Os ativos norte-americanos e um algo-além do narcisismo ocidental, por Fábio C. Zuccolotto

“O” mercado, de tempos em tempos, forja uma repactuação com os interesses populares às custas de muito derramamento de sangue.

Basquiat

Os ativos norte-americanos e um algo-além do narcisismo ocidental

por Fábio C. Zuccolotto

Leio no O Globo, 09.04.2025: “‘O mercado está perdendo rapidamente a fé nos ativos americanos’, diz estrategista do Deutsche Bank”.

A plutocracia ocidental contemporânea origina-se da burguesia do pós-guerra. Essa, por sua vez, foi a ramificação ocidentalista mais robusta do grande tronco da Revolução Francesa (1789 – 1799), que guilhotinou o poder absoluto da aristocracia colonialista e escravocrata e instituiu os princípios iluministas que soergueram a modernidade e as democracias liberais.

“O” mercado, essa figura sacralizada em editoriais e pai do colonialismo, da escravidão e do nazifascismo – o de ontem e o de hoje -, de tempos em tempos forja uma repactuação com os interesses populares às custas de muito derramamento de sangue.

Entretanto, o que se revela pelas curvas dialéticas da história, é que tais movimentos não partem de princípios, mas da ausência deles. Ou melhor, não partem de um princípio ético-social ou moral, mas de um princípio econômico muito distante da necessária subsistência em um modelo de trocas. Ao analisarmos o modo de produção capitalista, não devemos nos esquecer do essencial Walter Benjamin: o capital não é moral ou imoral; ele é amoral.

Amoral como Trump, Musk e tantos agentes de destaque do “o” mercado (não todos, evidentemente), filtrados pelo decanter da sociopatia, hipervalorizado no prevalente caldo cultural ocidental hegemonizado pela simbiose catártica entre a ética protestante e o espírito do capitalismo, tão bem caracterizada por Max Weber.

“Compre quando houver sangue nas ruas, mesmo que o sangue seja o seu”.

Essa frase, atribuída ao Barão Nathan Mayer Rothschild – aristocrata frankfurtiano do século XVIII -, é um mantra dos tubarões da Ibovespa, da Nasdaq, Dow Jones, etc. Nathan, filho de Mayer Amschel Rothschild (1744 – 1812) – pai fundador do financismo internacional e patriarca da famosa família de banqueiros – fez fortuna comprando no pânico que se seguiu à Batalha de Waterloo, entre os exércitos britânico e prussiano contra o exército de Napoleão Bonaparte.

Como se vê, não é de hoje que o medo e o sangue nas ruas – portanto, o ódio, a violência e a guerra – são poderosos instrumentos dos acumuladores de riquezas, ainda que eles se transvistam com uma estética discursiva popularesca.

Necessário relembrar que o dinheiro não é sinônimo de riqueza, mas um objeto (cada vez mais virtualizado) que representa um valor de troca e sobre o qual uma sociedade pactua confiar. Já a riqueza é tudo aquilo que o planeta físico e o universo simbólico oferecem enquanto recursos às nossas subsistência e existência. A terra, a água, os metais, o petróleo, as florestas, o tempo, o amor, etc. Alguns entendem que as riquezas devem ser preservadas e partilhadas, outros, que elas devem ser acumuladas ad infinitum e, portanto, podem ser tomadas à força.

Após as carnificinas entre populações majoritariamente europeias nas guerras mundiais, a burguesia ocidental do pós-guerra se refez através da ONU e dos Acordos de Bretton Woods. Tentando superar os fracassos do Tratado de Versalhes e da Liga das Nações, a criação da organização visou à pacificação da ordem geopolítica, enquanto os acordos buscaram um pacto “por cima”, após a crise de 1929, estabelecendo as propostas definidas pelo Atlântico Norte como as normas econômicas impostas ao ocidente. Neles foram instituídos, por exemplo, o Banco Mundial e o FMI.

A ideia era a de que os países que aderissem ao FMI concordariam em estabelecer em suas moedas o câmbio fixado em relação ao ouro (lastro de riqueza, de fato) ou ao dólar. Algo que ficou conhecido como o padrão dólar-ouro.

Sabemos o que aconteceu. Já no contexto da Guerra Fria pós-macarthismo, entre as corridas espacial e armamentista, em 1971, o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, primeiro executor da doutrina do choque neoliberal – cujo balão de ensaio foi o sanguinário golpe no Chile, em 1973 – dinamitou de forma unilateral o padrão dólar-ouro. Isso fez com que o dólar se tornasse a primeira moeda sem lastro algum de riqueza (moeda fiduciária) do mundo moderno.

Isso significa que a segurança, daqueles que a utilizam, em seu valor passou a ser baseada única e exclusivamente na confiança em relação ao seu emissor. Quem controla a política monetária dos Estados Unidos é o FED, um banco central de naturezas pública e privada. Ou seja, com a consolidação dos Estados Unidos enquanto um império global, após a queda do Muro de Berlim, a economia mundial foi “lastreada” pela confiança, do planeta todo, em seus banqueiros e em suas bombas / indústria bélica.

Assim, a economia especulativa se descolou da economia real novamente, estendendo o tapete para uma nova crise econômica do porte daquela ocorrida em 1929. Os novos aristocratas esquecerem-se, uma vez mais, que o valor só pode ser gerado a partir da força de trabalho no mundo real.

Porém, dessa vez, após a crise de 2007 – 2008 originada desse modelo econômico violento e fraudulento de espoliação das massas, que cristaliza amorais e sociopatas como dirigentes, tal hegemonia imperial começou a esfarelar.

Quando lemos que ‘o mercado está perdendo rapidamente a fé nos ativos americanos’ é preciso ressalvar que a fé só resiste ao próprio sangue derramado quando ela transcende, do sujeito, o narcisismo, em direção a um algo-além do seu próprio umbigo.

Essa lição, a manifestação histórica sociocultural, política e econômica da plutocracia ocidental ainda não aprendeu. O mesmo não podemos inferir dos chineses, em sua cultura milenar e com a sua força de trabalho presente e futura, formada por cerca de 1 bilhão e 400 milhões de pessoas e com o seu algo-além do narcisismo ocidental.

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Fábio C. Zuccolotto é psicanalista teórico e clínico, autor do site Café com Pepino | Psicanálise, cultura e redes sociais e cientista social pela Universidade Estadual de Campinas.

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