Diplomas para os que resistiram
por Walnice Nogueira Galvão
A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo acaba de atribuir diplomas póstumos a todos os seus alunos que foram assassinados pela ditadura. E foram muitos, 15 no total, três deles meus alunos, dando a essa unidade de ensino o sinistro recorde dentre todas as do país.
Faz cerca de meio século – mas nem por isso empana-se o feito daqueles jovens cheios de desprendimento, que doaram suas vidas à luta pela liberdade.
A cerimônia contou com uma mesa composta pelas mais altas autoridades da Universidade, na figura de reitor e vice-reitora, além do diretor da unidade. Não faltaram as presidentes da UNE (União Nacional dos Estudantes), da UEE (União Estadual dos Estudantes) e do DCE-USP (Diretório Central dos Estudantes da USP).
Trazer os estudantes para a cerimônia foi uma ótima ideia. Eles vieram organizados e comentavam a cerimônia escandindo slogans rimados, dando vida a uma tão triste ocasião, trazendo para o evento a vibração de um ato público. A organização do evento foi impecável: investigou e achou familiares ou outras relações de todos os 15.
Vêm de longe os movimentos sociais que se encarregaram, com pertinácia e brio, de manter viva a chama da denúncia do crime cometido contra esses jovens. Em geral são os familiares que portam a tocha da justiça. Criaram-se, ao longo do tempo, comitês reivindicatórios que processaram o Estado e quem necessário fosse, perdendo ou ganhando, mas a cada passo avançando na luta. Faz meio século, são eventos do início da década de 70. Aos poucos, o Estado foi tendendo a reconhecer sua responsabilidade nos crimes – mas ainda é grande o número de “desaparecidos”, quando não acusados de suicídio ou de fuga com acidente.
A USP criou sua própria Comissão da Verdade para apurar os fatos, constituída por historiadores e juristas. O resultado foi a monumental edição de um Relatório em 10 volumes, disponível na internet, no qual cabe à FFLCH um volume inteiro, o de número 7. Por ali se vê como foi cruel a repressão que se abateu sobre a escola.
Entre os precursores figurou o empenho extraordinário da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, cujo presidente, o deputado Adriano Diogo, coordenou os trabalhos e deu-lhes visibilidade, ao realizar no auditório da Assembleia Legislativa as sessões que celebraram cada morto. A solenidade, que punha na mesa diretora dos trabalhos os familiares do morto, celebrava sua vida com dedicação. Asisti a duas delas, a de Norberto Nehring e a de Luiz Eduardo da Rocha Merlino, e posso atestar sua alta dignidade.
No caso da FFLCH, houve alguma hesitação, gerando controvérsias logo esclarecidas, quanto à inclusão do nome de minha amiga Heleny Telles Guariba, aluna de Filosofia. Heleny, após voltar de um estágio no Théâtre de la cité, de Roger Planchon, na França, estava trabalhando em Santo André, no testro da Prefeitura, encenando uma peça de Molière, Jorge Dandin. A montagem ganhou todos os prêmios paulistas daquele ano. Heleny ainda dava aulas e fazia oficinas no seminário de dramaturgia do Teatro de Arena, bem como na Aliança Francesa, disseminando os ensinamentos de teatro brechtiano que tinha aprendido na França. Hoje seu nome ilustra várias instituições, como o Auditório Heleny Guariba, da Prefeitura de Santo André, em reconhecimento de sua dedicação ao desenvolvimento do teatro local. Na Praça Roosevelt, no centro de São Paulo, fica o Studio Heleny Guariba e em Diadema o Centro Cultural leva seu nome.
Pois bem: seu nome foi incluído na lista dos alunos assassinados, até que se descobriu que Heleny já tinha se formado. Seu nome foi então retirado da lista, mas muito se discutiu a razão disso. Agora, ela entrará na lista não dos alunos mas dos ex-alunos assassinados, aqueles que já tinham se formado quando foram alcançados pelas garras da repressão. São vários afora Heleny, inclusive meus amigos e companheiros de geração Iara Iavelberg, Vlado Herzog e Norberto Nehring. Este último era da Química e por isso talvez entre em outra lista. Estou solicitando para todos, já que também tiveram suas carreiras interrompidas, o título de doutor honoris causa,
Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP
Leia também:
Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.