Sérgio Moro e o Pacto dos Lobos “made in Brazil”

Assim que tomou posse no Ministério da Justiça, Sérgio Moro elaborou às pressas um projeto de lei que pode muito bem ser denominado Judge Dredd Enforcement Act. Aqui mesmo no GGN fiz algumas considerações sobre as novidades introduzidas por esse estranho Projeto de Lei que está sendo criticado pelos juristas brasileiros https://jornalggn.com.br/opiniao/as-peripecias-do-judge-dredd-no-ministerio-da-justica-por-fabio-de-oliveira-ribeiro/.

O conflito entre o Executivo e o Legislativo reduziu as possibilidades desse PL ser aprovado na Câmara dos Deputados. Por essa razão, Sérgio Moro resolveu enviá-lo ao Senado.

As críticas feitas ao projeto continuarão intensas. O aumento da letalidade policial não resolve o problema da segurança. A legitimação de execuções policiais extrajudiciais viola o direito constitucional à vida e a proibição expressa da pena de morte. Negros, pardos, índios e favelados continuarão a ser as vítimas preferenciais dos assassinatos policiais. É fato inquestionável que:

“A situação de penúria em que vive a maioria das pessoas, a exclusão social proveniente da desigualdade extrema e a incapacidade de tornar os direitos humanos uma realidade generalizada para a sociedade, fazem com que o Brasil seja caracterizado não como um genuíno Estado de Direito, senão como um sistema de não-Estado de Direito, um lugar onde inexiste o império da lei, tendo em vista que em sua acepção mais restrita o Estado de Direito pode ser entendido como o Estado cujos poderes são exercidos no âmbito de leis preestabelecidas.” (Criminologia Midiática, Raphael Boldt, editora Juruá, Curitiba, 2013, p. 47)

Ao meditar uma vez mais sobre esse assunto, lembrei-me de uma cena do filme Le Pacte des loups (2002). Ao levantar a suspeita de que a Besta não teria sido realmente morta, Grégoire de Fronsac escuta do representante do Rei de França uma observação mais ou menos assim:

“Para governar é preciso simplificar as coisas e lidar com um problema de cada vez. A existência da Besta de Gévaudan é um problema. Se besta deixou de existir o problema não existe mais e nós podemos seguir em frente.”

O Brasil tem sido pressionado a reformular suas instituições policiais. A letalidade policial crescente tem sido objeto de condenações internacionais. Se o Judge Dredd Enforcement Act for aprovado, esse problema diplomático deixará de existir. Sempre que for questionado sobre a letalidade policial num organismo internacional nosso país poderá alegar que o que parece violação sistemática de direitos humanos é na verdade o cumprimento da legislação que garante aos policiais o direito de se defender em razão de uma ameaça real ou aparente.

A ética é substituída por uma racionalização vulgar que tem a virtude de atender a vontade da população de punir os criminosos e salvar as vidas dos policiais.

“Como se não bastasse a utilização do direito penal para fins eleitoreiros, leis penais totalmente inconstitucionais – nos planos formal e material – são criadas com o intuito de solucionar emergências decorrentes de fatos que, diariamente, são veiculados pela mídia e absorvidos pela população sem qualquer reflexão crítica.

A ausência de crítica das ideias e valores é, na realidade, um dos principais problemas na superação do punitivismo e da dominação social. A assunção do pensamento cartesiano e de sua postura de subjugação da natureza à razão promoveu não apenas a separação entre sujeito e objeto, mas suprimiu a ética da sociedade e racionalizou a vontade de punição” (Criminologia Midiática, Raphael Boldt, editora Juruá, Curitiba, 2013, p. 43)

Além de fornecer uma probable cause para a defesa diplomática do Brasil e, principalmente, para manter as policiais funcionando como elas sempre funcionaram desde a Ditadura Militar, o Judge Dredd Enforcement Act desvia a atenção do respeitável público da falta de vontade política do novo governo de resolver os problemas sociais.

Instrumento cênico imaginado para garantir a continuação do Espetáculo, o PL de Sérgio Moro reforça o discurso hegemônico do neoliberalismo reproduzido à exaustão pela mídia para manter a hierarquia social com um menor custo, nem que seja com o aumento da violência policial supostamente legítima. Esse fenômeno também foi bem descrito pelo jurista Raphael Boldt:

“Os meios de comunicação de massa, especialmente a televisão, criam uma realidade, por evidente simbólica, capaz de moldar e organizar as experiências sociais, manipulando a conscientização das pessoas de acordo com as políticas adotadas. Assim, a realidade social é construída, posto que a mídia possui a fôrma e a massa com as quais modela o pensamento do povo (GUIMARÃES, 2007, p. 280).

É interessante observar que o discurso dominante se insere nos mais variados setores da sociedade (na educação familiar e escolar, nos meios de comunicação de massa, nos hospitais psiquiátricos, nas prisões, nas indústrias, nos poderes executivo, legislativo e judiciário), impedindo a flexibilidade entre o pensar e o agir.

Assim, por meio da naturalização – consideram-se naturais as situações que na verdade, são produtos da ação humana e, portanto, históricos e não naturais – e de universalização – maneira pela qual os valores da classe dominante são estendidos à classe dominada – a ideologia dominante se propaga por meio do discurso midiático hegemônico.

Logo, para resolver o problema da criminalidade, difunde-se e legitima-se as ideias de que ‘todo bandido deveria morrer’, de que ‘temos que aumentar as penas dos crimes’, ‘criar leis mais rígidas’, ‘instituir a pena de morte’ e, quem sabe, ‘jogar uma bomba nas favelas’.

Geralmente surgem, no seio das classes dominadas, alguns indivíduos que, apesar de toda censura e manipulação dos meios de comunicação, conseguem perceber melhor certos aspectos da realidade e procuram transmitir sua compreensão aos demais, conscientizando-os.

É esse o caso dos líderes operários, estudantes, religiosos e intelectuais. Nesses casos, a classe dominante, diretamente ou por intermédio dos órgãos do governo, procura neutralizar esses líderes através de ameaças, prisões, torturas ou, simplesmente, retirando-lhes toda e qualquer credibilidade.” (Criminologia Midiática, Raphael Boldt, editora Juruá, Curitiba, 2013, p. 62/63)

Não há meio termo, nem possibilidade de negociação. O Pacto dos Lobos “made in Brazil” de Sérgio Moro deve ser rejeitado na sua totalidade. A maneira correta de lidar violência é desenvolver políticas públicas que dissolvam os quistos de miséria que produzem tanto a criminalidade quanto a letalidade policial. Se não quer ser acusado de violar sistematicamente os direitos humanos no exterior, o Brasil deve reformar suas polícias e não aprovar um texto legal que faz o problema desaparecer de maneira aparente para manter tudo como está aumentando a violência policial.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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