O sistema de justiça, a liberdade de comunicação e a reinvenção da democracia.
por Gláucia Foley
A crise política atual é uma crise da democracia. O aprofundamento das violações de direitos humanos, a banalização do discurso do ódio e as ameaças às instituições democráticas demandam que o Sistema de Justiça se comprometa não somente com o processo de retomada da democracia, como também de sua própria reinvenção.
E esse compromisso implica especial atenção e proteção à liberdade de comunicação como um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, eventuais críticas a decisões judiciais que flexibilizam a liberdade de comunicação são essenciais à democracia e não podem ser rejeitadas em nome da independência judicial, ainda que esse instituto também constitua um dos pilares do Estado Democrático de Direito.
No entanto, a independência judicial, como escudo de proteção do cidadão contra as arbitrariedades do Estado, não pode ser capturada, nem fetichizada, obstruindo a transparência do Judiciário, os mecanismos de controle, a crítica e o diálogo social.
E o debate que se coloca nesse momento deve fomentar a seguinte reflexão: como o sistema judicial pode se comprometer radicalmente com a consolidação da liberdade de expressão? O conjunto normativo e jurisprudencial disponível aponta alguns critérios bastante objetivos para essa tarefa e, eventuais decisões judiciais dissonantes podem ser desafiadas por meio de recurso, analisadas nos debates públicos e problematizadas nos cursos de formação em direitos humanos para os integrantes do sistema judicial. Os critérios que eu pretendo elencar, aqui, tem suas origens na Constituição.
A Constituição Brasileira, que reserva todo um capítulo para tratar da comunicação social, deixa claro, em seu artigo 220, que a liberdade de expressão não pode sofrer qualquer tipo restrição. No julgamento da ADPF 130, o STF reconheceu a plenitude da liberdade de expressão, o que significa dizer que está proibida a censura prévia, que silencia a informação considerada inadequada ao arbítrio exclusivo do censor.
Um dos principais argumentos da decisão é que o jornalismo é o espaço, por excelência, do pensamento crítico, da partilha de ideias, da pluralidade e serve como uma alternativa à versão oficial do Estado.
O direito à informação do art. 5°, XIV da CF, que é conferido a todo cidadão/cidadã, só pode ser efetivo se houver liberdade de imprensa. E, somente por meio de uma imprensa livre que a liberdade de comunicação e a democracia se inserem em um ciclo de retroalimentação. Mas, além de livre, a imprensa deve ser plural.
Isso porque, os meios de comunicação, que não se limitam a comunicar fatos, fazem a mediação com o mundo, revelam opiniões, percepções sobre os fatos, conferindo significados às experiências sociais. E essa é uma atividade essencial para formação da própria cidadania. Um cidadão/cidadã que acessa uma informação crítica, de qualidade, exerce melhor os seus direitos e garante participação igualitária nos debates na arena pública.
Aliás, uma comunicação de qualidade, livre e plural colabora para a transformação social quando promove pautas identitárias; quando articula redes; quando revela que as carências sofridas por parte da sociedade são, na verdade, injustiças que demandam mobilização popular. Essa colaboração fica bastante evidente nas experiências comunitárias de radiodifusão, que não por acaso, foram silenciadas por normas estatais em um passado recente.
Nesse sentido, a luta pela liberdade da comunicação deve ganhar centralidade no processo de reconstrução da democracia.
Embora essencial do ponto de vista político e plena do ponto de vista jurídico, a liberdade de expressão não é, por óbvio, absoluta. Isso porque eventual desrespeito a outros direitos também constitucionais, implicará acesso ao Judiciário para reivindicação do direito de resposta e de indenização, que são mecanismos legítimos para proporcionar a devida reparação e para coibir novos abusos.
Esse controle judicial, porém, não pode ser seletivo. Além da já conhecida seletividade do direito penal, é preciso ficar atento às decisões judiciais que possam configurar o assédio judicial, que é um fenômeno internacionalmente conhecido como Judicial Harassement, conforme se vê nas inúmeras plataformas que denunciam a perseguição a jornalistas em países como Guiné, Turquia, dentre outros.
É preciso destacar, no debate público, as decisões que deslegitimam os conteúdos jornalísticos, seja quando editam textos, quando proíbem entrevistas, quando suprimem expressões ou quando retiram conteúdos de circulação. Todas essas modalidades configuram censura, absolutamente vedada pela Constituição.
Quando o sistema de justiça se depara com uma alegação de que a comunicação violou algum direito, alguns critérios precisam ser observados: se o caso é de violação da vida privada, por exemplo, há que se analisar se a informação é de interesse social ou não. A revelação de uma informação, ainda que privada, mas revestida de interesse social, não viola, a princípio, o art. 5°, X da CF.
Outro critério é analisar se a opinião jornalística, ainda que eloquente, provocativa, cheia de verve tem ou não base factual. Esse, aliás, foi um dos critérios utilizados pela Corte Europeia de Direito Humanos no caso Lopes Gomes da Silva vs. Portugal. O fundamento da decisão, favorável ao jornalista, foi o de que a matéria disponibilizou diversos links de artigos para que o leitor pudesse checar os dados fáticos e assim formar a sua opinião.
Outra referencial importante: se houver convicção judicial de que uma matéria incorreu em violação de algum direito individual, o valor da indenização deve levar em conta critérios objetivos que o próprio direito civil – por meio do instituto da responsabilidade civil – pode fornecer, sendo um deles a capacidade financeira da parte condenada a indenizar. Condenações a valores abusivos provocam asfixia financeira, sobretudo a jornalistas que não integram a grande mídia, comprometendo a sua sobrevivência, inclusive profissional.
Outro critério observado também pela Corte Europeia de Direitos Humanos foi no caso Mondragon x Espanha cuja decisão favorável ao jornalista levou em consideração o fato de que o Rei da Espanha, como agente público, está permanentemente suscetível ao escrutínio da opinião pública e, portanto, o limite à crítica, nesses casos, deve ser maior que o de um cidadão comum. Esse argumento se repete, inclusive, na ADPF 130 cuja decisão considerou que o agente político está em permanente vigília e eventual indenização deve ser, além de proporcional à capacidade financeira da parte condenada, revestida de modicidade.
Por fim, é preciso divulgar o acerto das inúmeras decisões judiciais no Brasil que, rejeitando a pretendida substituição processual, condenaram à litigância de má-fé, os autores de ações que acessaram o Judiciário em diferentes e longínquas regiões do país para, na qualidade de fiéis, pedirem a condenação por dano moral de uma jornalista que assinou matéria de denúncia contra a igreja a qual pertenciam os autores.
Esses são, portanto, os critérios que devem balizar as decisões judiciais: a vedação à censura; a definição se a informação privada é ou não de interesse social; a análise se há base factual para sustentar a notícia; a garantia de que haja proporcionalidade no momento de se decidir sobre o valor objeto da condenação; a verificação se o autor da ação é ou não agente público e; a análise sobre eventual litigância de má-fé.
A proteção à liberdade de comunicação e ao direito à informação de qualidade, a promoção de uma formação qualificada em direitos humanos, a disposição para o diálogo com todos os segmentos sociais, ao lado da defesa de sua independência colocará o sistema judicial brasileiro como partícipe do processo de reconstrução e reinvenção da democracia, assegurando que o jornalismo siga livre, plural e independente.
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