
Segunda onda da pandemia, crise socioeconômica e reformas
por Rodrigo Medeiros e Luiz Henrique Faria
Não restam dúvidas sobre a necessidade da permanência de gastos públicos deficitários para o enfrentamento da pandemia, assim como não há dúvidas sobre a segunda onda de Covid-19 em diversos países. No que se refere aos efeitos multifacetados, na economia e na sociedade, tampouco restam dúvidas sobre a deterioração do que já estava ruim no Brasil. Nesse sentido, destacamos o artigo “The Crisis is Not Over, Keep Spending (Wisely)”, de Oya Celasun, Lone Christiansen e Margaux MacDonald, publicado no blog do Fundo Monetário Internacional (FMI), no dia 2 de novembro.
Segundo as autoras, que pertencem aos quadros do Departamento de Pesquisa do FMI, “a crise econômica induzida pela pandemia deixará cicatrizes profundas”. Os efeitos negativos da pandemia na produção, no emprego e na renda dos trabalhadores foram significativos e já se tem noção da devastação que o fenômeno de histerese pode provocar em uma economia. De acordo com as pesquisadoras, “a erosão do capital humano por causa do desemprego prolongado e do fechamento de escolas, a destruição de valor por falências e as restrições à política fiscal futura decorrentes do aumento da dívida pública estão no topo da lista”.
Os déficits fiscais nas economias do G20 deverão encolher no próximo ano, com base nos orçamentos anunciados e nas políticas atuais. Conforme ponderaram as pesquisadoras, “embora parte disso reflita que o crescimento deve se fortalecer, o maior contribuinte para a melhoria dos saldos fiscais é uma retirada abrupta do apoio discricionário – medidas de alívio que foram introduzidas para conter os efeitos da crise”. Essa retirada prematura de apoio poderá estabilizar algumas dessas economias em um patamar abaixo do que se registrou antes da pandemia.
Ainda segundo as pesquisadoras do FMI, “essa retirada do apoio está ocorrendo em um momento em que as perdas de emprego decorrentes da crise ainda são projetadas para serem consideráveis, conforme evidenciado por enormes quedas no emprego projetado em relação às tendências pré-pandemia”. O apoio fiscal dos governos deve ser mantido, pois “uma retirada prematura do apoio representaria mais danos aos meios de subsistência e aumentaria a probabilidade de falências generalizadas, o que, por sua vez, poderia prejudicar a recuperação”. As cicatrizes da crise se tornariam ainda mais profundas com essa rápida busca pelo equilíbrio fiscal a qualquer custo humano.
Na medida do possível, é preciso evitar apertar a política fiscal muito cedo em uma recuperação e buscar garantir suporte contínuo para a saúde, os indivíduos e as empresas. “Em economias com restrição de capacidade de gastar”, argumentaram as pesquisadoras, “uma nova priorização dos gastos pode ser necessária para proteger os mais vulneráveis”. Economias subdesenvolvidas possuem maiores restrições ao avanço do gasto público, tendo em vista as suas estruturais dependências da importação de bens de capital e de insumos de produção, isso para não aprofundarmos questões nos perversos aspectos regressivos de tributação. Afinal, não nos causa espanto que a reforma tributária brasileira tenha encontrado constrangimentos no Congresso.
Um processo inflacionário, nesse contexto de crise, pode muito bem derivar da desvalorização da moeda nacional, quando não estiver também associado a algum choque nas cadeias de suprimentos de bens básicos não duráveis (alimentos, por exemplo). Nesse mesmo contexto, dificilmente a elevação da taxa básica de juros da parte de um banco central, independente ou não, ajudaria a efetiva recuperação econômica de um país. Reformas regressivas certamente não ajudariam.
Para o mundo pós-pandemia, as políticas públicas precisarão ser voltadas para uma nova realidade. Como exemplo, as pesquisadoras do FMI apontaram que as “políticas que promovem o investimento e a contratação em setores em expansão e fornecem oportunidades de requalificação e treinamento aos desempregados fortalecerão a recuperação e a tornarão mais sustentável”. Estímulos e investimentos públicos para promover a descarbonização contribuiriam não somente para aumentar o nível de emprego no curto prazo, mas também para aumentar a resiliência no futuro.
O impasse no Brasil é surrealista, inclinando-se para o aprofundamento de uma distopia. Em matéria publicada no UOL, no dia 15 de outubro, o presidente da Câmara dos Deputados apresentou uma defesa do teto dos gastos primários. Conforme constou na matéria, “é impossível você abrir o próximo ano ou aprovar o orçamento para o próximo ano antes de aprovar a PEC Emergencial, é impossível”, disse o presidente da Câmara. A PEC 186/2019, conhecida como PEC Emergencial, aciona gatilhos para cortes de gastos públicos, inclusive salários de servidores. Desde 2016, as reformas têm buscado reduzir os gastos públicos com a população e preservar o próspero horizonte futuro do rentismo elitista. A coalizão regressiva comprometida com as contrarreformas perdeu fôlego com a pandemia, principalmente a partir da discussão da reforma tributária, porém há quem busque retomar essa agenda.
Não ajudarão o Brasil o apelo público para o medo de um colapso hiperinflacionário das contas públicas e a sugestão de que ocorrerá uma maior fuga de capitais porque o país não aprofundou as contrarreformas neoliberais. Retóricas do medo e das chantagens econômicas são bem conhecidas na América do Sul. Não são novas na região e foram recuperadas, como parte do discurso ideológico da Guerra Fria, pela onda de ultradireita, em aliança com elites econômicas e políticas extrativas de valor das sociedades. Nesse sentido, o desmonte dos serviços públicos, algo que também está presente na proposta de reforma administrativa brasileira, atende à lógica patrimonialista do estabelecimento de uma nova frente de oportunidades de negócios extrativos para quem possui bom trânsito político.
Outro relevante artigo publicado no blog do FMI, “How COVID-19 Will Increase Inequality in Emerging Markets and Developing Economies”, de Gabriela Cugat e Futoshi Narita, publicado no dia 29 de outubro, revelou como as desigualdades sociais devem crescer nos países não desenvolvidos. Em síntese, “um estudo recente do FMI mostra que a capacidade de trabalhar em casa é menor entre os trabalhadores de baixa renda do que entre os de alta renda”. Portanto, não é preciso muito esforço para constatar que a retirada prematura de auxílios e de proteção social, quando ainda iremos enfrentar uma segunda onda nesta pandemia, provocará efeitos sociais e econômicos muito negativos em um país extremamente desigual como o Brasil.
Rodrigo Medeiros e Luiz Henrique Faria são professores do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes)

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