Os 70 anos da República Popular da China: o percurso e os desafios do modelo chinês, por Ricardo Kotz

É imperativo que passemos a considerar de forma estratégica a posição do Brasil em relação à China nas próximas décadas e igualmente quais os efeitos desta relação para a estrutura econômica doméstica.

Foto Greg Baker – AFP

Os 70 anos da República Popular da China (1949-2019): o percurso e os desafios do modelo chinês

por Ricardo Kotz

A República Popular da China (RPC) foi fundada oficialmente em 01 de Outubro de 1949, após um amplo movimento popular conduzido pelo Partido Comunista. Comemorando os setenta anos da República, realizou-se no dia 01 de outubro de 2019 a maior parada militar da história da China. Um espetáculo que visa simultaneamente mostrar ao mundo o poderio e a modernidade do país, além de consolidar a estabilidade do regime e fortalecer o nacionalismo de sua população.

A revolução que levou Mao Zedong ao poder ocorreu após o fim de uma Guerra Civil que durou 22 anos entre o Partido Comunista e o Partido Nacionalista da China. O Partido Nacionalista (Guomindang) liderado por Chiang Kai Shek foi derrotado e os seus seguidores migraram para a ilha de Formosa (Taiwan), onde estabeleceram um regime alternativo, seguindo parcialmente os moldes do liberalismo político. Desde então, a RPC afirma que Taiwan faz parte da China. O reconhecimento desta posição é um dos pré-requisitos para que qualquer país receba investimentos diretos por parte da China até os dias de hoje, conhecida como a Política da China única (“One China Policy”).

A China foi a maior economia do mundo por mais de um milênio, tendo ocupado este posto de forma intermitente entre meados do século VII até o ano de 1820, segundo estimativas realizadas pelo historiador macroeconômico Angus Maddison. Em média, o Império do Meio[1] representou cerca de 1/3 da economia mundial por mais de mil anos. O período conhecido pelos chineses como o século das humilhações, que começou com a abertura forçada dos portos às potências europeias no século XIX, só terminaria com a revolução comunista de 1949. Em um século viu-se o poderio do império declinar de forma dramática, algo único na história deste Estado civilização[2].

Esta é uma das razões pelas quais Mao Zedong (mandato de 1949-1976) é tão reconhecido na China: o líder é visto como o restaurador da soberania desta poderosa nação após um século de humilhações (1840-1949). Não obstante, Mao é dono de um legado controverso: apesar do sucesso no esforço revolucionário, algumas de suas posteriores ações levariam o país à extremas dificuldades políticas e econômicas. Por exemplo, a perspectiva da industrialização forçada, baseada nos moldes soviéticos, faria com que o país buscasse se consolidar como um grande produtor de aço, distanciando-se da produção de alimentos. Isto faria com que a China vivesse episódios dramáticos de fome entre 1958-1961.

Outro episódio consiste na Revolução Cultural, cuja perseguição aos intelectuais e às ideias consideradas subversivas para o regime ficou conhecida até os dias de hoje como um trágico episódio. O sucessor de Mao Zedong, Deng Xiaoping (mandato de 1978-1989) é o conhecido líder que conduziu o processo de abertura e reformas, que viria a reconsolidar a posição da China no cenário internacional. Entre 1978-2018, o país tirou mais de 800 milhões de pessoas da linha de pobreza, elevou a sua renda per capita de menos de US$ 300 dólares para mais de US$ 7.000. Adicionalmente, a participação da China no comércio internacional passou de 3% do total global para 19% ao final de 2017.

O sucessor de Deng Xiaoping, Jiang Zemin (mandato de 1991-2001) é responsável pela consolidação institucional do país. Durante o regime de Jiang Zemin a China ingressou na Organização Mundial do Comércio (OMC), no ano de 2001, fato que se tornaria emblemático para o sucesso do modelo chinês, além de ter constituído um fator que estimulou a atração de investimentos estrangeiros diretos e a consequente produção e adaptação de tecnologia.

Durante o governo de Hu Jintao (mandato de 2002-2012) foram feitos grandes esforços no sentido de aprofundar a abertura econômica, além de ampliar a participação do país em fóruns multilaterais. Xi Jinping assume em 2012 com o desafio de promover o desenvolvimento chinês, reduzindo os danos ao meio ambiente e visando elevar a participação do país nas cadeias globais de maior valor agregado, o que envolve intenso investimento em educação, pesquisa e desenvolvimento, além de upgrade tecnológico.

Após a crise econômica global de 2008 a China apostou na construção de infraestrutura como o motor do seu desenvolvimento econômico. Além do setor de construção civil, que demonstrou notório crescimento, os projetos de mobilidade floresceram. Os trens de alta velocidade, que possuem excelência tecnológica, se multiplicaram. Existe hoje a expectativa de que o país deverá possuir mais de 30.000 quilômetros destas ferrovias até o final de 2019.

Xi Jinping consolidou a sua posição na política doméstica, eliminando o limite de dois mandatos de cinco anos para a posição de Presidente e líder geral da nação, além de conduzir uma intensa campanha de combate à corrupção que retirou quatro milhões de funcionários públicos. O presidente é conhecido pela sua iniciativa de construção de infraestrutura a nível global, a Belt and Road Initiative, ou Nova Rota da Seda, que pretende reposicionar a China no centro do sistema internacional, através do crescimento da atuação de suas empresas nos mais diversos países e continentes.

A lista realizada pela revista Forbes acerca das 500 maiores empresas (Fortune 500) conta com 119 companhias chinesas, das quais a maioria delas são estatais ou de capital misto, público e privado. Devemos ressaltar que esta é a primeira vez que o número de empresas chinesas supera a presença das companhias norte-americanas na lista, um feito notável.

O sentimento de nacionalismo da China contemporânea se liga à busca por desenvolvimento da nação, à obtenção de um melhor padrão de vida e, invariavelmente, ao mandato do Partido Comunista. Mas não devemos nos enganar, existem críticos entre os jovens chineses que gostariam de possuir um sistema político e de tomada de decisão mais descentralizado. Por outro lado, enquanto a PRC continuar a promover a melhoria nas condições de vida locais, especialistas afirmam que o partido deve continuar no poder.

No plano doméstico existem grandes desafios para o futuro: 1) a luta contra a degradação do meio ambiente, 2) a continuidade do upgrade tecnológico e industrial das empresas domésticas e 3) a promoção do sentimento nacional frente à pressão internacional pela liberalização. Muito se fala sobre os dois primeiros desafios, portanto gostaria de abordar o terceiro ponto. Através dos países desenvolvidos do Ocidente sustentou-se nas últimas duas décadas a tese de que a China caminharia gradualmente para se tornar uma democracia, à medida que fosse integrando-se aos regimes internacionais e ao comércio mundial.

Na atual conjuntura poucos especialistas continuam a sustentar tal posição. A China deverá mudar nas próximas décadas, mas não do jeito que os especialistas do ocidente vieram prevendo. O país deverá buscar na sua própria cultura e história os valores e as medidas que deverão guiar a sua sociedade nas próximas décadas. É possível que este caminho continue a exacerbar o controle sobre a sociedade, na busca por elevar os níveis de progresso econômico e tecnológico, mantendo a estabilidade sobre seu território.

No que diz respeito à política externa chinesa hoje existem duas principais preocupações na cúpula do PCC: 1) no curto e médio prazo, a guerra comercial com os Estados Unidos (EUA) e 2) no longo prazo, a Belt and Road Initiative (BRI). A guerra comercial preocupa pois os EUA são um importante parceiro comercial. Entretanto, as perdas de lucros comerciais não são a principal questão. A perspectiva chinesa está mais preocupada pela continuidade dos seus esforços de modernização tecnológica, encapsulados na estratégia Made in China 2025, que poderiam ser ameaçados pela disputa com os EUA.

A BRI, por outro lado, consiste na visão acerca da projeção global da China para as próximas décadas e assegurar o seu sucesso é a principal preocupação do país. No debate público brasileiro pouco se fala sobre a BRI, apesar da China ser o principal parceiro comercial do Brasil desde o ano de 2009. A academia e o setor político chinês estão preocupados com a posição brasileira sobre o tema. Paralelamente a isto, no Brasil o debate público se pauta por uma anacrônica discussão sobre o enfrentamento entre comunismo e capitalismo, uma relíquia da Guerra Fria. A China, por outro lado, aprendeu de forma pragmática a combinar os elementos políticos e econômicos tanto do capitalismo quanto de políticas de esquerda, de modo a promover o desenvolvimento econômico de sua população.

É imperativo que passemos a considerar de forma estratégica a posição do Brasil em relação à China nas próximas décadas e igualmente quais os efeitos desta relação para a estrutura econômica doméstica. Um pouco mais de pragmatismo, planejamento estratégico e pensamento de longo prazo seriam ótimas lições que podemos tirar da trajetória chinesa nos últimos 70 anos, apesar das grandes diferenças culturais e dos erros que possam ser apontados.

 

[1] O termo que designa o país em mandarim simplificado é Zhongguo, que significa Reino do Meio. Durante séculos da época imperial, os mandatários da China acreditavam que o país era o centro do mundo, sendo responsável pela Tianxia, que significa “tudo que existe abaixo dos céus” e visava designar o restante do território mundial.

[2] Historiadores e sinólogos afirmam que a China é um Estado civilização, fazendo referência não apenas ao fato de que a cultura chinesa existe há 4000 anos, mas igualmente pelo fato de que se mantiveram vivas as tradições e a cultura local mesmo em períodos nos quais o seu território foi invadido e conquistado.

Redação

4 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. A China era uma Colônia Britânica até 1949. Entre 1949 e 1979, uma Ditadura Socialista totalmente fechada. A partir de 1979, torna-se uma Potência Econômica e Financeira usando o Estado para alavancar sua Economia e Indústria. Ainda mantendo o Estado Totalitário. Tamanhas transformações em apenas 30 anos. Nós continuamos no atraso abissal produzido por Golpe Civil Militar Ditatorial Esquerdopata Assassino Absolutista Caudilhista Fascista de 1930. E não saímos desta latrina. A China, teve no mínimo, 4 revoluções absolutas em apenas 3 décadas. ‘Cachorro atrás do rabo’. Pobre país rico. Mas de muito fácil explicação.

    1. China não foi uma Colônia Britânica até 1949. Aonde você leu isso? Tá confundido com a Índia? Ou Hong Kong, colônia até 1997. Unica parte de China que foi um colônia britânica de fato?
      Mesmo com a guerra do opio e o ‘século da humilhação’ no século XIX, a China nunca se tornou uma colônia em um clássico sentido termo. Lá foram poderes europeus no século XIX que se aliaram aos locais entreguistas, em uma China fragmentada, como o Brasil de hoje é um vassalo dos EUA, mas a China nunca foi ‘uma colônia.’

      1. Nicolas : rodou, rodou (Cachorro atrás do rabo) para no final dizer que foi sim uma Colônia. Pode usar qualquer outro adjetivo, mas não passou de Colônia.

  2. Depois de ler o bem informado artigo do autor, não posso deixar de expressar minha admiração pela sensibilidade política dos dirigentes comunistas chineses, a começar de Mao e Chu En Lai até o novo líder central do Partido chinês, Xi Jinping, sem esquecer Deng Xiaoping, a cujos notáveis sentidos tático e estratégico é atribuída uma ideia que ganha cada vez força na opinião pública contemporânea, a ideia de que”não importa a cor do gato, se ele apanha o rato.” Além disso, é preciso reconhecer a coerente continuidade das tradições revolucionários de Marx e Engels, Lenin e Stalin, dos dirigentes soviéticos de Kruschev à Gorbachov, retomadas no devido tempo pelos dirigentes atuais da Federação Russa. no pensamento e na ação dos comunistas chineses. A inclusão de Kruschev nesta lista de extraordinários comunistas já me parece menos problemática, se considerarmos as Memórias de Andrei Gromiko e os estudos mais recentes sobre a história contemporânea do ponto de vista do desenvolvimento do socialismo.
    Embora a luta continue difícil, a vitória é cada vez mais certa.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador