O liberalismo das cavernas, por Nathan Caixeta

Com algum atraso, os agentes econômicos se desfazem dos encantos inflacionários, e a redução da atividade econômica se converte, novamente, em desemprego.

Tiago Hoisel

O liberalismo das cavernas

por Nathan Caixeta

Não demorou para que os distúrbios da Economia global, gerados com a escalada inflacionária do último ano e, mais recentemente, com a guerra Russo-Ucraniana, estimulassem os economistas a remexerem as covas das teorias mortas a cem anos.

Destaco a recente presepada de Martin Wolf, na Folha de São Paulo, em sua tentativa de ressuscitar o monetarismo de Milton Friedman.

O Economista Inglês desfiou os postulados da ortodoxia monetária até ver-se incapaz de juntá-los num argumento coerente. De início, recupera a célebre frase de Milton Friedman: “Toda inflação é um fenômeno monetário”.

Bravateiro que só, Friedman encobria essa suposição com um ornamento pra lá de estiloso: os níveis de inflação guardam relação com níveis compatíveis de desemprego. Quando o governo emite moeda de modo a forçar a taxa de juros para níveis inferiores ao seu patamar “natural”, Bazinga! Ilusão!

O nível de emprego se eleva superficialmente, deixando o rastro de ilusões da inflação. Com algum atraso, os agentes econômicos se desfazem dos encantos inflacionários, e a redução da atividade econômica se converte, novamente, em desemprego. Essa situação produz o termo-comum que tem habitado os noticiários econômicos: a estagflação, isto é, desemprego mais inflação.

No tempo de Friedman, essa teoria não amealhou mais de dois ou três seguidores. Seu sucesso veio quando o cenário da estagflação abateu os EUA na década de 1970. Os dois choques do petróleo e o movimento das finanças e dos bancos centrais contra a hegemonia monetária norte-americana, forjaram um manto para as concepções de Friedman: “se a inflação é um fenômeno monetário, a moeda é uma questão de hegemonia”.

Não deu outra. Paul Volcker encontrou na doutrina de Friedman, a salvaguarda para matar dois coelhos com uma martelada só. Após uma reunião com os principais banqueiros centrais do mundo, Volcker lançou sua carta na manga (certamente retirada do baralho de Friedman): em 1979, triplicou as taxas de juros nos EUA, causando uma abrupta valorização do dólar, e consequentemente, uma fuga desesperada para a moeda norte-americana. Com isso, não apenas lançou à falência as propostas de alemães e japoneses de substituir o dólar como moeda internacional, como posteriormente arrasou a competitividade industrial japonesa.

Nos EUA, a inflação cedeu ao longo da década de 1980 às custas de uma recessão prolongada e de uma taxa de desemprego que só cairia nos anos 1990.

A escalada inflacionária recente, resultado direto da desorganização da oferta global durante os períodos mais duros da pandemia, encontra no liberalismo das cavernas um remédio venenoso.

De fato, a Economia global, e especialmente, a brasileira estão enterradas na estagflação. Martin Wolf, acompanhado da dupla Guedes-Campos Neto, acredita ser capaz de remendar o monetarismo para justificar as falhas do sistema de metas de inflação.

Desconsiderando, quanto mais, os impactos da oferta sobre a inflação, atribuem à expansão monetária realizada para conter os efeitos pandêmicos sobre a Economia, as raízes para a inflação. Adicionando uma pitada dos teóricos das expectativas racionais, culpam os banqueiros centrais de estimularem a remarcação de preços ao persistirem no comedimento para elevarem as taxas de juros. 

Pergunta inevitável: não fossem os estímulos fiscais e monetários, quantas pessoas mais teriam morrido, pelo vírus, ou pela fome? para piorar, qual o impacto de uma iminente crise de crédito global, não fosse a liquidez injetada nos sistemas financeiros?

Não se trata de escolher entre inflação e desemprego, mas de percebermos as conexões sistêmicas que envolvem o capitalismo globalizado. Se o abacaxi monetário-financeiro não fosse suficiente, a inflação adquiriu novas cores com a escalada do preço do petróleo, anunciando novos tormentos para os Bancos Centrais.

Na Banana Republique, Bolsonaro já deu a letra, ao anunciar a intenção de privatizar a Petrobrás, após blefar com a intervenção na política de preços. Para piorar, o Banco Central brasileiro puxa do baralho de Friedman a medida do choque monetário, pretendendo derrubar a inflação para o próximo ano. Até agora, Campos Neto agiu sem sucesso, enquanto Guedes posa jactante pelo retorno do dólar ao patamar dos “cincão”, esperando a decolagem da Economia. Infelizmente, o avião de Guedes é o único que voa no chão.

A inflação brasileira só pode ser afetada pela elevação das taxas de juros, caso a Economia despenque. Fora isso, sobram os cânticos de Paulo Guedes, entoados ao deus-mercado, na esperança que a melhoria mixa no resultado fiscal, recupere a confiança do empresariado de que, vejam só: novas ilusões causadas por expansões monetárias não virão e a inflação retornará à meta.

Na Terra Tupiniquim, a preferência parece ser a contenção dos reajustes salariais, ao invés da constituição de estoques reguladores e ações de controle sobre os preços dos insumos centrais para a economia (energia, petróleo, etc.). Como sempre, a conta foi para o bolso do trabalhador.

Ao redor do mundo, especialmente, na terra do Tio Sam, a turma sabe que o buraco é muito mais embaixo. A década das injeções monetárias pós-crise de 2008, demonstrou quão complexa se tornou a administração da política monetária,  na ausência de salvaguardas regulatórias.

Ao manter persistentemente baixas as taxas de juros, injetando dinheiro nos balanços bancários, os Bancos Centrais tornaram o esforço de elevar as taxas de juros, um flerte constante com a crise sistêmica. Isso porque o grau de conexão do sistema de crédito global é tamanho que os choques monetários, produzem, de duas a uma: ou, célere desvalorização dos ativos, gerando uma nova crise de 2008, ou um desajuste no sistema monetário internacional, isto é, uma desvalorização brutal das moedas em relação ao dólar. Nos dois casos, o liberalismo das cavernas não encontra remissão. Uma crise sistêmica fará com que os atuais adoradores de Friedman, se arrependam ao raiar do dia, passando a carregar o velho Keynes embaixo do braço. A desvalorização cambial em escala global, produz mais inflação.

A situação atual é muito mais complexa:

  1. Os Bancos Centrais estão numa sinuca de bico: ou detonam a atividade economia, correndo o risco de estourar bolhas financeiras no processo de elevação das taxas de juros, ou se mantém em sobreaviso em relação aos impactos da Crise Russo-Ucraniana sobre os mercados financeiros;
  2. Depois da adoção do sistema de metas de inflação (pronunciadas, ou não), os operadores da política econômica se esqueceram que existem choques de oferta (desvalorizações cambiais, crises energéticas, elevações nos preços internacionais de insumos, como petróleo e gás, descontinuidades produtivas nos setores agrícola e industrial, etc.).  Resultado: a política monetária sequer consegue atuar sobre as taxas de câmbio, restando apenas o bom e velho instrumento da regulação: financeira sobre os movimentos de capitais, contenção dos preços dos insumos básicos e constituição de estoques reguladores.
  3. O remodelamento das instâncias geopolítica e da geoeconomia das últimas décadas apresentou a ultrapassagem da indústria chinesa sobre a norte-americana, e nessas semanas, revelou um de seus mais abruptos movimentos: a Rússia passou a questionar abertamente a influência norte-americana, munida das intenções chinesas em deslocar o poderio do dólar na denominação de transações internacionais.

O mundo está passando por uma nova Grande Transformação, diz a memória que temos de Polanyi. Enquanto isso, os liberais se apegam a um velho mundo para justificar suas velhas concepções. Nos anos 1920, a escalada autoritária aproveitou-se dos distúrbios econômicos para eleger os “adversários da paz e da ordem”, enquanto o reino hegemônico da vez, o império britânico caía aos pedaços, juntamente ao sistema monetário internacional.

Sem soluções práticas, o liberalismo pragmático se vê novamente sem saídas. O neoliberalismo é engolido pelo discurso autoritário, enquanto a concorrência capitalista que pretende estimular deprime o homem comum, desempregado e desvalido, tornando-o terreno fértil para que os discursos do passado, se tornem esperanças de futuro.

Nathan Caixeta, pós-graduando em desenvolvimento econômico no IE/UNICAMP e pesquisador do núcleo de estudos de conjuntura da FACAMP (NEC-FACAMP).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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