Caso Silvio Almeida evidencia questões sobre a cultura do estupro na sociedade brasileira
por Lana Lage
As acusações de violência sexual contra o então ministro de Direitos Humanos e da Cidadania Silvio Almeida, encaminhadas ao Me Too, que já seriam suficientes para causar uma crise sem precedentes no governo, foram agravadas por envolverem o nome da ministra da Igualdade Racial Anielle Franco.
A repercussão em todas as mídias foi estrondosa, suscitando diferentes tipos de comentários, análises, especulações e debates, que procuraram abarcar os mais diversos aspectos do caso, desde as questões políticas subjacentes até as questões raciais implicadas. Em meio aos diferentes posicionamentos veiculados na mídia, foi possível perceber a presença de indícios do fenômeno nomeado pelas feministas, nos anos de 1970, como “cultura do estupro”.
A cultura do estupro
Esse termo conceitua um ambiente cultural em que leis, normas, valores e práticas favorecem a violência sexual contra a mulher, com base nas desigualdades de gênero, que fazem com que homens considerem mulheres sua propriedade e objeto natural de uma sexualidade exacerbada e violenta. A cultura do estupro articula representações sociais que naturalizam a violência sexual, culpando a vítima pelas agressões sofridas, e implica em sentimentos misóginos e machistas, banalizando uma das formas mais deploráveis de violência contra as mulheres.
Apesar de sua conceituação ser recente, a cultura do estupro constitui um fenômeno histórico de longa duração que, no mundo ocidental, tem raízes na tradição judaico cristã e na forma dicotômica assumida por suas representações de gênero, ancoradas em dois poderosos símbolos que permanecem ainda hoje atuantes no imaginário sobre as mulheres: Eva e Maria.
Como apontou o historiador francês Jacques Le Goff, o cristianismo constituiu-se como uma religião marcada pela recusa ao prazer. E, embora dirigida a homens e mulheres, a exortação à castidade criou uma dupla moralidade, complacente com a sexualidade masculina e controladora com relação à feminina. Em uma religião dirigida por homens que deviam se manter castos, o mito de Eva alimentou um sentimento misógino, que via a mulher como lasciva por natureza e, portanto, mais propensa a pecar e a seduzir o homem para o pecado.
A obra de Santo Agostinho (354-430 d.C.) associou o pecado original ao sexo, concepção que estaria generalizada no pensamento cristão no século XII, caracterizando o pecado original como um pecado de natureza sexual. Mas, o cristianismo apresentou uma alternativa para as mulheres: a identificação simbólica com Maria para aquelas que se mantivessem castas ou tivessem a sexualidade controlada pelo matrimônio e direcionada para a procriação. Assim, as representações sobre as mulheres oscilam entre esses dois modelos classificatórios, aplicados a partir de critérios que se modificam no tempo e no espaço, com graves consequências para a vida das mulheres. Para as consideradas Marias, são devidos o respeito e a proteção, enquanto as Evas são vistas como alvos naturais de investidas sexuais masculinas.
A aplicação desse sistema classificatório, no entanto, não decorre apenas do comportamento da mulher, mas depende da imbricação de diversos fatores de diferenciação social. No Brasil dos anos de 1970, Lélia Gonzales, importante intelectual do Feminismo Negro, já articulava elementos raciais, sexuais e de classe para entender e combater a discriminação contra as mulheres e, no final dos anos de 1990, a norte-americana Kimberlé W. Creenshaw cunhou o conceito de interseccionalidade para explicar como fatores diversos, sexo/gênero, classe, raça, etnia, idade, deficiências e orientação sexual, interagem na produção e reprodução das desigualdades sociais.
A cultura do estupro na legislação e no Direito
Assim, a cultura do estupro também é afetada pelas diferentes condições sociais das mulheres, apesar de apresentar traços comuns que permitem identificá-la em várias situações da vida cotidiana. Os exemplos se repetem ao longo da história e os reflexos da cultura do estupro podem ser percebidos, sobretudo, na legislação e na aplicação do Direito relativos aos delitos de natureza sexual, tendo como principal consequência a culpabilização das vítimas e o descrédito diante de suas denúncias.
No Brasil, a cultura do estupro está presente desde a ocupação colonial. O Livro V do Código Filipino (1603) incorporou a ideia cristã de honestidade feminina para tipificar e punir os crimes de natureza sexual contra a mulher. O Título XXIII condenava o homem que dormisse com “mulher virgem ou viúva honesta” a casar com ela ou a provê-la de quantia destinada ao dote de seu casamento.
O Título XVIII condenava à morte todo homem que forçasse uma mulher a dormir com ele, mas apenas aquelas que “verdadeiramente foram forçadas, sem darem ao feito algum consentimento voluntário”. No caso de escravizadas ou prostitutas, o rei reservava a si a condenação. O texto da lei é claro. A tipificação do crime vincula-se à “honestidade” da vítima e, de antemão, há uma desconfiança quanto ao seu depoimento, que pode encobrir uma cumplicidade no ato. É preciso ressaltar que o termo “honestidade”, quando aplicado a uma mulher diz sempre respeito ao seu comportamento sexual e não, como acontece aos homens, à sua relação com o trabalho ou com o respeito à propriedade alheia.
Outro delito cuja punição evidencia a presença da cultura do estupro no Brasil colonial era a solicitação, nome dado ao assédio sexual cometido por confessores na ocasião da confissão, em que as mulheres eram praticamente a totalidade das vítimas. Cabia ao Tribunal do Santo Ofício da Inquisição punir esses sacerdotes. No século XVIII, 425 clérigos foram acusados desse delito no Brasil, denunciados por 503 mulheres.
Os processos referentes a esses casos apresentam, além da inquirição das próprias denunciantes, um inquérito sobre a opinião pública em que o acusado era tido e mais um, em que se questionava o crédito que se devia dar às denúncias das solicitadas. Nesses inquéritos somente homens eram chamados a depor. Para ter sua palavra acreditada, essas mulheres deveriam viver com “modéstia e honestidade” e estar sob a tutela de algum homem: pai, marido, irmão ou tutor. Negras e indígenas eram desqualificadas de antemão, simplesmente por sua condição racial. Entre os argumentos alegados pelos sacerdotes processados por solicitação para minimizar a sua culpa estão, de um lado, a “fragilidade do corpo”, que remete à sua incapacidade, como homens, de resistir à tentação feminina; e, de outro, o comportamento imoral da vítima.
Seguindo essa lógica, que faculta o delito sexual contra determinadas mulheres, o Código Criminal do Império do Brasil, de 1830, punia quem deflorasse virgem menor de 17 anos, ou seduzisse “mulher honesta” menor de 17 anos, (Art. 219 e 224) e quem tivesse “cópula carnal por meio de violência ou ameaça com qualquer “mulher honesta” (Art. 222) Se a violentada fosse prostituta, a pena seria diminuída. No Código Penal de 1890 e na Consolidação das Leis Penais de 1932, o artigo 268 também punia quem “estuprasse mulher virgem ou não, mas honesta”, reduzindo também a pena quando a vítima fosse “mulher pública ou prostituta”.
Analisando processos referentes a estupro e defloramento da Comarca de Campos dos Goytacazes, entre 1890 e 1930, é possível perceber os critérios subjetivos mobilizados nos julgamentos para conferir ou não credibilidade às acusações das mulheres. Os homens, que constituíam a maioria das testemunhas, atestavam ou não a “honestidade das vítimas”, que estava quase sempre subordinada à existência de alguma tutela masculina. Nos processos analisados, a maioria das denúncias foi classificada como improcedente, fazendo a culpa pela agressão recair sobre as mulheres, por terem se deixado seduzir, por consentirem no ato ou por terem, com seu mau comportamento, provocado a violência praticada contra elas.
Apenas em 2005, o Código Penal atual (Decreto lei 2.848/1940) livrou-se do termo “mulher honesta” para tipificar crimes de natureza sexual, pela Lei 11.106/05, que modificou os artigos 148, 215, 216 e 226. No entanto, o critério da “honestidade” da vítima permanece usado tanto pelos operadores do Direito quanto pela sociedade em geral para desqualificar mulheres vítimas de violência sexual, desacreditando suas denúncias. E não há mulher submetida a esse tipo de violência que não se envergonhe e ou se sinta culpada, na medida em que a cultura do estupro, ao enfatizar condição de sedutora atribuída às mulheres, a leva a questionar se, em alguma situação, o seu comportamento pode ter provocado ou justificado a agressão sofrida. Como também não há mulher que, em algum momento da sua vida, não tenha sofrido alguma forma de importunação de natureza sexual, mais ou menos grave. Nem a negação diante das investidas é suficiente para convencer o agressor de sua repulsa diante do ato, como mostra a campanha “Não é não”, veiculada no Brasil, sobretudo na época do Carnaval. Isso porque há uma interpretação de que o “não” pode ser apenas uma estratégia feminina de sedução. Por isso, a cultura do estupro constitui o principal fator para a imensa subnotificação dos crimes sexuais contra as mulheres.
Considerações finais
Voltando ao caso que provocou esse artigo, nas notícias veiculadas na mídia sobre as acusações da ministra Anielle Franco contra o também ministro Sílvio Almeida, vimos emergir os traços da cultura do estupro nos muitos comentários que colocam em questão a veracidade das denúncias. É sintomático que, diante de situações desse tipo, mesmo que não envolvam personalidades tão importantes e nem tenham graves implicações políticas, a fala da mulher que denuncia seja, em princípio, questionada, antes mesmo de que tenha havido alguma investigação sobre o caso e dados concretos para a dúvida. Inclusive, o relacionamento amigável, relatado como “íntimo”, entre os dois chegou a ser mencionado como fator para essa desconfiança.
As mulheres que denunciam uma violência sexual sabem, de antemão, que terão sua vida pregressa devassada e que qualquer indício de um comportamento que possa ser considerado fora dos padrões morais servirá para justificar as agressões.
Cabe perguntar o porquê de a palavra da mulher ser sempre posta em questão e não a do agressor na sua defesa. Obviamente, qualquer pessoa acusada de um crime deve ter todo o direito à defesa, e não é disso que se trata, mas da prática, comum através dos séculos, de se duvidar de antemão das acusações feitas pelas mulheres, sejam elas donas de casa ou ministras de Estado, nos casos de qualquer tipo de delito de natureza sexual.
A resposta está na presença da cultura do estupro, que, reproduzindo representações de gênero construídas há milênios atrás, continua a culpar a mulher por essas agressões.
Desconstruir a cultura do estupro, identificando seus sinais em cada lei, cada norma, cada prática, cada valor socialmente aceito, constitui, portanto, uma das tarefas mais urgentes para todos que consideram a igualdade de direitos entre homens e mulheres como condição necessária para o estabelecimento uma sociedade verdadeiramente democrática em nosso país.
Lana Lage da Gama Lima é Professora Titular de História Social, aposentada na UFF e na UENF. Pesquisadora associada do INCT-InEAC/UFF. Pesquisadora do GINGA-UFF. Membro do Grupo de Trabalho de Estudos de Gênero da Associação Nacional de História – ANPUH. Membro da Comissão de Segurança da Mulher do CEDIM RJ.
Revisão: Mariana Pitasse
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