A Política da (in)Justiça

O dia 11 de setembro já pode ser considerado uma data histórica no Brasil e comemorativa em São Paulo. Jatos de guerra não precisaram bombardear o palácio do governo como no Chile em 1973. Aviões de passageiros não foram usados como bombas de demolição de dois arranha-céus em NY (EUA 2001). Em nosso caso o momento histórico não ocorreu como tragédia (nem como farsa) e sim como uma despretensiosa cerimônia na Rua General Jardim, 43, Centro, São Paulo.

A cerimônia em questão foi singela, mas nem por isso deixou de contar com a presença de figuras de destaque na cena jurídica paulista e brasileira. Enquanto eu conversava com a autora entraram na fila para colher o autografo dela a desembargadora Kenarik Boujikian e o juiz Marcelo Semer.

Coisas grandes tem inícios pequenos, dizem os personagens Lawrence no filme Lawrence da Arábia e o androide David no filme Prometheus. Em nosso caso essa referência não é um luxo retórico para celebrar a reprodução de uma ficção cinematográfica numa noite gelada da capital paulista. Ela é essencial porque o lançamento do livro A Política da Justiça, de Luciana Zaffalon Leme Cardoso, tem todos os requisitos necessários para interferir na realidade institucional e desfazer uma ficção que foi sendo construída ao longo das duas últimas décadas.

A ficção desfeita pela obra de Zaffalon é de certa maneira semelhante àquela que fornece a moldura para Prometheus. No filme dirigido por Ridley Scott os personagens fazem uma viagem espacial para testar uma hipótese científica e, eventualmente, encontrar o criador com a finalidade de conseguir o prolongamento da vida (Peter Weyland) ou obter conhecimento e respostas para questões existenciais (Elizabeth Shaw, Charlie Holloway e os outros cientistas). A saga termina numa tragédia para todos os personagens, pois o que eles acreditam ser um criador justo não passa de um ser brutal egocêntrico e incapaz de distribuir justiça.

A obra de Zaffalon procura demonstrar com argumentos racionais sólidos, dados empíricos à disposição de qualquer pesquisador e rigoroso método científico que Judiciário paulista não existe mais para distribuir justiça aos cidadãos. Ele se transformou no imenso homem branco alienígena de Prometheus, cuja função é blindar uma elite e criminalizar qualquer um que ameace a existência dela perseguindo justiça ou respostas para os dramas existenciais impostos pela vida cotidiana numa sociedade racista, excludente, elitista, rigidamente hierarquizada e, sobretudo, concentradora de renda.

Coisas grandes tem inícios pequenos tanto no cinema quanto na realidade. A insurreição árabe comandada por Lawrence da Arábia levou à destruição do Império Turco. O lançamento do livro de Zaffalon é um marco divide a história recente de São Paulo em duas metades: antes e depois do conhecimento detalhado e contextualizado das entranhas do Judiciário paulista.

Modesta, durante a cerimônia de lançamento do livro a autora me disse que “tudo o que nós podemos fazer é causar constrangimento”. Luciana Zaffalon Leme Cardoso certamente não tem noção do tamanho do constrangimento que a publicação do livro irá acarretar, especialmente à medida que a obra for sendo lida e comentado por milhares, centenas de milhares e, quem sabe, milhões de pessoas.

O livro funciona como um manifesto em favor da recuperação do caráter estatal do sistema de justiça e da natureza pública da atividade a que ele se destina. A distribuição de justiça não pode ser a segunda missão dos promotores e juízes. Mas foi nisso que ela se transformou em razão deles terem se trocado a independência funcional por ganhos salariais para proteger a máfia partidária que comanda o Estado de São Paulo há décadas.

Zaffalon demonstra como essa rede de proteção foi construída (esmiuçando a legislação que garantiu privilégios crescentes para os promotores e juízes) e como ela funcionou na prática (estudo de casos concretos em que o MP e o Judiciário legitimaram a agenda partidária do governador e minimizaram as iniciativas que exigiam correções de rumo com base na legislação). Não vou entrar em detalhes, pois é impossível resumir esse livro manifesto. A Política da Justiça não parece ter sido concebido para ser um clássico discutido na academia e sim para se tornar uma ferramenta política nas mãos dos cidadãos paulistas e brasileiros.

Em um dos textos do livro Processo Penal do Espetáculo e outros ensaios, Rubens R.R. Casara disserta sobre as perspectivas da eficiência repressiva e da perspectiva garantista. Diz o magistrado carioca:

“Herança da escolástica medieval, o atual sistema penal assenta-se em uma visão maniqueísta – e artificial – que divide a sociedade entre ‘bem’ e ‘mal’, apresenta como princípio característico a seletividade (que reproduz e intensifica a desigualdade social com a criminalização dos excluídos da sociedade de consumo) e, mais do que um sistema voltado para a proteção de direitos é ‘um sistema de violação de direitos humanos’. Enfim, afastada a hipótese de má-fé, apostar no sistema penam como instrumento de realização do ‘bem comum’, como o fazem os defensores do eficientismo penal, apenas é possível com grandes doses de ingenuidade.” (Processo Penal do Espetáculo e outros ensaios, Rubens R.R. Casara, Tirant Lo Blanch, 2ª edição, Rio de Janeiro, 2018, p. 204)

Zaffalon demonstrou que o sistema de justiça paulista não existe para violar direitos humanos e sim para distinguir entre “seres humanos” (os promotores, juízes, desembargadores e seus protegidos) e aqueles que são tratados como se fossem sub-humanos (a ralé referida nos textos de Jésse Souza). A eficiência repressiva nesse caso não visa garantir o “bem comum”. Afinal, a própria existência de algo comum (a res-pública) pode ser colocada em dúvida quando os juízes estão mais preocupados em trocar a distribuição de justiça pela garantia de seus privilégios senhoriais.

Em São Paulo existem aqueles que estão acima da Lei e/ou fora do alcance dela. Mas para a maioria dos cidadãos – e no fundo foi isso que Luciana Zaffalon Leme Cardoso demonstrou através de sua pesquisam – a validade e eficácia do art. 35, I, da Lei Orgânica da Magistratura foi transformada numa utopia intangível e inatingível porque a ganância por dinheiro substituiu a sede de justiça que deveria orientar a ação dos promotores, juízes e desembargadores.

O livro tem muitas outras virtudes, mas vou parar por aqui fazendo algumas recomendações. Aos interessados, sugiro que comprem o livro e o devorem com calma e atenção. Aos editores, recomendo que façam uma edição popular e/ou de bolso da obra (o preço é muito salgado até mesmo para estudantes de Direito, quiçá para a maioria da população). À autora, que continue pesquisando e produzindo livros tão ou mais relevantes que A Política da Justiça. Àqueles que não estão em condição de comprar o livro nesse momento recomendo a palestra da autora https://www.youtube.com/watch?v=yH74KKtzPVs&feature=youtu.be.

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

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