Silvia Federici: A “caça às bruxas” que matou mulheres no passado permanece atual

Para filósofa ítalo-americana, revisitar a caça às bruxas ajuda a entender índices alarmantes de violência contra a mulher, que não se resolverão apenas com base nas leis

Por Andréa Martinelli

Do Huffpost Brasil

Para a filósofa e historiadora ítalo-americana, Silvia Federici, de 77 anos, leis não são suficientes para combater a onda de violência contra as mulheres. Além da camada jurídica, é preciso entender origens, causas e sintomas que se manifestam e estruturam a base da sociedade capitalista. Nesse sentido, para a escritora, revisitar o período de inquisição e caça às bruxas é fundamental.

Em seu novo livro, Mulheres e caça às bruxas: da idade média aos dias atuais a ativista feminista traz argumentos do cultuado Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva, e decreta que a violência que matou milhares de mulheres no século passado ganha roupagens tão cruéis quanto na atualidade.

Publicado em 2018 nos Estados Unidos, o ensaio Mulheres e caça às bruxas chega ao Brasil pela editora Boitempo, com prefácio da pesquisadora Bianca Santana e orelha escrita pela professora da UnB, Sabrina Fernandes.

“As mulheres tiveram maior probabilidade de serem vitimizadas porque foram as mais ‘destituídas de poder’”, escreve Federici que, em seu trabalho, foi além da teoria de Marx sobre a origem do capitalismo, propondo que a “acumulação primitiva” possui uma face obscura que gera opressão histórica às mulheres.

Federici aponta que na Europa, por volta do século 16 e 17, mulheres eram lavradoras, pedreiras, parteiras, curandeiras e tinham autonomia sobre seus corpos, decidindo de forma livre pela gravidez ou aborto, por exemplo. Mas ao lançar seu olhar para a inquisição ― que eliminou as chamadas “servas do diabo” ― analisa que este período sequestrou poder e liberdade das mulheres.

Em setembro, a historiadora esteve no Brasil para o lançamento do livro e também participará do evento “Democracia em Colapso?”, promovido pelo Sesc São Paulo entre os dias 15 e 19 de outubro. As inscrições para dias avulsos do evento serão abertas na próxima quarta-feira (9), a partir das 12h.

Leia trecho do quatro capítulo de “Mulheres e caça às bruxas”:

Por que as caças às bruxas foram dirigidas principalmente contra as mulheres? Como se explica que, ao longo de três séculos, milhares de mulheres se tornaram a personificação do “inimigo no meio de nós” e do mal absoluto? E como conciliar o retrato que inquisidores e demonólogos pintavam de suas vítimas como todo-poderosas, quase míticas – criaturas do inferno, terroristas, devoradoras de homens, servas do diabo que, enlouquecidas, percorriam os céus em cabos de vassoura –, com as figuras indefesas das mulheres reais que eram acusadas desses crimes e, então, terrivelmente torturadas e queimadas em fogueiras?

Uma resposta inicial a essa pergunta reconstitui a perseguição às “bruxas” desde os deslocamentos causados pelo desenvolvimento do capitalismo, em especial a desintegração das formas comunais de agricultura que predominavam na Europa feudal e a pauperização a que a ascensão da economia monetária e a expropriação de terras lançaram amplos setores das populações rurais e urbanas. Segundo essa teoria, as mulheres tiveram maior probabilidade de ser vitimizadas porque foram as mais “destituídas de poder” por essas mudanças, em especial as mais velhas, que, muitas vezes, se rebelavam contra a pauperização e a exclusão social e que constituíam a maioria das acusadas. Em outras palavras, as mulheres foram acusadas de bruxaria porque a reestruturação da Europa rural no início do capitalismo destruiu seus meios de sobrevivência e a base de seu poder social, deixando-as sem nenhum recurso além da dependência da caridade de quem estava em melhores condições. Isso em uma época de desintegração dos laços comunais e de cristalização de uma nova moralidade – que criminalizava o ato de pedir esmolas e desprezava a caridade, que no mundo medieval fora um caminho conhecido para a salvação eterna.

Além da resistência à pauperização e à marginalização social, que ameaças as “bruxas” representavam aos olhos de quem planejava exterminá-las?Silvia Federici, em “Mulheres e Caça às Bruxas”

Essa teoria, expressa pela primeira vez por Alan Macfarlane em Witchcraft in Tudor and Stuart England (Bruxaria na Inglaterra dos Tudor e dos Stuart, 1970), certamente se aplica a muitos dos julgamentos de bruxas. Há, sem dúvida, uma relação direta entre vários casos de caça às bruxas e o processo dos “cercamentos”, como demonstram a composição social dos grupos acusados, as acusações feitas contra eles e a caracterização comum da bruxa como mulher pobre e idosa que vivia sozinha, dependia de doações da vizinhança, ressentia-se amargamente de sua marginalização e, muitas vezes, ameaçava e amaldiçoava quem se recusava a ajudá-la e inevitavelmente a acusava de ser responsável por seus infortúnios. Essa descrição, entretanto, não explica como aquelas criaturas miseráveis inspiravam tanto medo. Também não justifica o fato de tantas entre as acusadas serem denunciadas por transgressões sexuais e crimes reprodutivos (como cometer infanticídio e causar impotência masculina); entre as condenadas, havia mulheres que tinham atingido certo grau de poder na comunidade trabalhando como curandeiras tradicionais e parteiras ou operando práticas mágicas como localização de objetos perdidos e adivinhação.

Além da resistência à pauperização e à marginalização social, que ameaças as “bruxas” representavam aos olhos de quem planejava exterminá-las? Responder a essa pergunta exige que retomemos não apenas os conflitos sociais gerados pelo desenvolvimento do capitalismo, mas a transformação radical que isso causou em todos os aspectos da vida social, a começar pelas relações reprodutivas/de gênero que caracterizaram o mundo medieval.

Redação

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. O trabalho de Silvia Federici é mesmo muito importante e eu espero que este seu novo livro encontre a acolhida que merece no Brasil. Eu utilizei bastante o pensamento desta autora – citando a fonte – em um texto publicado aqui no GGN onde procuro mostrar, no caso do Brasil de Bolsonaro, o vínculo entre a violência contra a Terra e contra a mulher – para quem se interessar, mando aqui o link:

    https://jornalggn.com.br/artigos/capitalismo-violencia-contra-a-mulher-violencia-contra-a-terra-por-franklin-frederick/

    Franklin Fredericl

  2. “Leis não são suficientes”. Nunca foram. Iludem-se os que dizem o contrário.
    O que precisamos é de uma mudança cultural. Esta é lenta, mas é realmente eficaz.
    Por exemplo: na minha juventude, não existiam leis para que idosos e grávidas tivessem preferência de assento em transporte público. Bastava entrar uma mulher grávida e várias pessoas se levantavam e ofereciam o assento. Hoje, no metrô e ônibus de SP, existe Lei e lugares marcados para os idosos e grávidas. E, mesmo assim, várias vezes observamos que um elemento ocupa o lugar demarcado e alguns até fingem que estão dormindo.
    Nenhuma lei é mais forte do que o Respeito e Solidariedade presentes na consciência do cidadão.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador