Normalização do radicalismo, falsa equivalência entre extremos e isentismo: matando a democracia liberal brasileira por dentro, por Sergio Guedes Reis

As escolhas, portanto, eram claras: risco de instabilidade econômica e política, mas dentro dos marcos institucionais vigentes, versus a implosão da Constituição e do tecido social. Escolha de Sofia? Longe disso, como fica evidente após apenas 6 meses de governo.

Normalização do radicalismo, falsa equivalência entre extremos e isentismo: matando a democracia liberal brasileira por dentro

por Sergio Guedes Reis

Lembremo-nos: os brasileiros tinham 13 opções no primeiro turno das eleições presidenciais. 10 delas se inseriam plenamente dentro dos marcos da chamada democracia liberal: da social-democracia escandinava (Boulos) ao neoliberalismo macrista (Amoedo). Vera Lúcia, que teve apenas 55 mil votos, apresentara um plano mais próximo ao socialismo, mas certamente distante, por exemplo, do modelo cubano. Daciolo, por seu turno, combinava nacionalismo cristão com anticomunismo. Mas sua candidatura, a qual efetivamente pouco foi levada a sério, não chegava a questionar de ponta a ponta a base de funcionamento das instituições brasileiras. Uma outra candidatura, contudo, nunca negou sua vocação antidemocrática, antiinstitucional e antimoderna. No debate público, entretanto, essa candidatura foi sendo normalizada e aceita como alternativa viável – um dos grandes erros cometidos nos países nos quais triunfou o populismo, como alertou Levitsky e Ziblatt.

Apesar de tantas opções, a candidatura extremista foi a mais sufragada – particularmente pelas elites (os mais ricos e estudados). No segundo turno, essa candidatura enfrentou uma proposta de centro-esquerda, não muito diferente da coalizão que, por exemplo, governa Portugal. As alternativas eram claramente antagônicas, jamais equivalentes. Um candidato, se vencedor e fosse bem sucedido, traria desenvolvimento econômico aliado a políticas sociais sólidas. Se desse errado, produziria mais estagnação econômica, talvez um pouco de inflação e, provavelmente, escândalos de corrupção e má gestão dos recursos – os quais seriam corrigidos por instituições bem estabelecidas, consolidadas ao longo de décadas por diferentes administrações. A outra candidatura, por outro lado, apresentava outros encaminhamentos claros ao país: dando “certo” ou “errado”, ela colocaria em risco o funcionamento do Estado Democrático de Direito – atacando os demais poderes, as instituições de controle, os direitos sociais e individuais, a ciência, as artes, os meios de comunicação e aprofundando a desigualdade. A economia poderia melhorar ou não, mas os desmontes citados acima eram dados. O passado altamente patrimonialista e o amor à violência também eram já bastante conhecidos.

As escolhas, portanto, eram claras: risco de instabilidade econômica e política, mas dentro dos marcos institucionais vigentes, versus a implosão da Constituição e do tecido social. Escolha de Sofia? Longe disso, como fica evidente após apenas 6 meses de governo. A opinião pública, contudo, promoveu o segundo erro citado por Levitsky e Ziblatt: a falsa equivalência entre extremos, como se os riscos associados a cada candidatura fossem os mesmos. A parte da elite política que ficou fora da disputa cometeu o terceiro erro, que foi preferir a neutralidade (ou a “isenção”) a defender a democracia e as instituições, mesmo que isso significasse, contextualmente, apoiar um adversário histórico. Levitsky e Ziblatt apontam diversos exemplos nos quais a iniciativa de apoio às forças garantidoras da estabilidade democrática parte das demais candidaturas derrotadas (e não da própria candidatura que busca derrotar o opositor extremista): Finlândia e Suécia, na década de 30; Holanda, Bélgica e Áustria, em nossa década. Essas elites entenderam que o compromisso com a democracia e o Estado de Direito eram muito maiores e mais relevantes do que disputas eleitorais conjunturais. No Brasil, não tivemos esse luxo. Nossas elites pouco dispuseram, ao longo de nossa história republicana, das habilidades de state-making que delas são esperadas. E, diferentemente do que ocorre em outros países, no Brasil parece haver historicamente pouca convergência entre os interesses nacionais e o autointeresse das elites. Sem assumir sua responsabilidade, elas permitiram que outros setores também deixassem de fazê-lo, assumindo um confortável isentismo.

Com o Bolsonarismo incrustado não apenas em segmentos importantes da sociedade, mas também no interior das mais relevantes instituições de Estado, a corrosão da ordem legal e democrática ocorre no Brasil a passos bem mais largos do que o observado em outros países que enfrentam o mesmo desafio. Nestes, os populistas polarizam com base em questões étnico-raciais, de classe, religiosas ou migratórias. No Brasil, é um segmento ideológico inteiro a força a ser estigmatizada: os esquerdistas-comunistas-vagabundo-corrupto-gayzistas. O sucesso dessa estigmatização torna toda e qualquer manifestação ou projeto desse campo algo sob suspeita. A reação potencialmente mais legítima nesse contexto, portanto, dependeria de uma articulação do diminuto centro democrático. Mas enquanto esse grupo se contentar com a função de fiscais comportamentais da autocrítica da esquerda e com negociar modestas edulcorações ao projeto antiiluminista hoje no poder, será difícil reagir à escalada autoritária em curso.

Redação

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