Salvio Kotter
Salvio Kotter passou por formações bem variadas, como Administração de Empresas, Música Erudita, Grego Antigo e Latim. Publicou vários livros, de ficção e não-ficção e é editor da Kotter Editorial, especializada em literatura, filosofia e política.
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O Motorista de Uber é Proletário ou Pequeno-burguês?, por Salvio Kotter

Marx identificava diferentes frações na burguesia, como a burguesia industrial, a financeira e a comercial, cada uma com seus interesses

O Motorista de Uber é Proletário ou Pequeno-burguês?

por Salvio Kotter

Vejamos o que diz Marx

A análise de Karl Marx sobre a sociedade capitalista se baseia na compreensão da luta de classes como motor da história. Para ele, a estrutura de classes é definida pela relação dos indivíduos com os meios de produção, ou seja, com os recursos e ferramentas necessários para gerar riqueza. Dentro dessa estrutura, três classes principais se destacam no sistema capitalista: a burguesia, o proletariado e a pequena-burguesia.

A Burguesia: Donos dos Meios de Produção

A burguesia é a classe dominante no sistema capitalista. São os proprietários dos meios de produção, como fábricas, máquinas, terras e capital financeiro. Eles detêm o poder econômico e, consequentemente, exercem grande influência política e social. Seu objetivo principal é a acumulação de capital, buscando maximizar seus lucros através da exploração da força de trabalho do proletariado.

Marx identificava diferentes frações dentro da burguesia, como a burguesia industrial, a financeira e a comercial, cada uma com seus interesses específicos, mas unidas pelo objetivo comum de manter e expandir seu domínio sobre os meios de produção.

O Proletariado: Vendedores da Força de Trabalho

O proletariado é a classe trabalhadora, composta por aqueles que não possuem os meios de produção e, portanto, são obrigados a vender sua força de trabalho aos detentores destes meios em troca de um salário. Eles são explorados pela burguesia, que se apropria da mais-valia, ou seja, da diferença entre o valor produzido pelo trabalhador e o salário que ele recebe.

Marx via o proletariado como uma classe revolucionária, com o potencial de se organizar e lutar por seus direitos, visando a superação do sistema capitalista e a construção de uma sociedade mais justa e igualitária em um novo sistema, o socialismo, que, por sua vez, gera ou geraria o comunismo.

A Pequena-Burguesia: Donos de meios de trabalho

A pequena-burguesia ocupa uma posição intermediária na estrutura de classes. São proprietários de pequenos negócios, como lojas, oficinas e fazendas, e geralmente trabalham por conta própria e/ou até empregam um número reduzido de trabalhadores. Eles possuem os meios de produção, mas em escala limitada, e por isso enfrentam dificuldades para competir com as grandes empresas capitalistas.

Marx considerava a pequena-burguesia como uma classe instável e contraditória, oscilando entre a identificação com a burguesia e a solidariedade com o proletariado. Sua posição social precária a torna vulnerável às crises econômicas e à concentração de capital, o que pode levar à sua proletarização.

A Relevância atual da Análise de Marx

A análise de Marx sobre a estrutura de classes continua relevante para a compreensão da sociedade contemporânea. Embora o capitalismo tenha passado por transformações significativas desde o século XIX, ele continua a existir e predominar, a divisão entre proprietários dos meios de produção e trabalhadores assalariados permanece fundamental. A luta entre essas classes, embora se manifeste de formas diferentes, continua sendo um elemento central da dinâmica social e política.

É importante ressaltar que a análise de Marx não é determinista. Ele não acreditava que a revolução proletária fosse inevitável, mas sim que as contradições inerentes ao capitalismo criavam as condições para a sua superação, vez que a consciência de classe e a organização do proletariado são elementos fundamentais para a transformação social.

É o que, grosso modo, encontramos n’O Capital, de Karl Marx, no Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels e em A Ideologia Alemã, também de Karl Marx e Friedrich Engels.

Neofeudalismo

Ao observar que em pleno feudalismo os burgueses conseguiram se organizar para tomar o poder da aristocracia, embora em grande medida possamos dizer que o que aconteceu de fato foi que alguns burgueses mais estruturados acabaram sendo admitidos entre os aristocratas, seria natural que os proletários se organizassem para tomar o poder dos burgueses, ou serem admitidos entre eles.

Uma série de fatores históricos  – dentre os quais o ocaso do neoliberalismo calcado na globalização, que foi imaginada para favorecer que os países ricos melhor explorassem os pobres, mas que, em vez disso, promoveram o desenvolvimento da China e, em menor grau, da índia – parecem ter distorcido este pendor ao socialismo e devolvido as sociedades ao feudalismo – um novo feudalismo naturalmente, como destaca o economista Yanis Varoufakis: o tecnofeudalismo.

Qual é a diferença básica entre capitalismo e feudalismo? O feudalismo era baseado na renda, enquanto o capitalismo sempre foi baseado no lucro. No feudalismo senhores de sangue azul recebiam enormes extensões de terra para explorar das quais arrendavam glebas, em que intermediários e servos trabalhavam de forma meeira, ou seja, destinavam aos senhores feudais algo como metade do que produziam, o que representava a renda destes senhores.

No capitalismo basicamente os donos do capital construíam indústrias nas quais produziam mercadorias por um determinado custo e as vendiam mais caro, gerando lucro. Claro está que no capitalismo duas formas de renda (algo típico do sistema feudal) se mantinham, basicamente o aluguel de imóveis e o aluguel de dinheiro (empréstimos a juros). Ocorre que estas modalidades funcionaram de forma sinérgica com a indústria e o comércio, seja financiando a produção, seja cedendo sedes físicas para os empreendimentos.

Renda versus lucro

Há uma diferença substancial entre o lucro e a renda. Ao passo que o lucro, por natureza, precisa ser reinvestido em grande parte, sob pena de ruir o empreendimento, a renda é apenas acumulada. Assim, apesar de todas as mazelas do capitalismo, ao ser reinvestido o lucro acaba gerando empregos e desenvolvimento, contribuindo assim de alguma maneira para o progresso social, enquanto a renda nada gera, exceto o acúmulo de quem a detém.

Se os senhores feudais dominavam formidáveis extensões de terra para explorar, as Big Techs começaram por criar cada uma para si um planeta inteiro e de dimensões infinitas e a partir daí começaram a arrendar glebas destes planetas.

Examinemos inicialmente os planetas Youtube e Meta. São o que chamamos de nuvens, mas que nada têm a ver com elas. Trata-se de grandes estruturas físicas de computadores e softwares que são oferecidos a intermediários e servos que trabalharão de forma meeira.

No caso do Youtube isso é facilmente percebido, o cidadão ou empresa é convidado a criar gratuitamente um canal na plataforma e de livre e espontânea vontade começa a trabalhar, a produzir conteúdo. Esse conteúdo atrai público, ao qual a plataforma impõe propaganda, que gera renda. Aí a plataforma, sob determinadas regras e condições que ela mesma atribui, repassa uma determinada fração deste rendimento gerado para o produtor de conteúdo.

Tudo isso vale para o caso da Meta, as diferenças estão apenas na forma que o conteúdo é apresentado, no Youtube invariavelmente são vídeos, já na Meta são produtos mais diversificados, mas com vídeos inclusos.

Quando você pensa na Amazon é algo parecido. O planeta infinito dela é alugado da mesma maneira que o detentor de shopping aluga uma loja, apenas que ao invés de receber um valor fixo, a Amazon passa a receber 15% sobre todo o faturamento da empresa.

Trata-se de modelos que ultrapassaram os conceitos de meios de produção, e avançaram (ou retrocederam) para um modelo meramente acumulativo. Enquanto o custo de produção de uma indústria oscila ao redor de 90% do valor de faturamento, o custo destas empresas quando muito atinge 5%. E isso gera um acúmulo astronômico e preocupante, por ser dinheiro que sai do meio circulante. Mas esta é outra história.

Nosso propósito aqui era procurar identificar a que classe social pertencem os motoristas de aplicativos. Tentemos, portanto. Como fácil o amigo leitor já intuiu, o Uber funciona de maneira similar à das empresas citadas acima, pertence, portanto, segundo esta análise, ao mundo pós capitalista. Assim, classificar conceitualmente os motoristas que trabalham neste sistema pode se tornar uma tarefa árdua, quiçá impossível.

Temos acompanhado um debate fervoroso nas redes em que uma grande maioria enquadra estes profissionais na categoria de proletários, outros na e pequeno-burgueses. Senão vejamos. No capitalismo, se um motorista trabalha para uma transportadora por um salário, é evidente que se trata de um proletário. Se é dono do caminhão em que trabalha, independentemente de precariedades eventuais, será um pequeno-burguês.

Já um motorista de aplicativo que trabalha com veículo próprio, mas para uma empresa que aluga meios de este motorista conseguir clientes, e lhe devolve apenas parte do que ele conquistou com seu trabalho e seu equipamento… não terá como ser enquadrado com alguma precisão em categorias capitalistas, já que trabalha em um sistema pós-capitalista.

Dado o tamanho da renda que obtém, o número de horas que trabalha e o fato de ser com carro alugado (novamente o aluguel, típico do feudalismo e do neofeudalismo), e que ele pode ser afastado do trabalho caso seu “empregador” entenda que ele burlou alguma regra da empresa, fica difícil afastá-lo conceitualmente do proletariado.  Contudo, se atentarmos ao fato que ele não precisa cumprir jornada ou, mesmo nela, não é obrigado a aceitar corridas, somos forçados a admitir que há muito de pequeno-burguês aí. Mas de fato, nem como proletário apesar de ser mal remunerado pelo que faz, nem pequeno burguês apesar de ser proprietário do meio de trabalho ele pode ser configurado com exatidão.

Esperemos que, ao novo, se dê novos nomes. Sem qualquer desdouro a este importante profissional, a quem dedico especial afeto e gratidão, eu o conceituaria como servidor neofeudal. Lembrando que o servo medieval recebia do Senhor feudal ferramentas e os demais recursos necessários para a realização de seu trabalho, algo negado ao servo neofeudal.

Salvio Kotter passou por formações bem variadas, como Administração de Empresas, Música Erudida, Grego Antigo e Latim. Publicou vários livros, de ficção e não-ficção e é editor da Kotter Editorial, especializada em literatura, filosofia e política.

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3 Comentários

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  1. Acredito que as categorias marxistas precisam de uma atualização para serem aplicadas ao estado atual da economia, independente de tratada como (pós)capitalismo ou (neo)feudalismo.
    O produto industrial/agrícola é mínimo em relação à geração de riqueza, que é muito mais constituída por serviços. Mesmo trabalhadores que não compram seus próprios bens de produção, precisam reinvestir parte de sua renda em aquisição de conhecimento, para si mesmo ou dependentes, além de todos os recursos necessários para que o processo educacional aconteça, como alimentação, transporte, saúde, moradia adequada, etc. É claro que o conhecimento detido pelo trabalhador acaba sendo também um importante meio de produção. Seria capital intelectual? Os de RH chamam de capital humano, mas é pura psico-demagogia. Então uma imensa parcela dos empregados não é puramente proletária. Para serem admitidos precisam associar seu conhecimento e destreza acumulada por ele aos capitais próprios da empresa. Entendo que os capitalistas hoje são todos empregados. A grande burguesia nem dá as caras nas empresas. Contrata empregados/capitalistas que façam o que era seu trabalho à época de Marx.

  2. O motorista de Uber vive (mal) da depreciação do veiculo que dirige diuturnamente.
    É empregado pela cia (Uber) para deixar os patrões cada vez mais ricos.

  3. Alguém sabe dizer se o projeto da Kotter deu certo ou se estão falindo e indo ladeira abaixo?

    As livrarias Saraiva e Cultura faliram completamente, enquanto a Leitura e a Travessa cresceram no seu lugar. Como a editora não libera informações públicas sobre sua performance financeira, fica difícil de saber o que de fato acontece lá dentro

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