A morte de mulheres palestinas e o silêncio das feministas e da academia, por Francirosy Campos Barbosa

Neste momento, segundo dados divulgados pela ONU em 2 de março de 2024, são nove mil mulheres assassinadas pelo Estado de Israel.

Acervo ONU

do Jornal da USP

A morte de mulheres palestinas e o silêncio das feministas e da academia

por Francirosy Campos Barbosa

Há muito tempo venho enfrentando o feminismo branco e liberal, quando se trata de falar sobre mulheres marrons, muçulmanas, palestinas, entre outras. Mulheres essas que, esquecemos, não vivem como nós, não pensam como nós, não acreditam nas mesmas coisas que “nós”. A ideia de “salvar” essas mulheres passa pela cabeça de muitas, seja pelo véu que cobrem seus corpos, seja pela crença que não conhecem, seja porque simplesmente elas não têm a mesma cor, o mesmo cabelo, o mesmo padrão econômico, social e cultural.

Não vou me estender no “feminismo sinhá”. Já escrevi sobre isso, e citei minha amiga judia marroquina, Carla Mustafa, a quem credito o termo. A luta pela libertação dos nossos corpos passa pela libertação do colonialismo, do imperialismo, que afeta a vida de mulheres não-brancas, não-ocidentais, de forma mais violenta, que qualquer outra. Não é sempre que a “tradição religiosa” impera de forma patriarcal, muitas vezes é na religião, neste acolhimento difícil de explicar em palavras, que muitas mulheres encontram o seu conforto, em horas em que a ajuda não chega, seja do Estado, seja de outros governos, seja de movimentos feministas, que ousam não ouvir suficientemente o chamado — que a vida delas têm sentido e que isso perpassa o seu pertencimento religioso. É uma violação diária de corpos, é não-escuta, não-presença no acolhimento da dor de mulheres que são diametralmente diferentes dos nossos interesses políticos, ideológicos, religiosos e não religiosos. No entanto, elas seguem sendo mulheres, com suas dores, seus corpos, seus filhos, suas famílias e suas vidas despedaçadas pela guerra, pelo terror.

Neste momento, segundo dados divulgados pela ONU em 2 de março de 2024, são nove mil mulheres assassinadas pelo Estado de Israel. A ONU Mulheres alerta que, sem o fim da violência, cerca de 63 mulheres podem ser mortas diariamente. Os dados da entidade apontam que 37 mães são mortas a cada dia, deixando as famílias desamparadas e filhos em vulnerabilidade. Os dados a seguir são do Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários e do Ministério da Saúde da Palestina, de 27 de fevereiro de 2024:

• 30.206 mortos (407 na Cisjordânia e 29.692 em Gaza).
• 8 mil desaparecidos (sob os escombros, logo, pessoas mortas).
• Total de mortos (considerando desaparecidos): 38.206. Isso equivale a 1,75% da população palestina de Gaza, de 2.223.000 em 7 de outubro de 2023, quando teve início o genocídio na Palestina.
• 12.765 crianças mortas (105 na Cisjordânia).
• 4 mil crianças desaparecidas (sob escombros, então, mortas).
• Total de crianças mortas: 16.765 (45% do total de mortos).
• 8.570 mulheres mortas.
• Perto de 700 mulheres desaparecidas (sob escombros).
• Total de mulheres mortas: 9.270, pelo menos (25% dos mortos).

Os deslocados são 1,93 milhão (86,55% da população, oficialmente em 2.223.000), muito maior do que foi a Nakba em 1948 que expulsou ou matou mais de 750 mil palestinos.

É importante trazer esses dados, porque mesmo que eles se alterem diariamente, sabemos que falamos de genocídio, de limpeza étnica (como nos diz Ilan Pappé em sua obra A limpeza étnica da Palestina) que afeta os/as palestinos/as. Não dá mais para dizer que é crise humanitária, pois neste caso seria possível enviar alimentos, construir casas etc. Não é o que estamos assistindo. Nesta semana, todos acompanharam palestinos sendo assassinados, massacrados quando tentavam retirar a única forma para sobreviver em meio aos escombros: comida. Infelizmente vemos intelectuais, políticos, agentes públicos indignados com a fala do presidente Lula, mas pouco indignados e ativos quando se trata de defender a vida das mulheres palestinas e crianças palestinas. Não posso me referir a todos os grupos, mas um em particular, me espanta: apenas uma faculdade da USP, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, se pronunciou sobre este horror em sua Congregação.

Acho que vale a pena nos perguntarmos: qual é a ação da Universidade de São Paulo frente a dor de tantas pessoas? Onde estão as feministas da USP, sempre prontas a defender mulheres em situação de risco? Enfim, o que fazemos diante disso tudo?

O silêncio percorre nossos corredores, nossos pátios e cantinas.

Nem precisaria explicar, mas vou. Não estamos falando do judaísmo, da fé de judeus, não se trata disso, nem dos nossos amigos judeus, o patrão judeu, a professora judia. Estamos falando da vida de mulheres, homens, crianças que morreram e morrem há 76 anos para terem sua casa, sua rua, seu bairro, seu país… Desde a Nakba (catástrofe), o povo palestino vem sendo dizimado paulatinamente. Trata-se do fim do apartheid palestino. A Universidade tem responsabilidade diante disso, não pensem que não tem.

Quando nos deparamos com o fato que mulheres palestinas, desde o início, tiveram que se submeter a medicamentos para não menstruarem, pois a dificuldade em se manter minimamente, ou melhor, dignamente limpas já tornava isso humanamente impossível, o sinal de alerta nas mulheres que defendem pautas feministas deveria ter sido ligado. O corpo feminino abusado, violado de diversas formas, quando foram submetidas a um bombardeio incessante, não podendo alimentar seus filhos, cuidar deles, tudo isso deveria ser suficiente para que nos movermos sem restrição, sem medo. É pela vida de mulheres palestinas! De mulheres judias! Ainda escuto o grito de uma mãe palestina que dizia: “meus filhos morreram e eu não tinha alimentado nenhum deles, meus filhos morreram com fome!!” Não dá para dizer que precisa ser mãe para entender esse grito, esse choro… basta estar vivo para compreender isso… é uma questão de humanidade.

Há cinco meses, as senhoras feministas brancas, ocidentais, liberais, assistem à morte de mulheres e crianças, mas é a fala do presidente que incomoda. Mas não li esses mesmos/as incomodados/as citando May Golan, Ministra da Igualdade Social e Empoderamento Feminino de Israel, quando disse: “Estou pessoalmente orgulhosa das ruínas de Gaza, e que todos os bebês [palestinos], mesmo daqui a 80 anos, contarão aos seus netos o que os judeus fizeram”. O Estado de ultradireita de Netanyahu é totalmente antissemita, trabalha incessantemente para macular a imagem dos judeus. “Não em meu nome”, respondem meus amigos de origem judaica.

Com aclamação dos participantes, o 42º Congresso do Andes-SN realizado em Fortaleza entre 26 de fevereiro e 1 de março de 2024 aprovou uma moção em defesa dos Palestinos. Caberia a nós nos juntarmos e fazer o mesmo em cada espaço acadêmico e fortalecer a luta pelo fim desse apartheid, desse genocídio que já matou mais de 30 mil palestinos.

Por fim, chegamos a mais um 8 de março, dia internacional da mulher, uma data de luta, mas se não incluímos a dor das mulheres palestinas em nosso discurso, em nossa frente de militância, acadêmica, é porque não entendemos ainda a urgência que é a luta pela vida dessas mulheres. É preciso dar escuta a todas as mulheres que estão na luta pela sobrevivência, seja na Palestina, nas periferias das cidades, nas universidades. Que sejamos um corpo só em nossa diversidade – em nossa humanidade.

Deixo aqui, para quem quiser se somar a Rede Universitária de Solidariedade ao Povo Palestino, o documento para assinatura.

Francirosy Campos Barbosa, professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP

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