Temporal de incompetência, por Luis Gustavo Reis e Eduardo Luiz Fortti

Temporal de incompetência

por Luis Gustavo Reis e Eduardo Luiz Fortti

Todo ano a história se repete: chuvas, enchentes, deslizamentos, mortes, famílias desoladas. 

Segundo o veredito de alguns, a culpa é sempre da chuva que caiu demais, do aquecimento global que fervilha a Terra, dos pobres que ocupam áreas inadequadas, do rio indevidamente transbordado. No papel de messias, ainda bradam: “nós avisamos, mas os incautos deram de ombros!”. 

E assim, verão sim e outro também, sobretudo no Centro-Sul do país, os brasileiros assistem ao mesmo triller de horror dos tsunamis que imaginamos existir somente do outro lado do planeta ou nos filmes gravados em estúdios hollywoodianos. 

Como é praxe da profissão, políticos profissionais estufam o peito e afiam o gogó prometendo soluções mirabolantes. Com voz altiva e dedo em riste, destilam alteridade: “A partir de agora” – urram eles – “seremos uma só força em favor dos desabrigados. Não deixemos, compatriotas, nossos corações esmorecer! Sigamos unidos, a esperança é o combustível que nos irmana”. 

Comovida, parte da opinião pública se desmancha em lágrimas. É dilacerante o drama daqueles que tiveram suas vidas destroçadas e que agora, sem recursos, vão reconstruí-las. Num átimo, porém, a sensação de impotência ganha força e imobiliza. Somadas a ela, as promessas não cumpridas das autoridades, a falta de interesse de parte dos meios de comunicação em denunciar o descaso e o restabelecimento da invisibilidade dos desterrados se encarregam de completar o escárnio. E assim, terminada a exploração sensacionalista da tragédia, como se nada tivesse acontecido, tudo volta à normalidade até se repetir no próximo verão. 

Há grupos da sociedade, inclusive, que preferem os desterrados longe de suas vistas, ou melhor, de suas praias. Um exemplo pertinente é o abaixo-assinado organizado por um grupo de moradores de Maresias, em São Sebastião (SP), que objetiva barrar a construção de 220 imóveis destinados a famílias que vivem em áreas de risco. 

Nitidamente preocupados com a sorte dos desvalidos (contém ironia), jamais com o próprio status quo, os moradores apelam: “A prefeitura considera a desvalorização imobiliária do entorno de um local de implantação deste tipo de conjunto habitacional popular?”. “Deste tipo de conjunto habitacional”, caro leitor, entenda-se Minha Casa, Minha Vida, programa do governo federal que destina moradias para pessoas de baixa renda. 

Empenhado em sua missão, um dos responsáveis pelo abaixo-assinado ainda questiona: “Ao colocar essas famílias com faixa salarial de um a três salários mínimos, qual seria o esquema de segurança proposto para um local desse?”. A “segurança” relatada pelo sabujo está relacionada à suposta delinquência dos novos inquilinos, pouco importando os riscos que essas pessoas correm nos lugares precários onde vivem. 

Para quem assinou o documento, portanto, os pobres são bem-vindos em Maresias como força de trabalho, barata e submissa, no papel de serviçais, jamais como vizinhos. A praia que revelou um grande atleta do surfe mundial, vejam vocês, não pode ter seu nome vinculado aos moradores das encostas.  

Exemplos como esse são muitos, os maganos não suportam a ideia de conviver com “gente diferenciada”. Essa mesma gente que sofre com os reiterados “desastres naturais” que assolam o país.  

Não é de hoje que uma cidade como São Paulo tem problemas relacionados às enchentes. Até meados do século XIX, porém, as cheias dos rios Tamanduateí, Tietê e Pinheiros não causavam danos irreversíveis aos seus habitantes. A rigor, derrubavam pontes, interditavam caminhos e inutilizavam estradas. Como as chuvas eram esperadas todos anos, evitava-se ocupar as várzeas e as baixadas – lugares onde as cheias causavam maiores estragos.

A situação começou a mudar a partir do final do século XIX, quando a cidade despontou como centro produtor e exportador de café, desencadeando um intenso e desordenado crescimento demográfico. Para se ter uma ideia, a cidade que em 1872 tinha cerca de 31 mil habitantes, contabilizava 239 mil em 1900. Quatro décadas depois, abrigava cerca de 1,4 milhão de habitantes. 

Esse crescimento demográfico não foi acompanhado de planejamento. A especulação imobiliária e o desejo de parcelas abastadas da sociedade de morar em “lugares exclusivos”, acarretaram a expansão da mancha urbana de forma descompassada. Surgiram bairros ricos ligados ao comercio e a indústria, localizados em áreas altas e valorizadas (Higienópolis é um deles), bem como assentamentos distantes, periféricos, em terras baixas e alagadiças, juntos aos rios e córregos, destinadas aos trabalhadores pobres. 

Todo esse movimento afetou as águas que atravessavam a cidade, já que seus rios, várzeas e córregos, vistos nesta época como barreiras para o desenvolvimento de uma sociedade moderna, foram diretamente impactados pela intervenção humana. As várzeas, em especial, responsáveis por regular o regime de transbordamento dos rios, foram paulatinamente ocupadas. Esse fluxo de ocupação impedia sua função natural de drenagem das águas e contribuía decisivamente para o aumento de alagamentos. 

A medida que a cidade crescia e se urbanizava, as inundações se tornavam cotidianas. Em meados de 1875, com o objetivo de conter as cheias do rio Tamanduateí, construiu-se a chamada “Ilha dos Amores”, na região da Várzea do Carmo. Obra pública de grosso calibre, mobilizou gente graúda da São Paulo antiga. O objetivo da obra era transformar o lugar em passeio público, adornado com jardins, árvores, quiosques e toda gama de recursos que resolvesse os alagamentos que assolavam os cidadãos paulistanos. Apesar da suntuosidade, a iniciativa naufragou e não atingiu os objetivos almejados. 

Em 1889, instalou-se em São Paulo a empresa São Paulo, Tramway, Light & Power Company. Atraída pelas demandas de serviços que a expansão demográfica acarretava, a companhia passou a oferecer serviços de bonde, gás, telefonia e energia elétrica. 

A Light & Power costurou relações profundas com o poder público e patrocinou diversas obras na cidade, entre elas algumas que visavam minimizar os distúrbios causados pelas enchentes. A relação entre Light e poder público era tão estreita, que a empresa era autorizada a desapropriar áreas de seu interesse, sob a justificativa de serem de “utilidade pública”. O que até então era prerrogativa do governo central, portanto, passou a ser moeda de troca de uma empresa multinacional. As áreas de interesse da Light não podiam mais ser frequentadas por pessoas que antes a usavam para pescar, jogar bola, dar água às cabras, ou seja, áreas onde parte da população passava suas horas de lazer e muitas famílias garantiam sua dieta e seu sustento. 

A Light encampou obras gigantescas, que afetaram sobretudo os rios Tietê, Tamanduateí e Pinheiros. Entre canalizações, retificações e assoreamento, o propósito traçado era fornecer serviços e acabar com as enchentes. Apesar dos esforços, anualmente os jornais noticiavam inundações em diferentes pontos da cidade e inumeráveis prejuízos materiais e humanos. As duas primeiras décadas do século XX foram penosas para as pessoas que ocupavam áreas alagadiças. 

Preocupados em resolver essa questão e outras, decorrentes do processo de urbanização, como fornecimento de energia e transporte, as autoridades públicas se mobilizaram e autorizaram a Light a empreender obras audaciosas, entre elas a elevação do nível do reservatório da atual represa Billings, a canalização do rio Pinheiros, invertendo seu curso, bem como a utilização das águas excedentes do rio Tietê. Esse excedente seria desviado à serra do Mar, por meio da inversão do rio Pinheiros, e objetivava ampliar o fornecimento da energia elétrica em hidrelétricas controladas pela companhia. 

Em 1929, a Light estava no centro de um debate que se arrasta até hoje e divide especialistas sobre sua responsabilidade no episódio. Após cinco dias de chuvas nas cabeceiras dos principais rios de São Paulo, no dia 18 de fevereiro, a Light decidiu abrir as comportas do reservatório do rio Grande (atual Billings) e do Guarapiranga e fechar a barragem da usina de Santana de Parnaíba. Com isso, a empresa provocou uma das maiores inundações da história paulista: a famosa enchente de 1929.

Os jornais noticiavam o alagamento das ruas, o bloqueio do tráfego, o acionamento do corpo de bombeiros, as mortes de civis e muitos transtornos. Por anos, qualquer ameaça de chuva provocava pânico nos moradores de São Paulo. 

Evidente que as inundações eram recorrentes na cidade, mas a iniciativa da Light potencializou os alagamentos e atingiu áreas que jamais tinham sofrido com tais intempéries. 

A Light provocou uma grande mobilização no Brasil entre as décadas de 1930 e 1950. Como atuava em diferentes esferas, passou a fazer parte do cotidiano das pessoas e integrou o imaginário popular. Era presença confirmada em músicas, poesias, entre outras manifestações populares. Havia até uma expressão: “E eu com a Light?”.

Nos anos 1960, visando modernizar a estrutura de transporte, abrindo espaço para circulação dos automóveis, o governo inicia a construção das marginais, paralelas aos rios Tietê e Pinheiros. Como isso, o transporte pelos rios desaparece e o ferroviário entra em declínio. Os bondes saem de circulação, não porque as pessoas o rejeitavam, mas porque outra opção de transporte era imposta goela abaixo.

Ao longo do século XX, o processo de industrialização se encarregou de poluir, canalizar e ocultar os rios paulistas. A Cidade Universitária (USP), o Jóquei Clube e o bairro do Jaguaré, por exemplo, situam-se sobre as áreas que antes abrigavam as curvas e as várzeas do rio Pinheiros. A Avenida Nove de Julho, passa em cima do que era o rio Saracura. A Avenida 23 de Maio atropelou o rio Itororó e apagou qualquer vestígio do afluente. Já no centro da cidade, o rio Anhangabaú desapareceu das vistas dos pedestres que transitam pelo local. Córregos e ribeirões também foram soterrados pela canalização e pelo esquecimento, como ocorreu com o ribeirão Pacaembu, que flui por baixo da Avenida Pacaembu, e a Avenida Sumaré, que ocultou o córrego da Água Branca.

De cidade serpenteada por rios, córregos e suas várzeas, São Paulo passa a categoria de selva de concreto, com rios poluídos, fétidos, mortos. 

Com chuvas torrenciais a cada ano, aumento do volume de água na rede, impermeabilização crescente do solo, detritos despejados nos rios Tietê e Pinheiros, desmatamento e ocupação desordenada de locais de alto risco, as enchentes e os deslizamentos são e serão constantes em São Paulo e alhures. 

Semana passada, fomos impactados com os deslizamentos de terra na Baixada Santista. Entre mortos e desaparecidos, há crianças, idosos, bombeiros. Como de hábito, o governador João Dória se isentou da responsabilidade: “É difícil prevenir tragédias dessa natureza. São centenas de habitações em lugares irregulares, é um trabalho de longo prazo, não de curto prazo de retirar as pessoas de encostas e colocar em lugares seguros”. O curioso é que, mesmo sabendo ser um trabalho a longo prazo, o governo não moveu uma palha para retirar as famílias da área de risco antes da tragédia. 

Em Minas Gerais, o governador Romeu Zema culpou as vítimas: “Há áreas que qualquer chuva maior pode ocasionar um deslizamento. Inclusive, muitas das vítimas que tivemos nesta semana foram porque não obedeceram aquilo que foi orientação dos bombeiros e da Defesa Civil”. O mandatário sequer considerou as condições de vida dessas famílias, que muitas vezes não tem para onde ir. 

Já o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, foi mais descarado. O bispo, que dispensa solidariedade aos mais pobres, declarou o seguinte: “As pessoas gostam de morar ali perto dos talvegues [linha mais baixa de um vale por onde escorre a água da chuva e das nascentes] para gastar menos tubo e colocar cocô e xixi e ficar livre daquilo. Essas áreas são muito perigosas”. Para o alcaide, portanto, a culpa é dos cidadãos que ocupam locais de alto risco, não do descaso do poder público em elaborar estratégias que minimizem os danos e evitem mortes. 

O cenário brasileiro para conter enchentes e deslizamentos não é nada alvissareiro. Avenidas tomadas pela água, comércios alagados, casas destruídas pelos deslizamentos se tornaram uma “segunda” natureza do país durante o verão. Parece habitual esperar por transtornos e tragédias quando a estação das águas está de volta. 

Autoridades políticas e seus asseclas podem até querer atribuir inundações e deslizamentos às condições climáticas e à imprudência dos desafortunados, numa tentativa covarde de se eximir de responsabilidade, mas o trágico acontecimento que assola o país anualmente é produto de décadas de imprevidência administrativa e descaso do poder público e que governos recentes nada fazem para reverter.

Luis Gustavo Reis é professor e editor

Eduardo Luiz Fortti é mestre em história e professor

Redação

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