Uma perigosa combinação explosiva, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Austeridade não produz crescimento. As únicas coisas que cresceram na Itália, Grécia, Alemanha, etc… foram o racismo e os partidos de extrema direita.

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Uma perigosa combinação explosiva

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Sacudido pela crise financeira interna e externa, o governo Bolsonaro optou por continuar adotando medidas de austeridade. O resultado será tão catastrófico que uma parte da imprensa já começou a defender a extinção do teto de gastos e a adoção de um programa de investimentos públicos. Os acertos do governo Lula voltaram a ser valorizados, muito embora os analistas políticos se recusem a admitir que eles mesmos estavam errados ao endossar a virada neoliberal em prejuízo da democracia brasileira ao apoiar o golpe de estado contra Dilma Rousseff.

As virtudes da austeridade são consideradas mágicas, místicas e até sagradas pelos defensores do neoliberalismo. Sua adoção na zona do Euro só tem produzido cinco coisas: perpetuação de taxas de desemprego elevadas, redução da renda e do consumo, aumento do endividamento público, paralisia administrativa e o descrédito do regime democrático.

Austeridade não produz crescimento. As únicas coisas que cresceram na Itália, Grécia, Alemanha, etc… foram o racismo e os partidos de extrema direita. Nenhuma novidade. O fermento para o sucesso do nazismo nos anos 1930 foi justamente a adoção de medidas de austeridade pelo Partido Social-Democrata Alemão.

Em seu livro Austeridade – A história de uma ideia perigosa, Mark Blyth estuda de maneira detalhada o que ocorreu nos anos 1920 e 1930. Vale a pena ler com calma essa obra de envergadura escrita por um especialista que deixou a ideologia de lado e se concentrou nos fatos. Farei aqui um resumo dos três cenários históricos que ele narra de maneira detalhada.

No Japão a adoção de medidas de austeridade antes e após o retorno ao padrão ouro empurrou o país para uma espiral de crescimento negativo. A crescente redução das despesas afetou as Forças Armadas. Em razão disso, banqueiros, políticos e um ministro da economia foram assassinados por militares ou a mando deles. “A austeridade não se limitou a não funcionar no Japão. Criou a pior depressão da história japonesa, provocou uma campanha de assassinatos contra banqueiros e deu poder àquelas ‘pessoas maravilhosas que nos trouxeram Pearl Harbour.’” (Austeridade – A história de uma ideia perigosa, Mark Blyth, editora Autonomia Literária, São Paulo, 2017, p. 284). O Japão somente voltou a crescer de maneira consistente quando as Forças Armadas conseguiram capturar totalmente o poder político. Elas expandiram as despesas militares e começaram a implementar seu ambicioso programa de expansão asiática que levou inevitavelmente à aniquilação do país ao fim da II Guerra Mundial.

Na França o sistema bancário conspirou contra os governos de esquerda e apoiou os governos de direita que adoraram medidas de austeridade. Sempre que um governo ameaçava retomar investimentos públicos o Banco da França estimulava ou facilitava a fuga de capitais para salvar a moeda sem se preocupar com a destruição econômica do país. O corte de despesa governamental atingiu em cheio as Forças Armadas incapacitando-as para defender o país. Isso facilitou a vitória do III Reich, pois “…Como disse um acadêmico, havia uma coisa que Hitler sabia em 1936. O franco seria defendido a todo custo. Quanto à França, era uma questão inteiramente diferente.” (Austeridade – A história de uma ideia perigosa, Mark Blyth, editora Autonomia Literária, São Paulo, 2017, p. 288).

O que ocorreu na Alemanha foi ainda mais interessante. Os governantes sociais-democratas adoraram medidas de austeridade para deliberadamente produzir um colapso. Eles acreditavam que “…quando a economia estava em recessão não havia literalmente nada a fazer, a não ser deixar o sistema colapsar até que aparecesse magicamente o socialismo.” (Austeridade – A história de uma ideia perigosa, Mark Blyth, editora Autonomia Literária, São Paulo, 2017, p. 277). O fracasso econômico, entretanto, produziu um fenômeno político diferente do que os socialistas esperavam. Os eleitores começaram a votar contra os socialistas. Não por acaso os três pontos principais da vitoriosa propaganda nazista em 1932 foram “…primeiro, ‘o desemprego causa pobreza, o emprego cria prosperidade’; segundo ‘o capital não cria empregos, os empregos criam capital’; e terceiro, ‘os benefícios de desemprego sobrecarregam a economia, mas a criação de emprego estimula a economia’.” (Austeridade – A história de uma ideia perigosa, Mark Blyth, editora Autonomia Literária, São Paulo, 2017, p. 278)

H.-I Marrou e Paul Veyne defenderam a tese de que a sociedade não é nem determinista nem cíclica.

“…a realidade histórica, tal como a revela a experiência através de documentos, só nos fornece fenômenos singulares, irredutíveis um ao outro. Se é possível instaurar uma comparação entre alguns desses fenômenos, as analogias que se pode dessa maneira por em evidência só incidem sobre aspectos parciais, ficticiamente abstraídos pela análise mental, nunca sobre a própria realidade (encontramos, como a propósito da procura das ‘causas’, as consequências que resultam da impossibilidade de proceder por meio da experimentação à constituição de sistemas fechados, isolando este ou aquele elemento do real). As observações de caráter pretensamente geral, que se procura fazer passar por ‘leis da história’, não passam de semelhanças parciais, relativas ao ponto de vista momentâneo sob o qual o olhar do historiador preferiu fixar tais aspectos do passado.” (Do conhecimento histórico, H.-I. Marrou, Martins Fontes, 4a. edição, 1975, p. 178/179)

“A história – e um fato – presta-se mal a uma tipologia e quase nunca podemos descrever tipos bem caracterizados de revoluções ou de culturas como descrevemos uma variedade de insetos; mas, mesmo que fosse de outro modo e existisse uma variedade de guerra da qual se pudesse fazer uma descrição com muitas páginas, o historiador continuaria a contar os casos individuais pertencentes a essa espécie. Todavia, o imposto direto pode ser considerado como um tipo de imposto indireto também; o que é historicamente pertinente é que os Romanos não tinham imposto direto e quais foram os impostos estabelecidos pelo Diretório.

Mas que individualiza os acontecimentos? Não é a sua diferença nos pormenores, a sua ‘matéria’, o que eles são em si próprios, mas o fato de acontecerem, quer dizer, acontecerem num dado momento; a história não se repetirá nunca, mesmo que lhe aconteça repetir a mesma coisa. Se nos interessarmos por um acontecimento em si mesmo, fora do tempo, como por uma espécie de ornamento seria inútil como estetas do passado, deleitarmo-nos com o que ele teria de imitável, uma vez que o acontecimento não deixaria de ser um ‘modelo’ de historicidade, sem ligações no tempo. Duas passagens de João sem Terra não são um modelo de peregrinação que o historiador teria em duplicado, porque o historiador não consideraria indiferente que aquele príncipe, que já tivera tanto desgostos com a metodologia da história, tivesse tido a infelicidade suplementar de tornar a passar por onde tinha passado; ao anunciar-se a sua segunda passagem, ele não diria ‘eu conheço’, como faz o naturalista quando se lhe leva um inseto que já possui. O que não implica que o historiador não pense por conceitos, como toda a gente (ele fala corretamente em ‘passagem’), nem que a explicação histórica não deva recorrer a tipos, como o de ‘despotismo esclarecido’ (isto já foi sustentado). Isto significa simplesmente que a alma do historiador é a de um leitor de ‘faits-divers’; estes são sempre os mesmos e são sempre interessantes porque o cão que é atropelado neste dia não é aquele que foi na véspera, e mais naturalmente porque hoje não é a véspera.” (Como se escreve a história, Paul Veyne, edições 70, Liboa-Portugal, 1987, p. 18/19)

Hannah Arendt rejeitou de maneira eloquente o valor intelectual das previsões do futuro.

“A falha lógica nessas construções hipotéticas dos eventos futuros é sempre a mesma: aquilo que antes aparece como uma simples hipótese – com ou sem as suas consequentes alternativas, conforme o grau de sofisticação – torna-se imediatamente, em geral após alguns poucos parágrafos, um ‘fato’, o qual, então, origina toda uma corrente de não-fatos similares, daí resultando que o caráter puramente especulativo de toda empreitada é esquecido. Não é preciso dizer que isso não é ciência, mas pseudociência, ‘a desesperada tentativa das ciências sociais e comportamentais’, nas palavras de Noam Chomsky, ‘de imitar as características superficiais das ciências que realmente têm um conteúdo intelectual significativo. E a mais óbvia e ‘mais profunda objeção a esse tipo de teoria estratégica não é sua utilidade limitada, mas o seu perigo, pois ela pode nos levar a acreditar que temos um entendimento a respeito desses eventos e um controle sobre seu fluxo, o que não temos’, como indicou recentemente Richard N. Goodwin em um artigo de revista que tinha a rara virtude de detectar o característico ‘humor inconsciente’ de muitas dessas pomposas teorias pseudocientíficas.” (Sobre a Violência, Hannah Arendt, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2009, p. 21)

A perspectiva adotada pela grande filósofa alemã que emigrou para os EUA me parece adequada. Na pior das hipóteses somos obrigados a dizer que a tese de Hannah Arendt encontra fundamento em David Hume. No século XVIII aquele filósofo escocês já havia demonstrado que ninguém deveria considerar válido o argumento resultante de uma “falácia naturalista”. Atribuir à “descrição da realidade” o poder de se transformar numa “norma projetiva” é um absurdo metodológico que compromete qualquer conclusão.

Dito isso passarei a fazer alguma consideração sobre o bolsonarismo.

O presidente brasileiro prometeu crescimento econômico e adotou medidas de austeridade e esbarrou na realidade: o crescimento de 2019 foi pífio. Colhido por uma crise financeira interna e externa ele reforçou sua crença no austericídio. Apesar do fluxo de capital ser diferente do esperado pelo governo (o dinheiro está saindo e não entrando no Brasil), a política econômica segue sendo orientada para a desvalorização do real. O fundo do poço não é um limite e o sistema bancário brasileiro não vai defender nossa moeda como o sistema bancário francês. Quando as reservas cambiais acabarem o Brasil sempre poderá pegar empréstimos no FMI para fazer mais do mesmo em benefício sabe-se lá de quem.

Doentiamente anti-comunista e anti-petista, Bolsonaro segue apostando numa política econômica suicida que legitima o discurso petista de retomada da economia através de investimentos públicos. No Brasil os sinais estão mais ou menos trocados. A esquerda tenta identificar o bolsonarismo ao nazismo (algo plausível, pois Bolsonaro quer exterminar índios, petistas, gays, negros, etc…), mas do ponto de vista econômico inexiste semelhança entre Bolsonaro e Hitler. O nazista alemão chegou ao poder lutando contra a austeridade do Partido Social-Democrata alemão. O bolsonarismo parece acreditar que o colapso do sistema levará não ao socialismo e sim ao militarismo.

Os militares brasileiros apoiam as medidas de austeridade, desde que o governo garante o aumento das despesas com as Forças Armadas. Bolsonaro está tentando realizar esses dois objetivos mutuamente excludentes, mas ele esbarra na oposição parlamentar. No Japão dos anos 1930 o fim do austericídio foi obtido de maneira violenta. O resultado, entretanto, foi a aniquilação do país ao fim da II Guerra Mundial. No Brasil o reforço da austeridade é que pode resultar no aumento da violência política.

Austeridade, militarismo, desprezo pela moeda brasileira… tudo isso embalado por uma profunda ignorância histórica. Bolsonaro é um governante histérico, fraco e governado por um Ministro da Economia fanático e incapaz de se render aos fatos. O mito oscila entre tentar terminar seu mandato e concorrer à reeleição ou dar um golpe de estado sem o apoio da maioria dos governadores. Os sinais dados pelo comando das Forças Armadas são dúbios. Vários generais ficaram irritados em razão de terem sido demitidos e alguns deles criticam abertamente o bolsonarismo.

O futuro do Brasil é incerto. Os investidores de longo prazo gostam não gostam de incertezas. Apenas os especuladores de curto prazo são capazes de tirar proveito de um cenário caótico como aquele em que o nosso país foi jogado em virtude do “golpe com o Supremo com tudo”. E já que falamos desse assunto, ainda não ficou totalmente claro quem é o verdadeiro comandante do sistema de poder precariamente construído através da fragilização da democracia brasileira.

A esquerda parece continuar acreditando na possibilidade de uma virada eleitoral. A direita não consegue se decidir se fechará ou não o Congresso em que ela mesma tem a maioria. Protagonistas da fraude eleitoral que impediu Lula de derrotar Bolsonaro, procuradores e juízes estão sendo desmoralizados e desprezados pelo bolsonarismo.

“Os juízes gostam de se sentir importantes, meu jovem”, essa foi a frase mais importante que eu ouvi na minha carreira como advogado. Ela foi dita por um desembargador aposentado que trabalhou comigo num processo importante em meados da década de 1990. Ao tratar os juízes como irrelevantes, desimportantes e/ou descartáveis, Bolsonaro contenta a tigrada evangélica. Mas ela não sabe o que realmente está fazendo.

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

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