a ilusão democrática, quando a plutocracia é a regra.

A selvageria da caneta e a mansidão das armas

Aprovado em 2016, o chamado “teto de gastos” se somou ao conjunto de reformas empreendidas para reformar institucionalmente as relações entre o Estado, o mercado e a sociedade. Alardeado como a “salvação” do cofres públicos tal ato demonstra suas raízes bem além das discussões econômicas. Dizer aos quatro ventos que o “teto” é incapaz de ser cumprido, ou por outro lado, é indispensável para a solvência da dívida pública tem o mesmo valor pedagógico que o silêncio.

A assinatura dessa emenda constitucional, revelou a violência capaz de ser armazenada em uma caneta que ao rabiscar o papel condenou milhões de vidas à fome, à desesperança e a morte anônima. Antes de uma “jabuticaba” tupiniquim, este é o drama de todas as democracias modernas. A arma sem pólvora decora os paletós das classes dirigentes, enquanto a reforma da ordem social se faz sem o disparo das armas.

“Neoliberalismo”, “globalização” são termos esvaziados e recheados de significados que escurecem a compreensão. O primeiro revela-se como sistema de mutação social e o segundo verifica-se como um processo de dissolução de velhas práticas de imposição de poder em âmbitos restritos, para a combinação “in lócus” da pratica da “boa política”. Ao fim do discurso, demonstram uma mesma coisa: a evolução dos mecanismos de controle daqueles que detém, para além da propriedade, o poder de impor a feição social adequada para a reprodução das desigualdades. O teto de gastos é uma demonstração desse fenômeno: o alinhamento (mais abrupto) às práticas internacionais de gestão do orçamento público em resposta à remodelagem da ordem social. O discurso referenda a pratica, quando é dito aos quatro cantos que “a sociedade não cabe no orçamento”. Antes disso, ainda que o avanço dos mais pobre fosse mantido pelos solavancos do progresso, o mantra do rentismo ecoava muito mais fortemente sob a “conciliação progressista” do que as demandas sociais.

Quando o desencanto se abateu sob a casa de vidro, não foi difícil trocar a “barba pela farda”, utilizando as demagogias da disputa ideológica para inflamar as massas rumo ao revanchismo, unindo pelo ato da separação. Findado o ciclo da bonança, os martelos do “bom juiz” ritmaram o ritual de se trocar os anéis, fortalecendo os dedos.

Cabendo bem a descrição que brevemente tentei encaminhar, o samba de Bezerra ensina:

“Meu bom doutor

O morro é pobre e a pobreza

Não é vista com franqueza

Nos olhos desse pessoal intelectual

Mas quando alguém se inclina com vontade

Em prol da comunidade

Jamais será marginal

Buscando um jeito de ajudar o pobre

Quem quiser cobrar que cobre

Pra mim isto é muito legal”

Ao progressismo “sem rumo”, deixa um recado:

“O homem é gente

Mas, não se pode na vida, eu sei

Sim, ser um líder permanente”

A linha da reforma social se tornou clara, aqueles capazes de se “encaixar” na embalagem da miséria, da viração, das desordens dos dias “de cão”, sobrevivem com as nucas em sobreaviso. Aqueles desalojados da ordem social pelas canetadas esperam a eliminação. Ainda, existem aqueles que não se encaixam no baile das aparências, lotando as estatísticas do encarceramento sem justiça, ou da morte “sem crime aparente”. Sobram nas rebarbas do drama social, o novo “de sempre”: 80 tiros num pai de família (pobre e negra), estupro culposo, se o infrator tem as costas aquecidas pelo dinheiro, e todos os outros casos que tornam opacas as cores dos muitos “Brasis”.

As posições mais baixas no “leilão” do descarte social decoram a declamação, digna de um sistema sem salvação:

“Meu bom juiz

(Aaah meu bom juiz)

Meu bom juiz

(Não bata este martelo e nem dê a sentença)

(Antes de ouvir o que o meu samba diz)

(Pois este homem não é)

(Tão ruim quanto o senhor pensa)”

Sobre o Autor: Graduado em Economia pela FACAMP, Mestrando em Desenvolvimento Econômico pelo IE/Unicamp e Pesquisador do Núcleo de Estudos de Conjuntura da FACAMP (NEC/FACAMP).

Esse texto é de total responsabilidade do autor e não reflete a opinião das instituições citadas.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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