
Por que precisamos do 20 de novembro?
Não sou descendente de escravos.
Sou descendente de pessoas que foram escravizadas.
(Makota Valdinha)
por Ana Paula da Silva e Érika Frazão
- “Tudo é mais difícil para um negro. Você tem que provar 100 vezes que você é o melhor. É cansativo, duro, doloroso…”
No último sábado (16), alunos da USP denunciaram estudantes da PUC-SP por proferir ofensas racistas durante os jogos universitários que ocorreram na cidade de Americana no interior paulista. Segundo reportagem do G1, durante um jogo de handball entre as equipes da USP e da PUC do curso de Direito, estudantes da universidade particular “gritaram frases de cunho pejorativo contra estudantes cotistas da USP. Ao mesmo tempo, fizeram um gesto com as mãos referente a dinheiro” (G1, 17/11/2024).
Após as divulgações dos vídeos gravados pelos alunos da USP, os organizadores dos jogos universitários e a Reitoria da PUC-SP lançaram notas de repúdio e prometeram sanções aos estudantes “racistas”. Uma das palavras que usaram para ofender era “cotista”, em conjunto com sinal de dinheiro, dando a entender que os alunos da USP só conseguiram ingressar na universidade por causa das políticas de ações afirmativas que começaram a ser implementadas a partir de 2012 nas universidades públicas de todo o país. Ironicamente, a USP foi uma das últimas universidades a implementar tais políticas.
Dentro desse contexto, convidamos leitoras e leitores a refletirem sobre as razões que situações como a descrita neste artigo ainda acontecem no Brasil de 2024. O objetivo aqui é o de pensarmos, nas razões socioeconômicas, culturais e históricas que possibilitam que casos como estes se repitam pelo Brasil afora, apesar do amplo debate na sociedade brasileira sobre as variadas formas de racismo – atitude, inclusive, criminalizada no Código Penal.
Atualmente acompanhamos um maior número de pessoas negras em muitos espaços: universidades (em função das políticas de ações afirmativas), nas propagandas de TV, novelas, minisséries etc. Mesmo assim, não são raros os casos de racismo que chegam às mídias.
- “Ninguém ouviu, um soluçar de dor, no canto do Brasil”: as “veias abertas” do período escravocrata brasileiro.
Para entendermos o caso descrito acima, é necessário pensarmos como o período escravocrata atravessa nossa história e a própria construção da nossa identidade nacional. É fundamental sempre lembrarmos que o Brasil foi um dos maiores países comercializador de pessoas escravizadas do mundo e que por esse motivo, sofremos os impactos desses movimentos até hoje. Muitas pesquisadoras/es têm se debruçado sobre essa situação e não é propósito deste pequeno artigo revisar essa literatura. Basta ressaltar que, apesar da Abolição da Escravidão ocorrida em 1889, as consequências desse período histórico no Brasil ainda são sentidas, principalmente pela população negra e pobre brasileira. Atualmente, esse grupo ainda se encontra nos piores lugares dos índices de Desenvolvimento Humano (IDH) em várias regiões do país.
É bom ressaltar que as profundas desigualdades refletidas no último censo do IBGE (Censo Demográfico, 2022) não são consequências apenas do período escravocrata. Não vivemos somente os efeitos históricos da escravidão, como também podemos afirmar que também existem aspectos que perduram das decisões políticas pós-abolição que produziu uma exclusão de boa parte da população negra. É bom lembrar aqui que o Brasil até sonhou em fazer desaparecer suas populações negras através das políticas eugenistas como analisaram Seyferth (1995) e Castro (2017).
Dentro deste contexto, a população negra foi configurada como um coletivo que deveria ser excluído da vida política, econômica e social em nome de um projeto de nação “higienizado” e mais próximo à civilização do “mundo branca” da Europa. Na prática, as pessoas negras passaram a ocupar os empregos com menos remuneração, quando havia pagamento. Tiveram menos acesso à educação de qualidade, moradias dignas, saneamento básico, e etc. Atualmente, é esse grupo que ainda tem menos anos de estudo, ocupa os empregos informais mais mal pagos, e quando consegue emprego, cumpre o regime de trabalho na escala 6X1.
Nesse sentido, refletir sobre o passado nos faz pensar sobre as desigualdades que persistem e que colocam negras/os como pessoas que não são dignas de ocupar boas posições na sociedade brasileira. Por esta razão, nos olhos de alguns, ser um aluno negro da USP só pode ser fruto de políticas de ações afirmativas, que segundo os detratores das cotas, foram responsáveis por “encher as universidades de pretos e pobres”. Por isto, ser cotista se transforma em um instrumento de ofensa, pois demonstra que esses lugares, como as universidades renomadas, ainda pertencem à “elite branca”, e que não são espaços para pessoas que historicamente foram excluídas da sociedade.
Vale ressaltar que existem inúmeras pesquisas (dados do MEC, do censo da Educação Superior, 2023) que têm demonstrado que alunas/os/es que ingressam por meio das cotas nas universidades tem o mesmo e/ou melhor desempenho que estudantes que ingressaram pela ampla concorrência. Ou seja, não existe um abismo educacional entre cotistas e não- cotistas, como muitos dos que são contrários às ações afirmativas nas universidades querem apontar.
Apesar disso, episódios de racismo e discriminação recorrem nos noticiários. A questão aqui não é que o racismo aumentou em relação ao passado: estamos mais atentas/os/es a esses episódios graças aos movimentos negros que tem pautado o debate sobre as questões raciais há algumas décadas. Hoje, tais atitudes racistas não são mais toleradas e, consequentemente, são mais denunciadas. Mas a pergunta que persiste é: por que os casos de racismo ainda acontecem?
Não podemos responder a essa pergunta se não olharmos para o pesado fardo das políticas escravocratas e pós- abolição que diversos governos brasileiros adotaram e que provocaram a exclusão da população negra da vida socioeconômica brasileira, com raros episódios de formulações de políticas públicas para sanar tais exclusões. A persistência das desigualdades, onde a maioria da população negra está na base da pirâmide, reflete nas atitudes racistas e discriminatórias que as pessoas negras sofrem.
Num mundo em que o pensamento ideológico alinhado à extrema-direita (que, em linhas gerais, preza pelo negacionismo da história, da ciência e do conhecimento em geral, e aposta no revisionismo histórico) parece ameaçar as políticas que tentam diminuir as desigualdades, não devemos nos surpreender quando situações racistas proliferam nos noticiários. No entanto, com um olhar mais otimista, é importante observar as lutas dos movimentos negros e sociais, ao longo das décadas, no combate a essas ações racistas e discriminatórias.
3- Por uma autêntica Democracia Racial
Em 1978, o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR), que em 1979 passaria a se chamar Movimento Negro Unificado (MNU) divulgou, em ato de protesto contra o assassinato de jovens negros no Teatro Municipal de São Paulo, uma “Carta Aberta à População” que trazia em seu final a expressão “Por uma autêntica Democracia Racial”. Esta frase expressava não só a luta dos movimentos negros brasileiros contra o racismo, mas também a denúncia do mito da democracia racial — mito tão difundido no inconsciente coletivo brasileiro que vende ao mundo a ideia de que o Brasil havia conseguido acabar com o racismo por ser um país interracial. Essa fábula ocultava a realidade vivida pela população negra brasileira. Desde ’78 (como afirma o estudioso do Movimento Negro Brasileiro Amílcar Pereira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro), diversos documentos dos movimentos negros brasileiros trazem esta expressão.
A Carta de Princípios do MNU, publicada em 1979, traz diversas reivindicações que ainda não tem sido alcançada, como a “reavaliação do negro na história do Brasil”. Apesar da promulgação da Lei 10.639 em 2003, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afrobrasileira e africana na Educação Básica, sua implementação ainda não se dá de forma efetiva nos currículos escolares brasileiros. A história do povo negro ainda se resume muitas vezes ao período da escravização e a objetos de estudo ao invés de sujeitos ativos que contribuem significativamente para a construção do país. Neste sentido, a defesa feita desde a década de 1970 pelos movimentos negros para que o 20 de novembro (data da morte de Zumbi dos Palmares) fosse a data comemorativa da luta antirracista (ao invés do 13 de maio), traz o protagonismo da população negra em relação ao processo da abolição, demolindo o mito que essa era apenas o receptor passivo da benevolência de uma princesa branca. É esse protagonismo, em todas as esferas de poder e produção de conhecimento e cultura, que ainda defendemos e queremos.
Em 2011, a presidenta Dilma Rousseff oficializou a data comemorativa como Dia da Consciência Negra, mas ela tornou-se feriado apenas em 6 dos 27 estados brasileiros. Apenas neste ano, 2024, é que a data passou a ser feriado nacional. Neste dia de comemoração e luta, muitos ainda insistem em negar a importância da data ao reivindicarem uma data da “consciência humana” e reforçando o mito da democracia racial.
Continuarmos a apostar na luta contra o mito da democracia racial, pois ainda termos em nosso país a ideia de que o racismo não existe, além da falácia de que “somos todos iguais”, quando as estatísticas e vivências da população negra nos mostra que a igualdade social e racial ainda é distante.
Os dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que dos 298.602 adolescentes e jovens entre 15 e 29 anos tiveram suas vidas prematuramente interrompidas pela violência entre 2012 e 2021: 229.133 eram jovens negros, o que corresponde a 79% do total de jovens assassinados no Brasil. Durante a pandemia da COVID 19, estudos como o da pesquisadora Melania Amorim, apontaram que o Brasil apresentou um alto índice de mortalidade materna, registrando 8 a cada 10 mortes de gestantes ou puérperas do mundo. No primeiro ano da pandemia (2020), o número de mulheres negras chegava a 63,8% do total de mortes. Esses são apenas alguns exemplos recentes da continuidade da necropolítica empregada contra a população negra no Brasil. Comprovam que a democracia racial ainda é uma realidade distante.
Diante desse quadro, é evidente que as atitudes racistas das/os estudantes da PUC-SP encontram um lastro sócio-histórico que legitima as agressões que os alunos da USP sofreram. No entanto, a luta dos movimentos negros pela conscientização e combate ao racismo é fundamental para que se reverta essas ações discriminatórias. O 20 de novembro nos coloca para pensar sobre o que somos e que sociedade desejamos; nos desafia a construir um futuro em que, de fato, tenhamos uma sociedade democrática e justa para a população negra do Brasil.
Ana Paula da Silva é professora Adjunta Universidade Federal Fluminense (UFF) do PPGJS/PCH, Coordenadora CGME (PROAES/UFF), Coordenadora Comissão das Bancas de Heteroidentificação (UFF)
Érika Frazão é professora Adjunta Universidade Federal Fluminense (UFF), da Faculdade de Educação, Coordenadora Equidade e Inclusão (PROAES/UFF)
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