Para o delator ganhar, tem de torcer contra o delatado. O que ele é?, por Lenio Luiz Streck

Interpretar uma lei não se resume à simplista e ingênua dicotomia “literalidade” – “não-literalidade”. O direito seria patético se fosse assim.

do ConJur

Para o delator ganhar, tem de torcer contra o delatado. O que ele é?

por Lenio Luiz Streck

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Resumo: Concurso aberto pela Coluna – se o delator não é agente infiltrado, não é réu, não é testemunha, o que ele é, mesmo? E se ele, para ganhar os benefícios, tem de torcer para a acusação, ele não é ajudante do MP?

Resumo: Concurso aberto pela Coluna – se o delator não é agente infiltrado, não é réu, não é testemunha, o que ele é, mesmo? E se ele, para ganhar os benefícios, tem de torcer para a acusação, ele não é ajudante do MP?

O Procurador da República Celso Tres diz: Delator é assistente da acusação remunerado pelo Estado mediante a moeda da impunidade. A frase é forte. Não é minha, mas com ela concordo, no contexto de uma discussão que se pôs na República.

Explico. Não imaginava – e provavelmente nem o STF – que simplesmente decidir que o réu-delator não tem a mesma posição processual que o réu comum causaria tanta raiva, xingamentos e quejandos nas redes sociais, em manifestos e em comentários em sites jurídicos.

Recomendo lerem meu artigo – aqui – antes deste (o artigo é de 2.09.2019). Nele sustentei que o STF acertou; afirmei que que o réu-delator tem o direito de saber o que dele disseram os demais corréus delatores; que a ampla defesa e o devido processo legal sustentam uma releitura do artigo 403, do CPP, uma vez que, quando este foi redigido e anos depois reformulado, não se falava nessa nova figura chamada réu-delator. Também falei da irresponsabilidade interpretativa vigorante no Brasil: por vezes o mesmo sujeito que sustenta a literalidade, no dia seguinte, porque lhe interessa, sustenta o mais descarado voluntarismo. Vigora hoje, uma hermenêutica de ocasião. Fidelidade ao texto, só que ad hoc.

Volto ao Procurador Celso Tres, que me permito reproduzir, sem a ele pedir licença:

Delator é assistente da acusação remunerado pelo Estado mediante a moeda da impunidade. Como tratar esse colaborador como reles par inter pares dos demais réus? Correto, muito além dos delatados terem a última palavra, é o delator responder ação penal em separado. No processo criminal dos demais acusados, ser ouvido com seu real status, qual seja, não é réu, testemunha, tampouco agente de Estado infiltrado na criminalidade … é colaborador, tendo pactuado sua impunidade total ou parcial em troca de produzir prova contra outrem. Casos em que atuei na representação do Ministério Público Federal, assim procedi.

O Procurador Tres foi na pleura. Desmanchou as dezenas de comentários – muito deles nitidamente raivosos e contra a pessoa do colunista (já estou acostumado com haters; já os néscios me são mais difíceis de suportar) – que sustentavam que o STF legislara e que a literalidade resolvia tudo etc.

Houve também a opinião de um juiz-não-identificado – ele tem o nickname de Sr. L – (interessante isso, não? – seria um juiz sem rosto?) que misturou conceitos e mostrou claramente que nem mesmo em comentários ele é imparcial… A frase mais intrigante do JSN (de agora em diante, juiz sem nome) foi: alegação final não é delação. Pronto. Como é possível que ninguém tenha pensado nisso antes? Penso que o JSN abre caminho para as cortes superiores em grande velocidade.

Sigo. Semelhante à posição do JSN foi a de um advogado empresarial, de nickname “com fé na advocacia” (sic). Homem de pouca fé (parece fé de menos), advirto desde já. Diz ele, mostrando toda a sua “erudição resumo-facilitada”: “Parece que estão dando valor demais às alegações finais no processo final.” Bingo. “Jenial”, não? UniZero? Uni-Nada? O que faz um advogado em um processo criminal, caro “bacharel com fé?”? As alegações não são importantes? Sem comentários. Com tanta coisa para dizer, por que não se calar? Não dizer nada quando não se tem o que dizer também é uma questão de responsabilidade, afinal.

O advogado Pedro de Sá fez uma bela crítica “aos comentadores que não sabem ler”. Transcrevo:

A maioria dos que comentam deveriam ler o artigo sem palas nos olhos.

Não se dúvida que Alegações Finais do delator são peça da sua defesa, e que, como qualquer defesa pode confrontar-se com a de outros réus, delatados ou não. Também não se dúvida que isso ocorre noutros processos, e que nem por isso seja sempre necessário permitir que algum dos réus fale por último. Até porque, esse juízo teria que ser realizado à posteriori. O que o Sr. L [é o JSN] parece não querer ver, é que no caso analisado pela 2ª Turma (quando há réus delatores e delatados), alguns dos réus associaram-se com a acusação e dependiam que alguns fatos narrados fossem provados (juízo de verdade) para que os “dedo duros” obtivessem os benefícios penais contratados. (…)

Delator reúne-se com o acusador para traçar estratégias. E assim, caminha a humanidade.

Correto, Pedro. Você e Tres, por serem experientes no assunto e terem uma visão constitucional, conseguem, em poucas linhas, esclarecer o busílis da questão. O advogado Marcos Alves Pintar também trouxe excelente colaboração ao debate. Tentou polemizar com o JSN, mas um grupo de haters se aliou ao segundo. E aí virou um grupo de uats, se me entendem a ironia.

Sigo. Interessante foi a chinelada que o oficial de justiça que se assina RBO deu no JSN. É a primeira vez que vejo um oficial de justiça admoestar um juiz. Vale a pena ler:

Para o réu delator receber o prêmio da sua delação é necessário que o réu delatado seja condenado. Só assim estarão presentes as condições exigidas pela lei para o réu delator receber o perdão judicial ou a redução da pena.

Como negar o interesse processual do réu delator na sentença condenatória que o transforma em um quase” assistente de acusação” nem precisa falar que a prova produzida pelo réu delator não se submete ao termo de compromisso isso por si só é mais que suficiente para diferenciar frente ao artigo 5, inciso LV da Constituição o réu delator do réu delatado.

Seria admissível aceitar que a defesa apresentasse as alegações finais antes das alegações da acusação?

O oficial de justiça “matou a pau”. Poderia lecionar a matéria. Ensinou ao juiz o cerne da questão. Somando Tres, Pintar, Pedro e RBO, houve goleada (aviso ao nickname Oiracis 01: não, não vou desistir – sou um otimista metodológico; contra os néscios e haters ou os dois juntos, tenho, por exemplo, como aliados, os que antes nominei).

Como viram, a coluna hoje é diferente. Baseada nos comentários dela mesma. Autopoiese colunística. Para dizer que o STF acertou. E que o caso é simples. Easy case. Mais simples do que se pensa. O resto é ideologia (estou sendo generoso).

Uma coisa que devemos cuidar (no sentido de Sorge – preocupação ou cura): fazer hermenêutica implica coerência. Por exemplo: quem sustenta que a literalidade esgota a interpretação assume o ônus de um textualismo ingênuo, tipo “é proibido levar cães na plataforma e o intérprete permite ursos e proíbe o cão guia do cego. De outra banda, não pode, só porque lhe interessa, transformar-se em um voluntarista, como impedir que uma avó disponha livremente da metade de seu patrimônio para testar. Nem textualismos, nem voluntarismos, nem invencionices. Não se pode trocar o símbolo da justiça – uma balança – por um ovo, que é o personagem Humpty Dumpty. Mas também não se pode condenar Cláudio à morte, como o fez Ângelo, na peça Medida por Medida. Já escrevi milhares de páginas para explicar isso. Nem o juiz é escravo da lei, nem é seu dono. A hermenêutica é complexa e exige fineza de trato. Trata-se de dois mil anos de filosofia à serviço do processo compreensivo.

Adotar uma postura implica ônus e bônus. Optar por algo exige que se renuncie às outras opções. Não se pode ter o melhor dos dois mundos. Não se pode sustentar a literalidade do 403 e chutar o balde na presunção da inocência (283).

Ora, o texto só vale quando importa? E quando não importa, vale nada?

Fantástico. Não se tem princípios para nada, nem para se fazer interpretação no direito a sério. Para ser mais claro: Para os textualistas de ocasião, repito aquilo que Dworkin dizia aos originalistas, que, para favorecerem seus pré-juízos “conservadores” (reacionários, isso sim), diziam que ser fiel ao Direito era respeitar as intenções originais dos pais da Constituição dos EUA.

Dworkin, como sempre, ia na veia: ora, vocês só podem estar achando que os founding fathers eram idiotas. Gente do calibre de Maddison ia por acaso fazer como vocês, e esquecer que o Direito, interpretativo, só se dá em seu tempo, em sua facticidade?

Dizendo favorecer os juízos dos pais fundadores, só favoreciam aos seus próprios. Rejeitando juízos de valor, faziam o mais irresponsável juízo de valor. Honrando aos founding fathers, deles zombavam.

O que quero dizer com isso? Ser fiel ao Direito é interpretar com a responsabilidade política e até existencial que a lei e a Constituição impõem. Interpretar uma lei não se resume à simplista e ingênua dicotomia “literalidade” – “não-literalidade”. O direito seria patético se fosse assim. Dworkin fala no “fit” – ajuste. Cabe-nos, hermeneutas, fazer o fit. Permito-me recomendar vários livros em que mosto, amiúde, o que é isto – interpretar e aplicar a lei (por todos: O que é isto- decido conforme minha consciência – 5ª. ed; Dicionário de Hermenêutica – agora também em castelhano; Diálogos com Lenio Streck, Verdade e Consenso – 6ª. ed, também em castelhano; Hermenêutica Jurídica e[m] Crise; Lições de Crítica Hermenêutica do Direito – 11ª. ed; Compreender Direito – em vários volumes, etc).

Haters, façam como os comentaristas sérios: leiam a sério e levem o Direito a sério.

 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Redação

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