INCT - InEAC Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos
Há mais de 15 anos, o Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC-UFF) vem trabalhando com pesquisas sobre a diversidade das formas institucionais de administração de conflitos nos diferentes âmbitos dos sistemas de Segurança Pública e de Justiça Criminal. Os trabalhos são produzidos através de uma rede nacional e internacional de programas de Pós-Graduação, grupos de pesquisa e de pesquisadores espalhados por sete estados do Brasil e nove países. Esta coluna se relaciona com os esforços dessa rede em refletir sobre temas da pauta política e social brasileira, visando a contribuir com o debate público e difundir ciência para fora dos muros da universidade.
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A política da falta: da Segurança à Ciência e Tecnologia, por Frederico Policarpo, Lenin Pires e Pedro Geraldo

A esgrima discursiva da “política da falta” envolve proclamar ausências ou insuficiências, racionalizar falhas e lacunas e produzir culpados

Ministério do Esporte

A política da falta: da Segurança à Ciência e Tecnologia

por Frederico Policarpo, Lenin Pires e Pedro Geraldo

Na manhã da última quinta-feira (24), um tiroteio entre policiais militares e traficantes de drogas ilícitas, em localidade próxima da Avenida Brasil, no Rio de Janeiro, vitimou três pessoas. Duas delas foram baleadas na cabeça, sendo mortas a caminho do trabalho. Os principais veículos de imprensa veiculavam, em nível nacional, as imagens impactantes de mais um episódio dentro da crise na Segurança Pública.

Enquanto isso, o governador do Estado do Rio de Janeiro, sr. Claudio Castro, parecia ter preocupações mais urgentes. Em articulação com seus correligionários, decidiu trocar a presidência da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). O objetivo foi acomodar os interesses de um de seus acólitos, derrotado nas urnas pela vontade popular.

A sincronia entre estes acontecimentos, aparentemente sem paralelo, é reveladora de um traço da política contemporânea. Vamos chamá-la de “política da falta”, adotada, sobretudo, no âmbito da chamada Segurança Pública. No entanto, nos últimos anos tal política parece igualmente avançar sobre outras áreas, como a de Ciência, Tecnologia e Inovação.

No presente artigo queremos desenvolver algumas reflexões sobre este movimento, onde a esgrima discursiva da “política da falta” envolve proclamar ausências ou insuficiências, racionalizar falhas e lacunas para, posteriormente, produzir culpados. A meta, porém, parece ser avançar sobre as instituições e recursos públicos, fazendo com que a inexistência de propostas e projetos seja, em si mesmo, um plano de entrega e subserviência a interesses distintos da sociedade.

Rio sem inteligência

O tiroteio no Rio ocorreu, segundo informado pela PMERJ, por uma reação de traficantes a mais uma operação. A “política da falta” foi explicitada pela porta-voz da corporação policial, quando disse na imprensa: “A gente não tinha dados de inteligência para prever essa reação”. Donde se depreende que na ausência de informações e dados, não há  necessidade de inteligência, só combate e enfrentamento. Diante dos efeitos de sempre – morte de transeuntes, balas perdidas, ferimentos de policiais, entre outras iniquidades –  ninguém no governo se responsabilizou.

Na sequência, para camuflar a falta de responsabilidade é necessário produzir culpados. No caso em destaque foram os “traficantes”, segundo o governador. Estes, diante da falta de inteligência do governo, teriam praticado um ato de “terrorismo”. A culpa de atirar nas pessoas teria sido só deles. O governo que optou, através da Secretaria de Polícia Militar, por uma operação policial sem informações e dados adequados, não tem responsabilidade alguma. Eis, portanto, uma outra dimensão da política aqui analisada. 

Ora, não é de hoje que o “traficante” é o “bode expiatório”, no Rio. Ele é o culpado pela violência nas ruas e nos presídios, pela letalidade da polícia, pelo fechamento das escolas e do comércio, pela interrupção da mobilidade urbana, pelo prejuízo dos empresários ou mesmo pelo surgimento das “milícias”, que foram supostamente criadas inicialmente para combatê-lo. O governador atualmente afirma que o “traficante” está ameaçando a realização do G20 na cidade. Enquanto todos culpam o “traficante”, poucos buscam os responsáveis institucionais por governarem sem inteligência na segurança, na educação, na saúde, na geração de empregos, entre outras áreas.

A “política da falta” se caracteriza, assim, na ênfase discursiva na falta de recursos, de apoio de outros órgãos governamentais, da sociedade, e por aí vai. O resultado é a precarização sistemática de políticas públicas na área, fazendo com que se confunda discricionariedade com autoritarismo. Nada disso é novidade para os pesquisadores que se dedicam ao tema da Segurança Pública. Contudo, parece haver um avanço cada vez maior da “política da falta” para a área de Ciência e Tecnologia em diferentes situações e contextos.

A difusão da “falta” e seus efeitos

Vimos isso ocorrer no plano federal, por exemplo, quando o presidente anterior, em plena pandemia, fez diversas mudanças no Ministério da Saúde nomeando militares sem formação compatível para os cargos. “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”, afirmou à época o general ministro. Assumia, assim, publicamente, seu total descompromisso com exigência de dados e de inteligência para avaliar a situação sanitária. Como era só uma “gripezinha”, não havia necessidade de mais informações. Bastava deixar todos se contaminarem com o vírus. Entre mortos e feridos, viria a imunização e o problema estaria resolvido.

Diante da ineficiência de tão vil estratégia, o “bode expiatório” daquela vez foi o “pesquisador” e sua insistência na formulação de ações baseadas nos dados e no conhecimento científico. Para os ensaístas da política da falta, o pesquisador foi culpado pelas mortes nas ruas e presídios, assim como pela letalidade do vírus. Para eles tudo poderia ser evitado com doses de cloroquina. Ainda que não houvessem comprovações científicas a respeito, não fazia falta.

O pesquisador foi igualmente culpado pelo fechamento das escolas, do comércio, da interrupção da mobilidade urbana, do prejuízo aos empresários, tudo causado pela demasiada insistência na quarentena. Como a culpa foi do “pesquisador”, vários entre os (ir) responsáveis do então governo federal saíram ilesos da pandemia, frente à opinião pública. Alguns mesmos fortalecidos, se tomamos os resultados eleitorais dos últimos três anos.

A mudança do governo federal representou um alívio para a comunidade científica, com a retomada do investimento público na Ciência, Tecnologia e Inovação. Afinal, antes havia um “astronauta” que deixou o setor a ver estrelas. Porém, é enganoso achar que a área saiu da alça de mira. Ela vem sendo progressivamente instrumentalizada como veículo para divulgação de agendas políticas absolutamente contrárias à área. Como ocorre com a Segurança Pública há décadas, utilizada politicamente para mobilizar pautas em prol de mais militarização, mais armas, mais enfrentamento em nome da “pacificação” e da “ordem”. Coincidentemente, aumentaram a desordem e a instabilidade social. Mais uma vez se busca desvirtuar o caráter público das instituições governamentais para contrariar as atribuições institucionais.

Podemos observar isso em diferentes níveis e lugares. A Comissão de Educação da Câmara dos Deputados é ocupada majoritariamente por atores contrários aos princípios basilares da educação nacional, o que irá se repetir na Comissão de CTI. Em São Paulo e Santa Catarina as fundações de amparo são alvo de cortes de recursos e censura no teor das pesquisas. No Rio de Janeiro, a mudança intempestiva na FAPERJ, a dança das cadeiras na Presidência da Fundação CECIERJ e da FAETEC, entre outros atentados. São apenas alguns exemplos que deixam claro o avanço obscurantista sobre a área de CTI, onde pouco importa fazer recurso a dados objetivos, informações e análises de razoabilidade.

Política da falta

Nomear pessoas fora de sua área de competência para exercer cargos públicos é parte do modus operandi da “política da falta”. Contribui de modo direto para a “precarização” dos dados acerca dos serviços e das ações previstas. Não havendo dados ou informações, não há prestação de contas ou cobranças à responsáveis. Abrem-se, assim, os caminhos para a produção de culpados por eventuais reveses ou não atendimento de demandas essenciais da sociedade. Ao mesmo tempo, a inexistência de dados ou informações reduz a complexidade dos fenômenos, permitindo respostas superficiais e inadequadas. Conclusão: ao mesmo tempo que se criam “bodes expiatórios”, sobre os quais se concentram todos os problemas, criam-se panaceias milagrosas por onde sangram os recursos existentes

A “política da falta”, na área de Segurança Pública, busca justificar a reação violenta e mesmo letal contra eventuais “delinquentes”. Na Ciência, Tecnologia e Inovação, guardada as devidas proporções, ela reage com virulência discursiva e desinformação contra a comunidade acadêmica e o conhecimento científico. Em um lugar, os “traficantes” são culpados pelos políticos da falta por reagirem; no outro, os “pesquisadores” por perguntarem demais, estudarem demais e demonstrarem, na visão deles, uma certa  “má vontade” para com o fundamentalismo religioso ou contra os interesses particularistas de aves de rapina atuantes do mercado, entre outros.

Infelizmente a área de segurança pública é hegemonizada, há algumas décadas, por segmentos obscurantistas, pouco afeitos ao ideal democrático. Estes não privilegiam processos de administrar conflitos com base em conhecimento científico e sintonizado com os interesses da sociedade. Agora tem ficado cada vez mais  claro que a área da CTI é um território a ser conquistado pelo obscurantismo, assim como observado na área da Segurança Pública. Em complementação à lógica da  deslegitimação ou do negacionismo científico que reinou durante a pandemia, percebe-se a ênfase  da “política da falta”.

Não se trata mais de privilegiar os ataques às instituições e aos cargos acadêmicos e científicos; se trata de ocupá-los. Afinal, para a “política da falta” a institucionalidade pode conferir legitimidade e poder para apontar “culpados” que servirão de “bodes expiatórios” dos problemas que as instituições são responsáveis por solucionar. Logo, o objetivo explícito de destruir não é evocado, mas de tomar e ocupar os cargos de CTI e as universidades.

As trocas observadas nas instituições de CTI, apesar de toda a mobilização da comunidade acadêmica e científica, está também sendo comemorada por políticos na ALERJ. Finalmente a instituição vai existir para se ver livre dos “pesquisadores” e poderá se dedicar ao fomento e inovação de “estudos” nos moldes preconizados pelos fundamentalistas religiosos, por exemplo, que vêem na ciência uma ameaça à charlatania que tem projetos de poder bem delineados.  Para justificar perante a opinião pública, estrategicamente desinformada, basta resgatar a fake news que os “pesquisadores” ou “acadêmicos” são culpados pela “doutrinação” dos alunos e deturpação do ambiente universitário. Enquanto isso, desmobilizam-se pesquisas originais e autônomas, em favor de iniciativas suplementares ao que vem sendo projetado fora do país.

Frederico Policarpo – Antropólogo, professor do Departamento de Segurança Pública e pesquisador do INCT-InEAC

Lenin Pires – Antropólogo, professor do Departamento de Segurança Pública e pesquisador do INCT-InEAC

Pedro Geraldo – Cientista Político, jurista e professor do Departamento de Segurança Publica e pesquisador do INCT-InEAC

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