Um acordo é sempre melhor que uma demanda? Problematizando o novo pacto sobre a tragédia de Mariana
por Klever Paulo Leal Filpo e Marcelo Pereira de Almeida
O governo federal assinou, há pouco mais de um mês, acordo de repactuação da reparação da bacia do Rio do Doce, devido ao rompimento da barragem de Fundão, no município de Mariana (MG), ocorrido em novembro de 2015. De conhecimento público e notório, os rejeitos causaram morte e destruição por onde passaram, desde o estado de Minas Gerais até o Espírito Santo. O evento é considerado a maior catástrofe ambiental do Brasil e o maior rompimento de barragem de mineração do mundo, até o momento.
O empreendimento era de responsabilidade da mineradora Samarco, de propriedade da Vale e da BHP Billiton. À época, foi firmado um primeiro acordo que recebeu muitas críticas por não abranger toda a reparação devida às vítimas e ao meio ambiente. A administração dos recursos disponibilizados, feita pela Fundação Renova, também foi acusada de ausência de transparência. Nesse contexto, houve pressão por soluções e estas apareceram, quase 10 anos depois, sob a forma de um novo acordo.
O caso e a solução são semelhantes àqueles já conhecidos por ocasião do acordo judicial para reparação integral relativa ao rompimento de barragens, também da empresa Vale, no Córrego do Feijão, em Brumadinho, Minas Gerais, ocorrido no ano de 2019. Em 2021, o estado de Minas Gerais divulgou a celebração de um pacto para reparar os danos coletivos e difusos decorrentes do acidente que tirou a vida de 272 pessoas e gerou uma série de impactos sociais, ambientais e econômicos na bacia do Rio Paraopeba e em todo o estado.
Na época o Governo de Minas divulgou que ele, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG) assinaram com a Vale S.A. um acordo de reparação, sob mediação do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). No dizer da administração estadual, “o documento garantiu que a empresa fosse imediatamente responsabilizada pelos danos causados às regiões atingidas e à sociedade mineira”.
De forma similar, voltando ao caso de Mariana, o que vem agora sendo chamado de “Acordo Definitivo”, nas palavras de seu presidente, é a promessa de uma “resolução mutuamente benéfica para todas as partes em termos justos e eficazes”, ao mesmo tempo que criou certeza e segurança jurídica. É o resultado de um processo de mediação de alto nível conduzido pelo Tribunal Regional Federal da 6ª Região, com diálogo aberto e transparência”.
Interessa pensar, aqui, nas milhares de pessoas naturais e pequenos empreendedores, formais e informais, que perderam tudo em consequência direta ou indireta da tragédia. Eles serão os destinatários de parte das indenizações ajustadas. São a chamada “raia miúda”, as pessoas cuja voz não se faz ouvir tão facilmente nos espaços de tomada de decisão. No caso dos processos judiciais, eles são os assistidos pela Defensoria Pública – pessoas naturais que, nos termos da lei, não têm condições de pagar advogados e as despesas de um processo sem prejuízos para o seu sustento. Ou, pior ainda, pertencem àquele grupo de pessoas que sequer tem conhecimento de que podem recorrer ao Poder Judiciário para ver reparada uma injustiça ou um mal sofrido.
De acordo com a notícia divulgada pela Vale, o “Acordo Definitivo” foi celebrado entre empresas, pessoas jurídicas de direito público e instituições destinadas a desempenhar funções essenciais à Justiça. De um lado, os representantes da Vale, da Samarco, da Fundação Renova e do BNDES. De outro, os representantes de dez Ministérios de Governo, de várias agências e institutos nacionais, dos estados da federação envolvidos (Minas Gerais e Espírito Santo) e seus respectivos Ministérios Públicos e Defensorias Públicas, além do Ministério Público Federal e outras entidades de direito público.
Não se vislumbra, ao menos na notícia veiculada pela Vale, que o acordo tenha sido subscrito por entidades da sociedade civil organizada, associações de vítimas da tragédia, presidentes de associações de moradores das comunidades afetadas, ou coisa que o valha. O instrumento de acordo não está disponível de forma integral para consulta no site da empresa.
O que isso significa? Precisamos refletir. Se de um lado o acordo é a possibilidade de essas vítimas serem indenizadas de forma rápida e seguirem adiante com as suas vidas, por outro seria importante conhecer e comparar os valores das indenizações que serão pagas versus as quantias que poderiam ser efetivamente recebidas por meio de ações judiciais, de índole individual ou coletiva, pleiteando reparação integral a título de danos emergentes (aqueles constatáveis após a tragédia) e lucros cessantes (aquilo que as vítimas deixarão de receber no prosseguimento de suas vidas ou atividades).
O Jornal O GLOBO divulgou em 26 de outubro deste ano que, do acordo, “32 bilhões irão para as indenizações individuais, no valor médio de R$ 35 mil por pessoa”. É bastante improvável no Brasil de 2024 que alguém consiga dar os primeiros passos para reconstruir uma vida perdida por essa quantia.
Nas pesquisas que temos desenvolvido em Programas de Pós-Graduação em Direito no Estado do Rio de Janeiro e no Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT/InEAC), coordenado na UFF por Roberto Kant de Lima, buscamos colocar sob discussão determinadas políticas públicas judiciárias que, a despeito de todas as boas intenções, necessitam, podem e devem ser problematizadas. Afinal, a assim chamada “jurisdição”, isto é, o poder de aplicar as leis, de dizer o direito nos casos concretos, se materializa por meio de um serviço público, prestado por funcionários públicos e sujeito a uma crítica e controle social permanentes, especialmente por parte da academia.
Uma das perguntas que recorrentemente vêm norteando nossas pesquisas é justamente: até que ponto um acordo é melhor que uma demanda? Essa pergunta pode ser desdobrada em muitas outras, por exemplo: a quem esses acordos realmente interessam?
Desde que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou a Política Judiciária Nacional para Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesse (Resolução 125/2010) diversos atores do meio jurídico, incluindo os Tribunais e outras funções essenciais à Justiça, como o Ministério Público, repetem à exaustão a conhecida expressão de que o acordo é sempre a melhor solução para uma disputa. Partem do pressuposto de que os litigantes, em um processo judicial, por serem pessoas capazes e senhoras dos seus destinos, podem negociar sobre direitos disponíveis, isto é, em síntese, ligados a aspectos patrimoniais.
Parece correta a assertiva. Mas ela pode ser colocada em discussão quando os litigantes não estão em pé de igualdade, isto é, quando as partes posicionadas nos dois lados da mesa de negociação não possuem o mesmo conhecimento da matéria em discussão, suporte financeiro e técnico etc. É o que acontece, por exemplo, nas disputas que envolvem de um lado os consumidores hipossuficientes e, de outro lado, poderosas empresas fornecedoras de produtos e serviços. E é o que ocorre também, em todo o mundo, em casos envolvendo as entidades causadoras do dano ambiental e as suas vítimas.
No dizer da antropóloga norte-americana Laura Nader, esse modelo que nivela os desiguais é capaz de criar uma enganosa igualdade entre as partes. Na prática, a negociação e o acordo dela resultantes podem ter um efeito perverso ao desproteger aqueles que já estão excluídos do sistema de Justiça. Talvez essas disparidades pudessem ser resolvidas na homologação dos acordos, momento em que o juiz da causa perceberia as disparidades existentes e as neutralizaria, ou negaria homologação aos acordos desequilibrados ou cláusulas leoninas.
Esta que seria uma prática comum, por exemplo, na Justiça do Trabalho, em que os juízes procuram zelar com mais ênfase pelos interesses dos trabalhadores, em detrimento dos empregadores, é, contudo, uma possibilidade cada vez mais remota no cenário jurídico nacional, em que foi introduzido um modelo de produtivismo judicial. Atualmente o próprio Judiciário estimula e promove os acordos os quais, ao fim e ao cabo, desempenham um importante papel nas Cortes de Justiça: o de auxiliar os juízes a debelarem as pilhas infindáveis de processos acumulados em suas Varas. Com efeito, a matéria publicada por O GLOBO, citada anteriormente, informa que “a expectativa é que o acordo [de Mariana] encerre mais de 180 mil ações judiciais no Brasil.”
Mas o olhar atento para esse acordo mostra bem mais do que isso. Os tentáculos do neoliberalismo têm cooptado modelos e espaços de consenso para lucrar com o discurso do acesso rápido às reparações dos danos gerados por suas atividades. Chama a atenção o fato de que as instituições de controle, que deveriam zelar pelo efetivo acesso à justiça – o Ministério Público, por exemplo – compraram essa ideia, contribuindo intensamente com políticas legislativas e judiciárias. Vide a chamada banalização do dano moral e o esvaziamento da cláusula de inafastabilidade do controle jurisdicional.
Em recente Jornada Jurídica de Prevenção e Gerenciamento de Crises Ambientais realizada no Conselho da Justiça Federal, em Brasília, em novembro deste ano, envolvendo juízes federais, advogados, especialistas e acadêmicos, foi definido por enunciado que é “cabível e recomendável” suspender os processos individuais quando houver um processo coletivo em trâmite versando sobre as consequências do mesmo desastre sócio ambiental.
Tal enunciado, ao servir de orientação para os Juízes Federais em suas decisões, potencializa os chamados processos coletivos estruturais, em que a atuação do Judiciário se dá no sentido de restabelecer uma ordem perdida, e reduz a importância das demandas individuais. Sua aprovação se justifica por uma questão pragmática: eventos como estes acima mencionados podem veicular interesses de centenas ou milhares de pessoas naturais e jurídicas e é inviável para o Poder Judiciário dar conta de tantos processos de uma só vez. É mais conveniente que todas as demandas sejam resolvidas em um processo único, sob a batuta de um mesmo juiz ou grupo de juízes, com toda a criatividade e empoderamento judicial que tem sido uma marca característica dos processos dessa natureza – para o bem e para o mal.
Outra característica dos processos estruturais é a busca das soluções consensuais. Logo, acordos celebrados nessas demandas coletivas poderão abranger as pretensões veiculadas nas demandas individuais. Eles envolverão os interesses de muitas pessoas e farão com que as ações individuais correlatas percam o seu sentido. É polêmico porque, nesses casos, a participação das vítimas nos processos se dá, em regra, de forma indireta, sendo as mesmas substituídas pelo Ministério Público, por exemplo.
No cenário atual, portanto, é muito provável que danos coletivos de grandes dimensões se resolvam em acordo, sem a participação direta das vítimas. É fundamental que as negociações sejam publicizadas, assegurando meios para a adequada participação popular e a devida intervenção dos órgãos de controle, garantindo que o acordo será benéfico para todos os interessados. Sem isso se corre o risco de revitimizar quem já perdeu tudo, entregar-lhe muito menos do que o justo e ainda premiar os malfeitores. Tudo isso debaixo dos olhos e com o incentivo do Poder Judiciário.
Klever Paulo Leal Filpo. Doutor em Direito. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Petrópolis e do Mestrado em Direito, Ambiente e Desenvolvimento da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Pesquisador do INCT/InEAC/UFF.
Marcelo Pereira de Almeida. Advogado. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFF. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito, Instituições e Negócios da Universidade Federal Fluminense e do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Petrópolis.
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