Uma carta para ela, de Lúcio Verçoza

De quantas quarentenas é feito o mundo? De quantos mundos se faz uma quarentena? De quantas dúvidas se faz uma vida? De quantos medos se faz um homem?

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Uma carta para ela
Lúcio Verçoza

 

De quantas quarentenas é feito o mundo? De quantos mundos se faz uma quarentena? Ontem havia uma senhora na minha rua, hoje não sei se ela está dentro de casa ou se ela se foi. De quantas dúvidas se faz uma vida? De quantos medos se faz um homem? Hoje olho para a minha filha, ela me olha com medo de sair na rua. Os olhos tão limpos e redondos, o corpo tão frágil, delicado e uma alma maior que o fio infinito do horizonte.

Olho para ela, e ela se reflete em mim. Quem me dera ter a chave do tempo. O tempo caminha pela rua e a rua adentra nossa casa. A rua da nossa porta, vazia, adentra a nossa casa. Chegam notícias como um vento ruim. Quem me dera dançar com ela Ray Charles, no meio da rua, com um céu azul sobre nossas cabeças. Se as nuvens viessem no meio da rua, mesmo assim nós sorriríamos. Admiraríamos as nuvens, o chão de paralelepípedos, o meio fio, a grama. E se a chuva viesse, dançaríamos na chuva como se estivéssemos tomando um banho de mar sem medo das ondas. Enquanto não podemos ir ao mar, enquanto a pandemia achata o tempo e as nossas paredes, ela pula no colchão do quarto como se fosse a rua, e me pede para repetir o disco do Ray Charles. Eu sorrio, sei que em 15 minutos terei que retornar para o computador para finalizar o meu trabalho remoto.

Minhas costas doem, minha privacidade é invadida pelo microfone do computador e pela lente da câmera que projeta meu rosto na tela. Ela não entende por que me afasto dela e passo grande parte do dia de frente para a tela, ela se revolta com razão, e pede o lado B do disco do Ray Charles. Eu entro na segunda aula e falo com um olho na tela e outro na sala de casa, escuto com um ouvido os alunos e com o outro o som da minha casa. Surgem birras, inquietações, eu tiro uma dúvida do aluno com a testa franzida, o aluno não compreende por que minha testa está franzida. Percebo que o aluno percebeu e tento ser simpático e bem humorado. Minha filha pede atenção. Eu olho para tela, com um clique, desligo temporariamente o microfone e peço grosseiramente para ela aguardar só mais um pouco. A aula demora. Ela me espera.

Quero me deitar no sofá. Ela quer brincar de bola. Quero brincar deitado. Ela quer brincar em pé. Ela precisa de mim. Eu preciso dela. Falamos sobre o que faremos quando o coronavírus for embora. Ela sonha com coisas que fazíamos e não sabíamos que eram sonhos. Eu sonho junto com ela e planejo uma ida à praia com um fim de tarde na lagoa. Ela lembra como é pisar no fundo da lagoa, a lama como se fossem pelos e a água quente do fim da tarde. Esquecemos dos mosquitos e sorrimos um para outro. Olho para tela do meu celular, mensagens se acumulam.

Quando ela dorme, escrevo um texto, e penso na quantidade de textos não escritos. Se eu soubesse tocar piano faria uma música. Mas na madrugada teria que tocar o piano baixinho, para embalar o sono dela sem ela perceber que eu estava ali embalando o seu sono. E quando ela sonhasse com a praia e com a lagoa, escutaria o som do piano entre um passo e outro, entre um mergulho e outro. E ela faria parte do som do piano, e saberia que eu faço parte dela. Ainda que com um olho nela e outro na tela. Eu sou parte dela e ela é parte de mim.

Redação

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