Observatorio de Geopolitica
O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.
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Em defesa da memória, por Felipe Bueno

O universo digital tem nos dado renovadas oportunidades de trabalhar e conservar a memória; o outro lado é a facilidade de deturpá-la

Em defesa da memória

por Felipe Bueno

Memória. Coletiva ou individual, quase sempre frágil e indefesa, às vezes nos falta, e frequentemente é vítima de ataques com os propósitos mais insidiosos.

O universo digital tem nos dado renovadas oportunidades de trabalhar e conservar a memória; o outro lado da moeda é a facilidade de deturpá-la para recriar versões não raro totalmente opostas de fatos que aconteceram – e até que não aconteceram – com a intenção de construir narrativas com verniz de verdade.

Ou de pós-verdade, para que este texto soe bem atualizado.

Em tempos assim é saudável recorrer ao papel, à fotografia analógica, ao arquivo físico, ao bom e velho livro também. Benefício garantido mesmo aos nativos digitais.

Passados nacionais são vítimas constantes de tentativas de violação da memória, e isso muito, muito antes da existência da internet. De tempos em tempos, candidatos a líderes, meros profetas do passado, aparecem para despertar as massas acerca de fictícios capítulos gloriosos da nação.

Da mesma forma que tentam buscar honra onde nunca houve, procuram apagar vergonhas pretéritas que ainda hoje fazem eco.

Nossa América do Sul de tantos ditadores e fantoches, usando ternos ou uniformes verde-oliva, não foge dessa realidade. Ditaduras, regimes de repressão à liberdade e às vozes de oposição tivemos aos montes, assim como esforços mais ou menos felizes de redemocratização e de julgamento dos responsáveis.

Para quem estiver em São Paulo pelos próximos meses, é dada a oportunidade de vislumbrar um pouco do que aconteceu no Brasil e na Argentina em recentes anos de chumbo. Estão no Memorial da Resistência duas exposições úteis para ensinar um pouco a quem não sabe e incômodas por despertar perguntas que provavelmente nunca serão respondidas.

De um lado, uma mostra sobre a construção de um monumento histórico brasileiro, o livro Brasil: Nunca Mais, obra de várias mãos, filha do silêncio, da inteligência, da dedicação e da indignação com o que estava acontecendo no país desde 1964.

Do outro lado, um olhar sobre o antigo centro de repressão da Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA), prédio em Buenos Aires onde a última e mais assassina linha dura da Argentina (1976-1983) perpetrou muitos de seus crimes.

Observar a luta subterrânea das pessoas responsáveis pelo livro brasileiro e as batalhas públicas da resistência argentina – simbolizada ainda hoje pelas Abuelas de Plaza de Mayo que continuam procurando seus filhos e netos desaparecidos – é receber uma dose essencial de vacina anti-negacionismo e pró-dignidade.

As duas exposições são pequenas, incômodas, e, em tempos de stories e reels, produzem baixo impacto visual. É preciso alertar que demandam esforço de quem visita: há pouco para ver e muito para ler, mais ainda para refletir; e uma das reflexões obrigatórias é sobre os diferentes caminhos que Argentina e Brasil tomaram após os respectivos processos de redemocratização: se nosso vizinho, especialmente no início, avançou objetivamente em busca de justiça, aqui a normalidade política se estabeleceu por meio de mais uma das inúmeras conciliações e pactos que só beneficiam alguns poucos Leopardos (permito-me aqui fazer referência a Michel Debrun e Tommaso di Lampedusa).

Sendo o presente consequência do passado, a falta de julgamentos e punições deixou até hoje, no Brasil, aquela sensação incômoda de que as Forças Armadas “devolveram” o país à sociedade civil, mas seu espírito moderador – que, seletivamente, se manifesta apenas nas casernas e nas manifestações reacionárias – permanece olhando a nação de cima para baixo. Uma pena. A redemocratização nominal pode colocar de lado os tiranos, mas é apenas um pequeno passo para uma vida civilizada.

Site do Memorial da Resistência: Página inicial – Memorial da Resistência (memorialdaresistenciasp.org.br)

Felipe Bueno é jornalista desde 1995 com experiência em rádio, TV, jornal, agência de notícias, digital e podcast. Tem graduação em Jornalismo e História, com especializações em Política Contemporânea, Ética na Administração Pública, Introdução ao Orçamento Público, LAI, Marketing Digital, Relações Internacionais e História da Arte.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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