A mudança climática não é nada perto da mudança jurídica neoliberal
por Fábio de Oliveira Ribeiro
Recentemente o Partido Verde ajuizou no STF a ADI 7650 requerendo a declaração de inconstitucionalidade de uma Lei ambiental promulgada por Eduardo Leite.
A petição inicial do PV (doc. anexo) encontra-se adequadamente fundamentada na Constituição, no Código Florestal, na jurisprudência do STF e na doutrina. O acolhimento do pedido é inevitável. Os fatos notórios que ocorreram recentemente no RS nas últimas semanas evidenciam que no contexto atual, em que as mudanças climáticas provocam eventos naturais extremos mais frequentes com potencial destrutivo catastrófico, o predomínio dos negócios como de costume (tutelados pela Lei inconstitucional promulgada pelo governador Eduardo Leite) sobre o direito ambiental (um ramo do Direito Público) só pode ter uma consequência: a destruição da natureza e das atividades econômicas e da riqueza acumulada pelos cidadãos.
O mercado, quase sempre atendido por governadores irresponsáveis, exige total desregulamentação ambiental. Todavia, os grandes produtores rurais, os banqueiros e os especuladores (cujos interesses são tutelados por Leis inconstitucionais como a que é debatida aqui) raramente arcam com a totalidade dos prejuízos públicos e privados causados aos cidadãos comuns por uma enchente devastadora como a que destruiu cidades inteiras no RS.
Obviamente não é possível julgar no âmbito da referida ADI 7650 as consequências da devastação ambiental causada pela desregulamentação ambiental promovida por Eduardo Leite através de uma Lei inconstitucional. Isso todavia não deve impedir a Suprema Corte de refletir sobre a verdadeira calamidade pública: a sorrateira e crescente invasão do Direito Público pelo neoliberalismo jurídico.
Na verdade, não importa se um Estado é totalmente centralizado ou se existe algum tipo de descentralização administrativa e política. O fato mais importante é se a política (e o Direito Público) predomina ou não sobre os negócios como de costume (Direito Privado).
O neoliberalismo tem como princípio a redução da esfera pública e/ou o predomínio da esfera privada sobre ela. Portanto, num país que cometer o erro de adotar esse sistema de poder o resultado é sempre o mesmo: falência das instituições públicas por falta de recursos, o predomínio avassalador do mercado e as consequências disso (no caso do RS uma enchente cujos efeitos poderiam ter sido e não foram minimizados pelo governo estadual).
Elevado à condição de divindade inquestionável, o mercado obtém lucro destruindo a natureza. Os lucros de alguns especuladores podem, aliás, ser maximizados em decorrência de um evento natural catastrófico como o que ocorreu no RS. Alguém duvida que em breve o estado desgovernado por Eduardo Leite se tornará o novo paraíso dos especuladores imobiliários? Muitos deles já devem estar se preparando para aproveitar o desespero das famílias atingidas pela inundação para comprar milhares de imóveis por uma fração de seus preços.
Aqueles que tiram proveito do mercado em decorrência de sua melhor condição econômica, contudo, cuidam apenas de seus próprios interesses mesquinhos. E isso pode conduzir e já está conduzindo a sociedade brasileira à um novo tipo de barbarismo: a exclusão social e política total de dezenas de milhões de cidadãos que não têm nem recursos econômicos (e são ignorados pelo governo), nem condições de se defender de eventos climáticos extremos (como os cidadãos gaúchos), nem acesso ao mínimo necessário para viver de maneira civilizada. É possível acreditar nos benefícios da civilização quando não se tem acesso a habitação, educação, saúde, alimentação, aquecimento e diversão?
Apesar da retórica pomposa de seus defensores, o neoliberalismo (e sua vertente mais perigosa que se infiltra tanto na administração pública quanto no Sistema de Justiça: o neoliberalismo jurídico) é uma aberração que está gerando a regressão à um tipo de vida que existia antes da constituição da Polis grega. Entre os gregos a Política predominava sobre a economia, porque os problemas do Oikos (casa, moradia, unidade familiar) eram questões privadas que não deveriam ser resolvidas na Ágora. A invasão da ἀγορά, da arena política, pelos interesses privados (fenômeno que pode ser visto cristalizado na Lei impugnada pelo autor da presente ação), protagonizada pelo neoliberalismo é a raiz dos problemas municipais, estaduais e federais brasileiros.
Há bem pouco tempo, um AGU se notabilizou por fazer sustentações orais citando a Bíblia para convencer os Ministros da Suprema Corte a autorizar o funcionamento das Igrejas Evangélicas durante a pandemia. Felizmente o neoliberalismo jurídico religioso dele fracassou, caso contrário milhões de pessoas estariam mortas. Curiosamente, referido AGU ganhou o direito de julgar a comentada ADI 7650. Devemos supor que ele provavelmente dirá que a Lei do RS não é anti-bíblica, mas essa é uma questão que nenhum jurista deve debater.
Na antiguidade, as cidades eram muradas. Toda a população da Polis tinha obrigação de ajudar na construção, preservação, manutenção e defesa das muralhas. As muralhas de Roma eram consideradas res sanctae e, portanto, estavam totalmente fora do comércio. Num contexto de mudança climática e perigo ambiental manifesto, o conceito de res extra commercium aplicável às muralhas de Roma pode e deve ser restaurado e aplicado às normas constitucionais, ao Código Florestal e à jurisprudência ambiental do STF. Elas são as muralhas jurídicas simbólicas levantadas pelo Brasil para se proteger e proteger os brasileiros dos eventos climáticos extremos que já se tornaram mais frequentes e intensos. É preciso, entretanto, responsabilizar os políticos que colocam em risco essas muralhas.
Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.
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Basta fazer uma conta bem simples pra acabar com este negócio de flexibilizar leis ambientais para privilegiar certos segmentos, como o agro, a expansão imobiliária, entre outros. Calcule quanto estes segmentos ganharam com esta flexibilização em comparação com o que irá se gastar para reconstruir a destruição causada no Estado
Garanto que os custos de recuperação serão várias ordens de grandeza maiores que os lucros desses setores que só exploram a natureza em busca de ganhos fáceis e também financiam os políticos. Mas um dia eles aprendem que com a natureza não se brinca.
Luis Roberto Barroso é um que não perde ocasião de aplicar um utilitarismo antijurídico em suas decisões, invariavelmente pró-mercado. Tudo ali é conta de chegada, flexibilização dos meios em nome de fins privados, supostamente ancorados no “interesse público” – aquele que a mídia diz ser, claro. Para um utilitarista, tudo é negociável, tudo tem um preço; precisamos, pois, de mais kantianos na sociedade, sobretudo no Judiciário.