
A falácia da democracia absoluta
Lula afirmou numa entrevista que democracia é “conceito relativo”. Falava da diferença de critérios usados por ele e pela imprensa para qualificar certos países. Os analistas pinçaram a frase do contexto, deram-lhe verniz abstrato e criaram uma falsa polêmica.
O episódio simbolizou a obsessão da mídia conservadora em sagrar-se porta-voz da única ideia correta de democracia, alinhada à pauta geopolítica dos EUA. Sugerindo que o ceticismo da esquerda em relação a esta perspectiva conota índole autoritária.
A robustez democrática que falta aos despotismos deveria ser a mesma que a patrulha enxerga em seus modelos civilizatórios. Afinal, ela defende critérios absolutos. Quando se trata do eixo aliado, porém, a intransigência dá lugar a mitos e contextualizações.
Não havendo autoimagem positiva que supere o rigor teórico, tratam de ligá-la a uma essência inata, imune a juízos. O voto indireto e o bipartidarismo, por exemplo, emanam as boas tradições iluministas, que os verdadeiros democratas “sabem” reconhecer.
O problema seguinte é lidar com as vergonhas das democracias “realmente existentes”. Assim os puristas são obrigados a normalizar o racismo, a censura, a repressão, o abuso judicial e outros vícios generalizados, avessos a princípios democráticos rudimentares.
Todos esses arbítrios servem a projetos de poder. E nenhum deles tem maior respaldo legal ou representativo do que similares de regimes despóticos. Jornalistas presos, livros proibidos e dissidentes silenciados valem o mesmo em qualquer recanto do mundo.
Querem aplicar os valores de forma “objetiva”? Pois descrevam as condenações de Julian Assange e de Lula para diversos cientistas sociais, sem identificar as vítimas nem os algozes, e observem quantos associam os episódios a ditaduras ou a democracias.
Os malandros respondem que depende da maneira como os fatos são expostos. Podemos denunciar as “miudezas administrativas” que tiraram a candidata venezuelana das eleições. E podemos afirmar que Dilma Rousseff caiu por causa de “crimes fiscais”.
É o que fazem os guardiões da doutrina: legitimam os governos Temer e Bolsonaro, mas condenam aparelhamentos institucionais de outro viés ideológico. Negam e aceitam a constitucionalidade vigente de acordo com os golpistas que a manipulam.
Levada a sério, a inflexibilidade conceitual nivelaria os países pelos denominadores abusivos comuns. Não chegamos a tanto porque essa bobagem funciona apenas como instrumento retórico da direita, e jamais para falar de seus próprios exemplos.
Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Mestre em Divulgação Científica e Cultural, doutor em Meios e Processos Audiovisuais. Website: www.guilhermescalzilli.blogspot.com
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