Izaias Almada
Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.
[email protected]

Venezuela: Povo e Forças Armadas (I), por Izaías Almada

O artigo a seguir é uma revisão atualizada da introdução que escrevi para o livro “Venezuela, povo e Forças Armadas”, Ed. Caros Amigos

Venezuela: Povo e Forças Armadas (I)

por Izaías Almada

O artigo a seguir é uma revisão atualizada da introdução que escrevi para o livro “Venezuela, povo e Forças Armadas”, Ed. Caros Amigos:

I – O desafio da História

SÃO 21H EM SÃO PAULO, 20h em Caracas. O dia, 14 de outubro de 2005.

Acabo de falar por telefone com a Sra. Aurora Morales, diretora de relações internacionais do MVR (Movimento da V República, partido liderado por Chávez que concorreu às eleições de 1998), a mim indicada pelo cônsul da República Bolivariana da Venezuela em São Paulo, o Sr. Jorge Luís Durán Centeno.

A Sra. Morales me atendeu com grande gentileza e objetividade. Tinha já conhecimento do meu interesse em entrevistar militares e civis venezuelanos, atores de um processo revolucionário inédito na América Latina.

Queria eu saber um pouco mais sobre a integração cívico-militar naquele país e até que ponto essa experiência poderia dar frutos num país como o Brasil, por exemplo, ainda que por aqui façamos parte daquele grupo de nações sul-americanas que devota grande preconceito contra os militares. E vice-versa. Contudo, dada a nova configuração da geopolítica internacional naquele momento até os dias presentes, creio que será preciso construir com urgência alternativas contra tal preconceito aqui no Brasil. Vencê-lo na medida do possível e transformá-lo em aliança. Assim como na Venezuela: povo e FFAA.

Terminada a conversa com a Sra. Morales, confesso que alguma emoção tomou conta de mim ao confirmar a viagem para Caracas, pois todo projeto tem suas dificuldades específicas. E, quando o projeto é um pouco mais ambicioso, as dificuldades aumentam.

Imaginei, à partida, que não seria nada fácil coincidir meus próprios interesses jornalísticos e de escritor com a disponibilidade de personagens que construíam uma nova nação e, no meu modesto entender, um novo caminho para os povos excluídos do Terceiro Mundo. Ainda mais quando o país estava às vésperas de outro processo eleitoral, as eleições para a Assembleia Nacional de 04 de dezembro de 2005, onde a própria Sra. Morales seria uma das candidatas.

Na verdade, essa emoção, que a princípio tentei explicar pela simples possibilidade de entrar em contato direto com tais atores, foi tomando forma diferente dentro de mim ao me lembrar de que dez anos antes, vivendo eu em Portugal, tive a oportunidade de ler a entrevista publicada por um jornal português com o tenente-coronel Hugo Chávez Frias, libertado poucos meses antes da prisão de Yare por sua participação num levante militar no ano de 1992.

Na época, ao ler a entrevista, já estava vivendo por quase cinco anos fora do Brasil. Fiquei com a sensação de que aquele homem dizia coisas que normalmente os militares sul-americanos não costumavam dizer. Havia nas entrelinhas da entrevista alguma coisa que me dizia ser aquele um homem especial.

Naquele ano, 1995, eu havia recebido o prêmio Vladimir Herzog de jornalismo pela escrita da peça teatral Uma Questão de Imagem e vim ao Brasil receber, com muito orgulho, o prêmio do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Trouxe comigo o exemplar do jornal português O Público, que continha a entrevista com o “tal” Chávez, e mostrei a alguns amigos, ex-companheiros de militância política nos tempos da ditadura.

Todos torceram o nariz: afinal, diziam, tratava- se de mais um militar golpista. Mesmo o ex-jornalista e amigo Granville Ponce, já falecido e com quem sempre travei discussões francas, reafirmou que não costumava confiar nos militares.

E esse tema, a confiança nos militares, começou a tomar forma dentro de mim e a ocupar algumas das minhas reflexões. Dois tios, irmãos de minha mãe, foram militares, ambos, àquela altura, já falecidos.

Era natural que muitos de nós, militantes de esquerda, tivéssemos tal desconfiança, eu inclusive. Afinal, de modo geral – e a nossa História comprova o fato – as Forças Armadas brasileiras, aquelas que ganharam forma e consistência após 1889, quando um movimento militar instaurou a República no Brasil, quase sempre se posicionaram ao lado das classes dominantes e de seus interesses econômicos e políticos.

A expressão máxima dessa atitude se dá, em meu entender, com o golpe de 1964 e a deposição através das armas (e do apoio do Departamento de Estado norte-americano) do governo legalmente constituído de João Goulart.

A tentativa de resistência a esse golpe de Estado, em que muitos de nós nos lançamos a uma oposição também armada, foi duramente reprimida com prisões, sequestros, tortura e morte de cidadãos brasileiros. O preconceito se acentuou, chegando mesmo, em alguns casos, ao ódio de lado a lado.

Boa parte dos militares das nossas três armas, mesmo alguns de formação e ideias liberais e nacionalistas, nutria uma prática anticomunista que chegava aos limites da intolerância, do fanatismo. O mesmo se dando, na contramão ideológica, no meio da oposição à violência fascista, por parte dos que lutavam contra o regime de exceção.

Lembro-me de que, quando estive no presídio Tiradentes, em São Paulo, alguns companheiros costumavam brincar, querendo saber a minha opinião sobre esse ou aquele militar da época, pois eu tinha o hábito de acompanhar, em leitura atenta dos jornais, os discursos, as promoções de carreira, o pensamento que – diga-se de passagem – não era tão hegemônico dentro das três armas: os jovens turcos nacionalistas, os duros de ultradireita, os liberais, os profissionais, outros tantos ligados ao PCB, as disputas pelo poder político.

Castelo Branco, Ernesto Geisel, Golbery do Couto e Silva, Costa e Silva, Garrastazu Médici, João Batista Figueiredo, Sylvio Frota são alguns dos nomes sonantes de militares que se impuseram à história contemporânea do Brasil e que são avaliados e explicados, entre outros trabalhos de mérito, na extensa obra de investigação do jornalista Elio Gaspari sobre o período.

Sempre considerei, naquela altura, que as divergências, contradições e divisões internas, principalmente no Exército, poderiam ser aproveitadas para tentar ganhar a simpatia dos menos radicais. É evidente que essa minha postura era considerada, no mínimo, ingênua para as circunstâncias da época, mas sempre mantive a convicção de que o estamento militar (ou pelo menos muitos de seus integrantes) poderia caminhar junto com todos aqueles que queriam (e ainda querem) transformar o Brasil numa nação menos dependente dos interesses do capital financeiro internacional.

Nação com suficientes recursos humanos e naturais, o Brasil tem tudo para se transformar em potência mundial, soberana e independente. Ou, como costumava pregar o antropólogo Darcy Ribeiro, “transformar-se na maior das nações neolatinas com predicados para se contrapor à civilização anglo-saxônica”.

Após os anos de prisão e militância política revolucionária, e que não foram pera doce, com o chamado retorno à democracia, passei a considerar que o exercício da política partidária brasileira, nos moldes da democracia representativa burguesa que se impunha, com ênfase para o seu aspecto eleitoral, não se encaixava em minhas expectativas ainda cheias de convicções ideológicas centradas no marxismo histórico, amparadas pelo pensamento dialético, cada vez mais na contramão daqueles que se deixavam seduzir pelo viés do fim da História, das teorias que procuravam encontrar novas saídas para o capitalismo, da “terceira via”, da experiência chinesa de dois sistemas, teorias que nas últimas décadas tentaram enterrar as alternativas propostas pelo pensamento socialista com a aceitação pura e simples, para muitos, de que a queda da antiga União Soviética representava, de maneira real e também emblemática, o fim das ideias de Marx, Engels, Lênin, Mao, Guevara, Ho Chi Minh e de tantos outros valorosos pensadores e combatentes das causas populares. Tornei-me um “dinossauro”, como outros tantos compatriotas, no linguajar dos anos 90.

Mesmo sofrendo o preconceito, jamais deixei de acreditar na força da dialética e nas possibilidades reais de transformação da nossa realidade, apesar da prática corporativa e autista dos nossos partidos políticos, para dizer o menos; da prática inescrupulosa de deputados e senadores que trabalham em causa própria e fazem lobbies para defender interesses de grupos antinacionais; de inúmeros intelectuais de esquerda “desiludidos” e que não conseguiram resistir aos cantos da sereia neoliberal; dos “caçadores de marajás”, dos vendilhões da pátria através de privatizações e compras de votos para a própria reeleição, da propaganda e das imposições e armadilhas do “Consenso” de Washington, da OMC, do Banco Mundial, do FMI.

Os anos foram passando, a realidade mudando com uma força e uma rapidez extraordinárias, o capitalismo entrando na sua fase mais avassaladora, agressiva e impositiva, deixando de contar com uma contrapartida de forte caráter dissuasivo aos seus avanços e conquistas, como foi o Exército Vermelho soviético, por exemplo, quando então o mundo é submetido, pela força da propaganda e até mesmo das armas, à fase da chamada globalização da economia, eufemismo que veio a substituir o termo imperialismo dos anos 60.

Tenho carregado nesse tempo a tristeza de ver a heroica resistência do povo cubano ao criminoso bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos da América ser transformada numa insensível cantilena anticubana, incluindo-se aqui inúmeros intelectuais de esquerda, contra a “ditadura” de Fidel Castro. País onde não há liberdade, dizem, como se a liberdade fosse uma dádiva divina e não uma conquista humana.

Há inclusive, nesse coral de puristas, aqueles que consideram que é preferível ser pobre e submisso, mas com liberdade de opinião e de expressão, hipocrisia que costuma esconder a defesa de privilégios e benesses, e mesmo covardias, sem falar naqueles que vendem a sua “liberdade de expressão” para defender os interesses dos exploradores, dos grandes monopólios econômicos que espalham a violência, a fome, a miséria e a ignorância pelo mundo. Como dizer, entre outras bobagens, como foi o do jargão publicitário, que liberdade é poder usar uma calça Lee…

Pois bem: é nesse contexto, já em finais do século XX, que um desconhecido tenente-coronel de exército de um país sul-americano, a Venezuela, que muitos não cansaram de vender por largos anos como um paradigma de democracia burguesa, se rebela. Surpresa para a esquerda e surpresa para a direita.

De início, não se conseguiu entender o fenômeno: um militar “golpista” a tomar as bandeiras da esquerda. Até que a história foi se encarregando de explicar o que queria esse militar e seu grupo de companheiros conspiradores.

De lá para cá, vinte anos depois, o mundo e em particular a América Latina já não podem ignorar o processo de transformação política e social que ocorreu e ocorre na Venezuela. Afinal, quais as condições que permitiram, num “país/quintal” dos EUA, que um grupo de militares, após sua fracassada tentativa de rebelião em 1992, chegasse ao poder através de eleições democráticas, seis anos depois?

E mais: onde houve o encontro decisivo, o estopim, a faísca entre o povo e as Forças Armadas que possibilitou o início de uma revolução, cujo líder – um militar de carreira – se coloca visceralmente contra o domínio de seu país pelo imperialismo norte-americano, criando uma alternativa real de enfrentamento às políticas de exploração impostas pelo capitalismo globalizado. E, é bom que se diga aos incautos, aos alienados e aos direitistas mais fanáticos, sem se tornar um “país comunista”.

Alguns livros já foram escritos procurando decifrar o enigma. Outros, apenas dando a cronologia dos fatos. Todos apontam a revolta popular de 1989, denominada “Caracazo”, como o principal ponto de inflexão, de mudança de consciência de muitos militares que se negaram a apontar suas armas contra o povo pobre e indefeso, que saiu às ruas para protestar contra o arrocho da política neoliberal de Carlos Andrés Pérez, mas mesmo essa circunstância não seria por si só decisiva para o que viria acontecer quase dez anos depois.

Há todo um conjunto de fatos, de ideias, de políticas impostas de fora para dentro do país, em que o modelo neoliberal foi seguido à risca como em todos os países da América Latina (à exceção de Cuba), com os desastres sociais provocados e já devidamente comprovados: o aumento da pobreza, do desemprego, da concentração de renda, da ignominiosa e impagável dívida externa, da espoliação do trabalho humano e do assalto às riquezas naturais dos povos da América espanhola e portuguesa. E, sobretudo, na Venezuela, com a comprovada má distribuição da renda proveniente de uma inestimável e mal administrada, durante anos, riqueza natural, o petróleo.

CONTINUA…

Izaias Almada

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

3 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. vão destruir pays da venezuela,,, o brésil sera conivente contra um crime contra humanidade, vãolarga uma bomba na venezuella ..jair bolsonaro, eo fascista du trump .

  2. O fascismo terá sua atual força política, não destruída, mas tão atenuada que parecerão gatinhos, aqui no Brasil, na Venezuela e na Europa, ele ressurgiu porquê esqueceram do conselho do Brecht: a cadela do fascismo está sempre no cio.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador