O pior erro é subestimá-los, por Arnaldo Cardoso

A deputada von Storch lidera a ala cristã ultraconservadora da AfD, cujas posições são consideradas as mais extremistas em defesa das concepções tradicionalistas da família.

O pior erro é subestimá-los

por Arnaldo Cardoso

Se a recente visita ao Brasil da deputada alemã Beatrix von Storch – vice-presidente do partido Alternative für Deutschland (AfD) (Alternativa para a Alemanha) com calorosa recepção pelo Presidente da República no Palácio do Planalto produziu na maioria do público um misto de incompreensão sobre os seus significados e um certo desprezo por parecer ser apenas mais uma provocativa peça de Bolsonaro, agindo como um troll, por natureza insano, entre analistas uma apreciação de erro de cálculo pois os resultados internos e externos são mais negativos que positivos, é outra a avaliação que se pode ter se o episódio for visto à luz do que expõe o relatório “Tip of the iceberg: Religious Extremist Funders against Human Rights for Sexuality and Reproductive Health in Europe 2009-2018” produzido e recentemente divulgado pelo European Parliamentary Forum for Sexual and Reproductive Rights (Fórum Parlamentar Europeu para os Direitos Sexuais e Reprodutivos).

A deputada von Storch lidera a ala cristã ultraconservadora da AfD, cujas posições são consideradas as mais extremistas em defesa das concepções tradicionalistas da família. No rol de posicionamentos da deputada destaca-se ser opositora das iniciativas do governo alemão de substituição das atuais formas (nuclear e fóssil) de produção de energia elétrica por alternativas mais limpas e é sistematicamente crítica a ongs ambientalistas, tratando como “narrativas” todos os resultados de pesquisas científicas que comprovam as mudanças climáticas e diversos processos de ameaça ao meio ambiente. É crítica do bloco europeu; contrária ao Pacto Global de Migração e opositora do multilateralismo político internacional. Ataca movimentos sociais como o Black Lives Matter e o Antifas, vendo-os como “redes internacionais para colocar os conservadores contra a parede”. Como pode-se observar, as afinidades com Bolsonaro não são poucas.

Entre 2020 e março de 2021, o partido esteve sob vigilância do Departamento Federal para a Proteção da Constituição (BfV, o serviço secreto interno da Alemanha) por suspeitas de violações da democracia e de valores constitucionais da Alemanha. A própria deputada já foi alvo de investigação em 2018 por publicações incitando o ódio contra muçulmanos. Ainda assim, o AfD, partido criado em 2013 é hoje a maior força de oposição no Parlamento alemão.

Após o encontro da deputada von Storch com o Presidente do Brasil, com o Ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações e com deputados federais e estaduais da base governista, diversas instituições judaicas entre outras expressaram repúdio e preocupação, como retratou em artigos a agência alemã Deutsch Welle. Em nota a Conib (Confederação Israelita do Brasil) afirmou que a AfD é um “partido extremista, xenófobo, cujos líderes minimizam as atrocidades nazistas e o Holocausto”. O Museu do Holocausto manifestou preocupação sobre a reunião e afirmou que o ‘Alternativa para Alemanha’ é um partido com “tendências racistas, sexistas, islamofóbicas, antissemitas, xenófobas”, além de ter um “forte discurso anti-imigração”.
A DW também lembrou o histórico familiar da deputada. “Beatrix von Storch, de 50 anos, é, pelo lado materno, neta de Johann Ludwig Schwerin von Krosigk, que serviu como ministro das Finanças da ditadura de Adolf Hitler por mais de 12 anos. Ele seria mais tarde julgado e condenado pelo Tribunal de Nuremberg, na etapa conhecida como o “julgamento dos ministros”. Schwerin von Krosigk foi sentenciado a dez anos de prisão por crimes de guerra. Pelo lado paterno, o outro avô de Beatrix von Storch também não foi menos controverso. Filho de um duque, Nikolaus von Oldenburg era membro tanto do Partido Nazista quanto da SA, a força paramilitar da legenda”.

Através de postagens da líder de extrema-direita alemã em suas redes sociais, posteriores ao encontro em Brasília, em que afirma fortes afinidades com o presidente brasileiro, podemos conhecer suas declarações sobre a motivação de sua viagem ao Brasil: “Em um momento em que a esquerda está promovendo sua ideologia por meio de suas redes e organizações internacionais em nível global, nós, conservadores, devemos formar uma rede mais estreita e defender nossos valores conservadores em nível internacional. Além dos EUA e da Rússia, o Brasil é um parceiro estratégico global para nós, com o qual queremos construir um futuro juntos.”

Identificando o que há de novo

Nos últimos dez anos, o crescimento e melhor desempenho eleitoral de partidos da chamada direita alternativa (alt-right) e da extrema-direita na Europa ocorrendo no ambiente de crescente instabilidade marcado pela crise financeira de 2008, pelos eventos da chamada Primavera Árabe de 2010 e pela crise migratória de 2015 mobilizaram pesquisadores e estudiosos da Ciência Política, Sociologia, Direito e Relações Internacionais, destacadamente, na busca de uma compreensão do que este fenômeno carrega de novo. 

Além das contribuições acerca da adequação de conceitos e modelos teóricos clássicos para a investigação da realidade política e social, dentre as quais merece citação os escritos do cientista político holandês Cas Mudde como “The Far Right Today” de 2019,  importantes esforços de pesquisa foram dedicados para a caracterização desses partidos políticos, organizações e seus principais atores, seguidos da busca de identificação dos perfis dos principais grupos sociais que ecoaram seus discursos e lhes confiaram o voto. A identificação de suas estratégias para a captura do sentimento genérico de descontentamento dos cidadãos com o sistema político em termos das insatisfatórias entregas que os partidos no poder realizam, concentrou outro tanto de esforços.

No tocante às estratégias, evidenciava-se que o uso sistemático das tecnologias digitais de informação e comunicação deu nova conformação para a relação entre os políticos e o eleitorado. A combinação do marketing político, com a física de dados (algoritmos) e a psicologia, reconfigurou as formas da disputa política. Pesquisadores se viram diante da necessidade de compreender a dinâmica e códigos dessa tecnopolítica. A publicação em 2019 do livro “Os engenheiros do caos” pelo cientista político ítalo-suíço Giuliano Da Empoli, já contemplando a campanha vitoriosa pelo Brexit, a eleição de Trump nos EUA e de Bolsonaro no Brasil e Salvini na Itália, foi uma das valiosas contribuições do mundo acadêmico para a compreensão das novas formas da ação política e as ameaças correspondentes.

Para ilustrar alguns dos achados da pesquisa de Da Empoli, especialmente  os que respondem a recorrentes questionamentos sobre a inconsistência e contradições no discurso e ação desses atores políticos ascendentes, reproduzo os trechos que seguem “Se o movimento convergente da velha política marginalizava os extremistas, a lógica centrífuga da política dos físicos os valoriza. Ela não os põe no centro porque o centro deixou de existir. Mas ela lhes oferece um espaço e respostas. […] na lógica das novas mídias – que acentuam os conteúdos capazes de suscitar as emoções mais fortes – ela cria obstáculos para os pensadores [e políticos] mais moderados, que tem dificuldades em fazer circularem suas postagens […] Mesmo para os partidos ditos clássicos, a motivação para elaborar uma plataforma coerente e uma mensagem única capaz de interceptar o eleitor médio diminui, enquanto cresce a tentação de multiplicar os sinais mesmo contraditórios para capturar os grupos mais dispares” (DA EMPOLI, pp. 156-7).

A ponta do iceberg

A investigação realizada e recentemente publicada pelo European Parliamentary Forum for Sexual and Reproductive Rights (Fórum Parlamentar Europeu para os Direitos Sexuais e Reprodutivos).através do relatório “Tip of the iceberg: Religious Extremist Funders against Human Rights for Sexuality and Reproductive Health in Europe 2009-2018” representa mais um importante avanço no esforço de elucidação de quem são, por que, para que e como agem esses atores políticos individuais e coletivos que impregnaram a cena política contemporânea e assumiram posições de poder com consequências já sofridas em diferentes sociedades, âmbitos e profundidades e cujo alcance e permanência no tempo ainda não se pode prever.

Na linha do que sugere a famosa frase “siga o rastro do dinheiro” supostamente dita pelo informante Garganta Profunda ao repórter Bob Woodward no escândalo de Watergate, a investigação empreendida pelo Fórum Parlamentar Europeu buscou entender a mobilização anti-gênero na Europa através de sua base de financiamento, ou seja, responder à pergunta: como o movimento anti-gênero é financiado?

Embora a investigação tenha um foco específico, seus achados lançaram luzes sobre um espectro mais amplo da dinâmica desses atores genericamente chamados de extremistas e indica importantes caminhos para novas pesquisas.

A investigação cobriu um período de dez anos (2009-2018) e 54 atores anti-gênero operando na Europa. Esses atores se apresentam nomeadamente como organizações não governamentais (ONGs), fundações, organizações religiosas e partidos políticos. Três localidades geográficas foram identificadas como as principais origens dos recursos: os Estados Unidos, a Rússia e a Europa.

Aprofundando a investigação sobre essas fontes de financiamento, com maior atenção para a Europa, identificou-se quatro principais mecanismos de obtenção de recursos: captação de recursos de base; apoio de elites socioeconômicas; financiamento público e atores religiosos. E refinando mais a pesquisa com foco sobre atores religiosos, identificou-se quatro principais canais de financiamento:   astroturfing; elites econômicas utilizando as redes sociais; financiamento do estado; e conexões via redes religiosas.

Nas suas 108 páginas o relatório esmiuça a rede intrincada de relações entre diferentes atores, suas declaradas motivações e suas ramificações internacionais, expondo inclusive nomes de financiadores individuais, de organizações, empresas e grupos de lobby.

O relatório mostra que sob slogans como “em defesa de uma cultura de vida” extremistas religiosos organizaram “marchas pela vida” reunindo cidadãos em diversas capitais europeias e outras cidades pelo mundo bradando contra o feminismo; contra a autodeterminação das mulheres e acesso aos direitos sexuais e reprodutivos; contra as uniões homoafetivas, contra a educação sexual nas escolas (chamada de “ideologia de gênero”) que tem por objetivo capacitar todas as pessoas a agirem de forma independente e responsável para proteger sua própria saúde e de seus parceiros.

Em lugar de conquistas e demandas ainda não atendidas por movimentos sociais que lutam por direitos, justiça e igualdade, os extremistas  agem para impor uma visão de mundo tradicionalista e regressiva.

Mas o relatório também alerta para o equívoco de pensar que esses atores religiosos agem isolados e com motivações exclusivamente morais e religiosas. Embora assumindo certo protagonismo, por vezes parecem emprestar sua indumentária para atores mais proeminentes e com interesses mais assertivos.

A complexidade revelada pela investigação rejeita interpretações simplistas e generalizadoras pois “compreendendo o cenário de financiamento anti-gênero na Europa chega-se à conclusão de que não existe um objetivo central para o movimento e seus financiadores”. O que se observou é a existência de vários projetos sobrepostos (normativo, político e econômico) e descentralizados que se reforçam mutuamente alimentando a mobilização anti-gènero. “Esses projetos sobrepostos podem ser classificados em três grandes categorias: um projeto teocrático, um projeto econômico hipercapitalista e um projeto político não liberal”.

Os casos da One of Us e da CitizenGO

Para demonstrar as inter-relações entre os diferentes atores anti-genero o relatório expôs o processo de constituição e o modus operandi de duas organizações, a One of Us e a CitizenGO. 
A One of Us foi lançada em 2012 como uma ECI (European Citizens’ Initiative).com o objetivo de garantir que nenhum financiamento da UE fosse usado para financiar atividades envolvendo a “destruição de embriões humanos” e sua primeira iniciativa foi apoiada por três fundações europeias (Fondazione Vita
Nova, Fundacion Valores y Sociedad e Fundacion Provida Catalunha) que aportaram o financiamento inicial de € 159.219. A CitizenGO que é sucessora da HazteOir e que tem o espanhol Ignacio Arsuaga como fundador e CEO se apresenta como “uma ferramenta online para que os cidadãos ativos sejam capazes de defender a família e a vida e influenciar efetivamente os governos e parlamentos nacionais e instituições internacionais”.

Sobre a One of Us o relatório dá a saber como dois ex-eurodeputados, o italiano Carlo Casini e o espanhol Jaime Mayor Oreja, agiam para obter financiamentos de fundações orientadas para ações anti-gênero e outras da agenda ultraconservadora, e como se viabilizavam as contrapartidas.

Do caso da CitizenGO merece especial atenção a revelação das estratégias utilizadas para a conquista de apoio popular, destacadamente através da prática do astroturfing. (De acordo com o Oxford Dictionary of English, Astroturfing é a prática enganosa de apresentar uma campanha orquestrada de marketing ou relações públicas na forma de comentários não solicitados de membros de um público). (Vale rever o histórico de denúncias de prática de astroturfing contra o movimento neoconservador norte-americano Tea Party).

O apoio de advogados simpatizantes das causas do CitizenGO e o uso de diferentes mecanismos jurídicos como petições que chegaram a coletar 1,7 milhão de assinaturas ajudaram a qualificar essas ações como “legítimas expressões da vontade popular”. No entanto, entre os maiores doadores para o CitizenGO encontram-se um oligarca russo e bilionários mexicanos, além de diversos atores da direita cristâ dos Estados Unidos.

Conectando pontos

Aos principais doadores o CEO da organização, Ignacio Arsuaga, ofereceu assento no Conselho de Administração da CitizenGO. Entre os posicionamentos (ideológicos?) desses ricos doadores identificou-se traços comuns como a defesa da desregulamentação econômica, negacionismo ambiental e uma série de outras posturas que, como sugere o relatório, são facilitadoras da formação de oligarquias rumo à uma cleptocracia, numa particular visão de “hiper-capitalismo libertado das algemas do Estado”, com discursos em favor da prosperidade individual em detrimeto da coesão social, fazendo convergir radicais do neoliberalismo, ideologia da prosperidade e doutrinas religiosas.

Ganhando temperos próprios em culturas e contextos nacionais variados (Rússia, Belarus, Hungria, Polônia, Itália, Estados Unidos, Brasil…) partidos tradicionais e emergentes da alt-right e da extrema-direita, parcelas de elites econômicas, racistas, nativistas, xenófobos, neofascistas, neonazistas e moralistas do ativismo anti-gênero tem formado alianças que desafiam os esforços interpretativos, provocando muitas vezes confusão e dificuldades para a ação política.

Com a identificação das vultosas doações de dois oligarcas russos, Vladimir Yakunin US$ 109,5 milhões e Konstantin Malofeev US$ 77,3 milhões, e uma complexa rede de inter-relações entre organizações e instituições russas com equivalentes europeias, o relatório expressa acentuada preocupação em relação às investidas russas sobre a Europa.

Para uma nova geração de pesquisadores europeus da política e das relações internacionais tem merecido redobrada atenção a  política externa russa sob Putin, na qual se reconhece a maior influência dos patriarcas da Igreja Ortodoxa Russa e de oligarcas apoiadores do novo czar russo.

É temeroso para o Ocidente que uma geopolítica moldada por ideias como as do pensador russo Alexander Dugin encontre aliados entre forças políticas da extrema-direita europeia, de antieuropeítas e de radicais religiosos, e se estenda por outras paragens, como mostrou desejar a deputada da AfD, Beatrix von Storch, na referida visita ao Brasil. Não é fortuito lembrar que a AfD ocupa hoje 86 cadeiras no Parlamento Alemão.

O fim da era Merkel na Alemanha suscita apreensão pelo atual contexto de instabilidade global e de polarização de extremos. Também na França, radicais de direita se movem para a sucessão de Emmanuel Macron. Na Polônia, a reeleição do ultraconservador Andrzej Duda reforçou a posição do país como bastião do radicalismo religioso e, na Itália e Espanha, partidos de direita e extrema-direita como a Lega, Fratelli d’Italia e Vox mantém parcela fiel do eleitorado. A Lega de Matteo Salvini e o FdI de Giorgia Meloni juntos somam mais de 30% dos votos no país da bota e o Vox amplia as iniciativas populares como o Viva 21 que ocorrerá em toda a Espanha em outubro ecoando o discurso ancorado em bandeiras como “contra o marxismo cultural”, pela “liberdade em Cuba” e articulações como o “Foro de Madrid” que tem como um de seus integrantes o filho-deputado e chanceler paraestatal do presidente brasileiro.

Diante desse multifacetado quadro o mais perigoso erro é substimar os atores. A História já mostrou isto e pode dar novas mostras.

Arnaldo Cardoso, sociólogo e cientista político formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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