
A perplexidade como responsabilidade frente o presente
por José Mário Neves
São inúmeros os sinais do acelerado avanço do processo de dissolução social em nosso país: aumento generalizado da violência social; violência policial, principalmente com o extermínio de jovens negros; encarceramento em massa; crescimento da segurança privada, dos grupos de extermínio e das milícias e a sua penetração no aparato estatal e em segmentos empresariais; crescimento da violência política; para citar os mais gritantes.
Em escala mundial, também são crescentes as evidências da crise da governabilidade global e da degradação das relações sociais em escala nacional, como demonstram a paralisia da ONU em um mundo conflagrado e em colapso climático; o ressurgimento com força da extrema direita em inúmeros países importantes; o aumento da pobreza, inclusive nos países centrais; o aumento disseminado da violência.
Tanto a percepção consciente, quanto a sensação inconsciente, de que estamos em uma sociedade colapsando são a origem do sofrimento e da perplexidade estampados na ansiedade disseminada – ansiedade cada vez mais medicalizada – e nas diversas manifestações sintomáticas de sofrimento e mal-estar visíveis nos consultórios, nas empresas, nas instituições educacionais, nas rodas de bar, em nossas casas.
A julgar correto o diagnóstico do acelerado processo de dissolução social, agravado exponencialmente pela crise ambiental, impõem-se uma série de consequências para os segmentos progressistas do Brasil e do mundo.
Em primeiro lugar, o reconhecimento de que somos tomados por esse estranhamento e angústia porque o nosso mundo está se tornando irreconhecível – já não reconhecemos mais o mundo que até há pouco pensávamos habitar. Ou seja, é imprescindível assumir que a magnitude da nossa perplexidade é proporcional à dimensão da nossa falta de compreensão quanto ao que está acontecendo no mundo. Isso não significa que devemos descartar todo o acúmulo de entendimento e de referenciais que até agora nos orientaram, mas que é necessário assumir – radicalmente – que esses referenciais demonstraram a sua insuficiência, o que nos obriga a buscar novas perspectivas de análise.
Em segundo, faz-se necessário converter a consciência da gravidade da crise atual e do crescente mal-estar em ponto de partida, para uma radical tomada de consciência dos limites histórico do nosso sistema social e da necessidade urgente da sua superação.
Em terceiro lugar, precisamos reconhecer que o crescimento da extrema direita em inúmeros países é uma evidência, mesmo que parcial, da sua maior compreensão da dinâmica histórica em curso no mundo. Ao compreender melhor os fluxos e linhas de força que hoje conformam a realidade social, a extrema direita foi mais eficaz na produção de suas políticas e por isso teve esse crescimento vertiginoso. Esse reconhecimento também deve nos levar a entender que essa maior sintonia das forças ultraconservadoras com a realidade possibilitou, inclusive – como paradoxal ironia histórica –, que estas forças se apropriassem do generalizado descontentamento popular com os limites da democracia e se apresentassem como uma alternativa política antissistema.
Chegamos, aqui, a uma questão central, cuja compreensão pode ajudar-nos a superar a cegueira situacional em que estivemos metidos e abrir para uma nova perspectiva de análise e de intervenção na conjuntura: o que as forças ultraconservadoras perceberam intuitivamente – e que lhe proporcionou maior eficácia política, como vimos – que o campo progressista ainda não compreendeu?
A extrema direita compreendeu que o acelerado processo de degradação social é uma evidência de que, no horizonte do capitalismo atual, as condições para uma sociedade coesionada pelo trabalho assalariado e integrada socialmente pelas regras democráticas e pelas políticas públicas estão irremediavelmente esgotadas. Por isso, esses segmentos das elites migraram de uma estratégia de gestão negociada das contradições sociais – que é a democracia – para uma estratégia totalitária de gestão violenta das contradições.
A partir desse diagnóstico, parte importante das elites econômicas, nos mais diferentes países, partiram para o projeto autoritário de ataque frontal à democracia. Podemos demonstrar essa opção política totalitária por meio dos seus exemplos próximos mais notórios: no Brasil, essa estratégia materializou-se no impeachment fraudulento da Dilma e no crescimento do Bolsonarismos e de suas diversas metástases; nos EUA, na colonização do Partido Republicano pelo Trumpismo e seu desprezo à democracia; na Argentina, na adesão à Milei e ao seu projeto claramente autoritário.
Precisamos levar muito a sério esse diagnóstico das forças ultraconservadoras, pois ele fundamentou uma estratégia política que tem sido vitoriosa em inúmeros países – como o demonstra o crescimento da extrema direita no mundo. No entanto, o diagnóstico de que o sistema capitalista chegou ao seu limite histórico e esgotou as suas possibilidades de cumprir um papel civilizatório – a ponto de não ser mais viável a sua continuidade nos marcos da sociedade do trabalho que conhecemos – não é novo. Essa análise tem sido desenvolvida, pelo menos desde a década de 90, por uma rica linha de análise do campo da esquerda, conhecida como Crítica do Valor, que Menegat (2019) caracteriza como “uma crítica da economia política da barbárie” e que tem como principal expoente Robert Kurz, autor de várias obras já publicadas no Brasil, entre as quais a mais conhecida é “O Colapso da Modernização” (1992).
Essa análise aponta que vivemos uma crise do sistema capitalista de dimensões inauditas, que coloca em risco tanto a sobrevivência da vida no planeta – em decorrência do problema ambiental, que, apesar da gravidade, não iremos abordar neste artigo –, quanto a dissolução da forma de sociabilidade que conhecemos.
Sabemos que o capitalismo já passou por várias crises importantes e que diversos setores progressistas e de esquerda vaticinaram a crise terminal do capitalismo inúmeras vezes. No entanto, cabe ressaltar que a crise atual está constituída por elementos que têm uma qualidade e uma dimensão dramaticamente nova, cuja natureza evidencia que de fato já entramos em um novo período histórico. Um período histórico que se caracteriza tanto por uma inaudita aceleração da barbárie, quanto pelo colapso das tradicionais formas de regulação social.
Como primeira questão a observar, relativamente a atual crise mundial, compete assinalar que esta não pode ser solucionada por uma guerra – como vimos serem solucionadas as grandes crises anteriores: a guerra esgotava os estoques de mercadorias acumulados e destruía o excedente de forças produtivas (o que também significava exterminar dezenas de milhões de pessoas), possibilitando a abertura de um novo período de acumulação e desenvolvimento.
Esse caminho “clássico” para superação da crise não é mais viável. Por um lado, porque uma guerra em larga escala, com o arsenal hoje disponível, pode significar o extermínio da humanidade ou, no mínimo, uma absurda regressão das formas de existência dos grupos humanos que porventura viessem a sobreviver a tal hecatombe. Além disso, também é evidente que uma guerra em pequena escala, como as que ordinariamente temos assistido espalhadas pelo mundo, não traria nenhum alívio significativo, dada a dimensão da atual crise. Por outro, esse caminho também não é viável porque, muito mais do que uma crise de superprodução, esta é uma crise de valorização do capital e de dissolução do mundo do trabalho.
O trabalho está cada vez mais sendo expulso da produção, em decorrência da competição tecnológica entre empresas, que buscam aumento de produtividade e redução de custos. Os estudos indicam que a IA, a indústria 4.0 e a automação dos serviços vão acabar com grande parte dos postos de trabalho nas próximas duas décadas (Evangelista, 2018). São quatro as graves e imediatas consequências desse processo.
A primeira, é que o capital não consegue mais se valorizar no campo da economia real. Mesmo com a superexploração (pela precarização do trabalho nas suas diversas formas), não existe mais a incorporação de suficiente trabalho vivo para extrair a quantidade de mais-valia necessária para a valorização do capital. Assim, temos imensas plantas industriais com montantes cada vez maiores de capital imobilizado e com menos trabalhadores (desequilíbrio na composição orgânica do capital), o que reduz drasticamente a possibilidade de criação de valor no âmbito da produção e, consequentemente, de valorização real do capital. Como assevera Menegat (2012): “esse enxugamento do trabalho afetou irreversivelmente a acumulação de valor do capital total”.
A segunda é que, em decorrência dessa incapacidade de valorização na produção, desde meados da década de 70, o capital tem se direcionado massivamente para a especulação financeira. Isso tem levado a “explosão” das cada vez mais frequentes “bolhas especulativas”, pois não existe suficiente criação de riqueza na economia real, para lastrear a imensa massa de capital fictício que se valoriza artificialmente no sistema financeiro. No entanto, nunca é demais ressaltar que o enorme crescimento da especulação financeira não é a causa da crise e sim uma das suas consequências.
A terceira, é que teremos, num futuro muito próximo, o incremento de centenas de milhões de pessoas sem possibilidade de inserção no mundo do trabalho e, portanto, sem condições para sustentar as suas existências – são os “inúteis para o mundo”, de que fala Castel (1998). Os campos de refugiados espalhados pelo mundo, as marchas de miseráveis (como a que, há poucos anos, partiu de Honduras em direção aos EUA) e a transformação do Mediterrâneo num imenso cemitério de náufragos desesperados é apenas uma pequena amostra trágica do que se anuncia.
A quarta, é que o gigantesco aumento do capital fictício nos circuitos especulativos tornou o sistema financeiro internacional cada vez mais dependente dos recursos estatais (fundos públicos) – sem a espoliação dos recursos públicos, imediatamente o sistema financeiro entraria em colapso.
Essa dependência que o sistema financeiro tem dos recursos públicos, associada ao fim da sociedade do trabalho – que tornou desnecessária a manutenção de um exército de trabalhadores saudáveis e educados –, está na origem da redução dos direitos sociais e dos cortes nas políticas públicas, pela imposição dos programas de austeridade fiscal que tem se disseminado em todo o mundo (o Teto de Gastos e o Novo Arcabouço Fiscal são os exemplos brasileiros desses programas). Segundo Menegat, as políticas de corte dos gastos sociais se impuseram “devido à necessidade incontornável que os programas de financeirização neoliberal têm em fazer do Estado uma base ampliada da reprodução fictícia do capital” (2019, p. 160).
Este rápido panorama evidencia o quão correto é o diagnóstico da extrema direita de que o nosso sistema social – estruturado sob o imperativo da acumulação de capital, através da produção de mercadorias – não pode mais ser gerido na base da negociação democrática e da integração pelo trabalho. Primeiro, porque não existe mais trabalho em escala suficiente para integrar socialmente a massa de trabalhadores que não tem mais lugar na produção. Segundo, porque a espoliação dos fundos públicos pelos programas de austeridade fiscal – que objetivam manter o tênue equilíbrio do sistema financeiro especulativo –, não permite que o Estado siga viabilizando as políticas públicas que possibilitariam uma mínima coesão social e contensão da barbárie. Terceiro, porque, sem trabalho, não é possível a manutenção de uma sociedade de consumo de massas e, consequentemente, também não é possível viabilizar uma democracia de massas.
Em síntese: a implementação da agenda política que unificou grande parte da “elite brasileira” desde o impeachment, e que combina o aumento dramático da exploração e da precarização do trabalho com o corte radical dos direitos e das políticas públicas, é incompatível com o processo democrático – nenhum povo manteria a estabilidade de um regime com esse programa nos marcos da democracia. Por isso, precisamos entender que, do ponto de vista das “elites capitalistas”, o Estado de Exceção e a gestão violenta das contradições sociais não se coloca como uma opção política, mas como uma “necessidade histórica”. O projeto totalitário encarnado pela extrema direita é uma estratégia para tentar – através da imposição de um brutal apartheid – viabilizar uma sobrevida para o nosso sistema social, que chegou ao seu ponto de colapso.
É desse ponto de vista extremo – de um sistema em processo de decomposição e da perspectiva de uma “elite” sem nenhum compromisso com a nação – que a violência no Brasil não pode ser considerada uma “falha” ou uma “disfunção”, pois ela “opera” como uma “política racional”: uma política de extermínio dos “inúteis para o mundo”– como atestam as 46.328 mortes violentas intencionais registradas em 2023, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública / Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2024). Uma política de extermínio cuja “eficiência” é demonstrada pela sua “macabra especialização”, ao incidir seletivamente sobre segmentos específicos de jovens, negros e mulheres. Podemos sintetizar citando a precisa observação de Menegat (2019): “Como essa unidade [da sociedade] foi implodida pela crise, seu lugar vai sendo ocupado por relações sociais sustentadas no uso direto da violência, que procura ainda manter conectado o que ainda funciona da reprodução social da velha ordem agônica”.
Passamos, definitivamente, para uma nova fase histórica de profundo caráter regressivo, na qual a gestão dos conflitos e contradições da sociedade brasileira deixa de ser operada no âmbito da democracia – pelos mecanismos de negociação social e pelas políticas públicas do passado (mesmo com os grandes limites que conhecemos) – e entramos numa fase de gestão violenta da barbárie no âmbito do Estado de Exceção!
Referências
Castel, R. (1998). As Metamorfoses da Questão Social: uma crônica do trabalho. Petrópolis: Vozes.
Evangelista, A. P. Seremos Líderes ou Escravos da Indústria 4.0? Revista POLI: saúde, educação e trabalho. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. Rio de Janeiro, Nº 58, 2018.
Kurz, Robert. O Colapso da Modernização. São Paulo, Editora Paz e Terra, 1992.
Kurz, Robert. Poder mundial e dinheiro mundial: crônicas do capitalismo em declínio. Rio de Janeiro. Consequência, 2015.
Menegat, Marildo. Estudo Sobre Ruínas. Rio de Janeiro. Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2012.
Menegat, M. A Crítica do Capitalismo em Tempos de Catástrofe: o giro dos ponteiros do relógio no pulso de um morto e outros ensaios. Rio de Janeiro, Consequência, 2019.
Anuário Brasileiro de Segurança Pública / Fórum Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo, FBSP, 2024.
José Mário Neves – Psicólogo. Doutor em Psicologia Social. Autor dos livros: A Face Oculta da Organização: a microfísica do poder na gestão do trabalho (2005); Trabalho e Gestão na Perspectiva da Atividade: crítica, clínica e cartografia (2018).
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.