Reflexões pós-dia dos pais – sempre podemos celebrar um pai? Por Dora Incontri

Reflexões pós-dia dos pais – sempre podemos celebrar um pai?

por Dora Incontri

Ontem, as redes sociais foram inundadas por fotos, lembranças, homenagens, saudades – todas elas dirigidas a pais, vivos ou mortos, perto ou distantes. Mas, claro, todos pais que exerceram de alguma maneira – ainda que humanamente imperfeita – a sua paternidade. Quando isso acontece, o pai é um alicerce, é uma força que se enraíza na criança que, crescendo, não a perde, ao invés, – pode sempre voltar a ela, para revigorar-se, mesmo que seja apenas numa lembrança. Melhor ainda se o pai nos acompanhar por muitos anos vida afora.

Ser pai é uma missão, uma honra, um atestado de que Deus ainda confia na humanidade – ao entregar essas criaturinhas lindas, frágeis, sinceras, confiantes às nossas mãos inábeis… às mãos pesadas de homens que não aprenderam a cuidar e acarinhar e tantas vezes se equivocam como pais.

Infelizmente, houve muita gente que não pôde postar fotos com os pais ontem, porque há pais que abandonam e nunca mais são vistos; há pais, que violentam, machucam e deixam marcas físicas e psíquicas que as pessoas levam para o resto da vida; há pais que abusam, violam a inocência infantil, cavando um buraco na alma da criança, que uma vida inteira não consegue preencher… há pais que matam as mães e depois se matam e os filhos ficam órfãos de pai e mãe no mesmo instante – muitas vezes tendo assistido à cena do crime.

Então, se é bonito e bom termos um pai presente e que na medida de suas possibilidades deu o melhor de si, não podemos fazer vista grossa para grande parte da população brasileira, que não teve a mesma sorte.

Só para recorrermos aos tristes números: 5,5 milhões de brasileiros não têm o nome do pai no registro. E o Brasil tem dois mil órfãos do feminicídio por ano… na maior parte das vezes, o pai matando a mãe.

A violência doméstica, a paternidade renegada, o abuso sexual são realidades arraigadas há muitas gerações no perfil masculino. Tudo isso faz parte do patriarcado estrutural, em que o homem se julga dono da mulher e dos filhos ou simplesmente não entende (ou faz que não entende) que o nascimento de uma criança é responsabilidade sua também.

Então, não adianta apenas romantizarmos a paternidade e espalharmos fotos fofas na rede, assim como não adianta que as constelações familiares (altamente em moda hoje) recomendem o “honrar” os antepassados e o retomar das ordens do amor – tenho muita resistência diante de tais ordens propostas por Bert Herlinger, porque parecem provir de uma estrutura bastante patriarcal e hierarquizada. Um pai deve ser sempre honrado, mesmo que seja alguém que matou a mãe dos filhos ou que não respeitou a integridade física e psíquica de uma criança? Nem tudo é sagrado no mundo – ou antes, os homens conspurcam as coisas mais sagradas.

Por outro lado, não adiantam também medidas meramente punitivas: prisão, multas, indenizações…

É preciso uma mudança profunda. Uma nova constituição da masculinidade. Um homem precisa sim aprender a cuidar, a respeitar a integridade física do outro – seja mulher, criança, adolescente, seja outro homem… Um homem precisa ser criado com empatia, com senso crítico em relação ao patriarcado, porque o patriarcado faz mal a ele mesmo, além da violência e da opressão praticadas contra os outros.

Quantos homens conheço que usaram de violência, que abandonaram, que negligenciaram (e muitas vezes porque também foram abandonados, feridos, abusados… e reproduzem isso) e que hoje estão velhos, sozinhos, implorando um trocado para os filhos ou privados da família, dos netos…

É preciso perdoar. É o ideal. Mas sejamos realistas, às vezes as feridas são tão profundas que só o que se consegue é tentar esquecer.

Precisamos ouvir o que muitas feministas têm dito: ou a revolução será feminista ou não será. Para mudar de dentro a sociedade, só acabando com o patriarcado.

E o desgoverno que está lá no planalto, insensível e com sadismo sorridente diante dos 100 mil brasileiros mortos, com um homem que considera a filha mulher uma fraquejada, que mataria um filho gay, que não tem a mínima empatia humana, esse homem é o reflexo de milhões de homens violentos, homofóbicos, machistas, que o elegeram, que o admiram. E de mulheres que, inconscientes e autodestrutivas apoiam a própria mentalidade que as desqualifica e mata.

Somente se mudarmos esse cenário, poderemos celebrar tranquilamente bons pais, porque então todos os pais serão bons e assumirão sua missão sagrada.

 

Conexões – espiritualidade, política e educação - Dora Incontri

Dora Incontri é paulistana, nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora

Conexões – espiritualidade, política e educação - Dora Incontri

Dora Incontri é paulistana, nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora

Recent Posts

Roberto Jefferson deve voltar à prisão após informe de hospital

Internado desde 2023, o ex-deputado apresenta quadro estável para receber alta; Alexandre de Moraes manteve…

10 horas ago

Lula lembra trabalho da Embrapa na luta contra a fome

Presidente esteve em evento que marcou aniversário de 51 anos de fundação da empresa de…

10 horas ago

Embrapa celebra aniversário fechando acordos estratégicos

Termos de cooperação englobam participação de ministérios e instituições para desenvolver projetos em torno do…

11 horas ago

O legado de 50 anos da Revolução dos Cravos que o partido Chega quer enterrar em Portugal

Arcary explica a "embriaguez social e política que deixa o mundo completamente fascinado" trazida pela…

12 horas ago

Análise: Pagamento de dividendos da Petrobras é vitória do mercado

Valor distribuído pela estatal só não é maior do que o montante pago durante o…

12 horas ago

Reforma tributária: governo define alíquotas e propõe cashback para mais pobres

Fazenda prevê IVA de 26,5% sobre produtos e serviços, exceto os alimentos da cesta básica;…

13 horas ago