Sobre a extinção da Comissão sobre mortos políticos, por Vera Paiva

Leia a íntegra do voto apresentado pela filha de Rubens Paiva à Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos

Antônio Cruz – Agência Brasil

Sobre a extinção da Comissão sobre mortos políticos

Por Vera Paiva

Convocada para a reunião da CEMDP (Comissão Espl Mortos e Desaparecidos Políticos), na pauta sua extinção.

CENÁRIO: 5a feira  15/12/22 no MDH/Brasilia,  4o andar, sala anexa ao gabinete da Damares. Convocada dia 7, na véspera mudaram dois representantes das forças armadas.

CENA do meu VOTO logo ABAIXO: fui a última a votar. 

Diva Santana, abriu a votação pelos familiares, seguida do Dr Ivan Garcia Marx (MPF), também voto contra, Dr.Samuel Ferreira, legista-perito da Comissão pediu a palavra, contra. Sou professora, com entonação psicodramática consegui atenção dos 4 bozzonaristas que acabavam de votar a favor antes, mas olhavam o celular: me escutem!

Foi duro? Siiim… Mas esta noite dormi 12 horas, raro desde 2018… Me salva sempre a elegância combativa que aprendi da minha mãe! 

ABAIXO a fala, anotada no DOC que fui ajeitando no Laptop:

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Concordando com a Diva e o Dr. Ivan que falaram antes de mim, voto contra a aprovação deste relatório, e considero que nenhum dos quatro que votaram a favor justificaram a pressa de tomar essa decisão no apagar das luzes do governo Bolsonaro. O argumento de que é difícil continuar a investigação depois de tanto tempo passado, entre outros, não se sustenta tendo em vista a experiência de outros países, inclusive a recentíssima da Espanha que tem investido nas buscas dos mortos e desaparecidos da sua Guerra Civil.

Já PEDI para incluírem na ata, o texto de Paula Franco, Caio Cateb, Carla Osmo e Pedro Rolo Benetti que apoiaram em outro momento essa CEMDP que se quer extinguir. Resumem os argumentos que, em linhas gerais, representam a minha avaliação sobre esse relatório final e sua posição de extinguir a comissão: “Nota circunstanciada sobre o destino da CEMDP no apagar das luzes do governo Bolsonaro” [[ link no comentário]]

Mas NÃO NOS PEÇAM para esquecer: sempre estaremos aqui

Minha mãe Eunice Paiva, como ressaltei do relatório, foi das primeiras pessoas indicadas por essa Comissão. Não aguentou, pediu para sair depois de um tempo, para se dedicar ao trabalho como advogada no campo dos Direitos Humanos.

Dizia que os depoimentos a assombravam noite e dia, desequilibrando a difícil sanidade mental que a permitiu criar sozinha 5 filhos, se formar como advogada e defender povos originários – o segmento da população brasileira que certamente acumulou o maior número de casos de mortes, assassinados, torturas e desaparecimentos ao longo da ditadura e até hoje, como a CMV apenas começava a investigar.

Há alguns meses entendi, de novo, as opções de minha mãe quando li os detalhes fornecidos pelos assassinos de BRUNO & DON, assassinados em Tabatinga na fronteira tríplice (um lugar que conheço do trabalho em prevenção de IST/AIDS) detalhes que me assombraram por dias… Os assassinos confessos de Bruno e Don descreveram a técnica e prática, detalharam como fazer um corpo desaparecer, como se produz um desaparecimento, depois de esquartejar e separar pedaços do corpo. Para beneficiar poderosos interesses locais e transnacionais que não conseguem sobreviver ao mínimo escrutínio democrático e transparente,  e contrariam o interesse da maioria de qualquer povo que fosse bem informado desses interesses. Que Interesses que contratam para torturar e matar, aleijar, sumir, exterminar os que se opõem a seu caminho?

Renunciar à justiça de transição acumulou que resultados? Encaminhou a história para onde? Continuar banalizando essas práticas levará o país a que futuro, futuro que será corresponsabilidade desses que encerram essa Comissão?

Não nos peçam para esquecer os motivos da luta daqueles que foram presos, torturados e assassinados em tempos de ditadura militar, que nesse caso da tortura, desaparecimento e assassinatos políticos nunca acabaram.

Retire nossa a assinatura deste relatório final. Assumam sem nossa cumplicidade o modo como querem entrar para a história.

Não nos peçam para esquecer, SEMPRE ESTAREMOS AQUI. Cito entre aspas trechos do livro de Marcelo Rubens Paiva, meu irmão Ainda estou aqui.

Meu voto (Vera Paiva) contra a extinção da CEMDP em 15/12/2022

Concordando com a Diva Santana e o Dr. Ivan Marx que falaram antes de mim, voto contra a aprovação deste relatório, e considero que nenhum dos quatro que votaram a favor justiçaram a pressa em tomar essa decisão no apagar das luzes do governo Bolsonaro. O argumento de que é difícil continuar a investigação depois de tanto tempo passado, entre outros, não se sustenta tendo em vista a experiência de outros países, inclusive a recentíssima da Espanha que tem investido nas buscas dos mortos e desaparecidos da sua Guerra Civil.

Pedi para incluírem na ata, o texto de Paula Franco, Caio Cateb, Carla Osmo e Pedro Rolo Benetti que apoiaram em outro momento essa CEMDP que se quer extinguir, que resumem os argumentos que, em linhas gerais, representam a minha avaliação sobre esse relatório final e sua posição de extinguir a comissão: “Nota circunstanciada sobre o destino da CEMDP no apagar das luzes do governo Bolsonaro”, link no comentário.

Mas não nos peçam para esquecer: sempre estaremos aqui

Minha mãe Eunice Paiva, como ressaltei do relatório, foi das primeiras pessoas indicadas por essa Comissão. Não aguentou, pediu para sair depois de um tempo, para se dedicar ao trabalho como advogada no campo dos Direitos Humanos. Dizia que os depoimentos a assombravam noite e dia, desequilibrando a difícil sanidade mental que a permitiu criar sozinha 5 filhos, se formar como advogada e defender povos originários – o segmento da população brasileira que certamente acumulou o maior número de casos de mortes, assassinados, torturas e desaparecimentos ao longo da ditadura e até hoje, como a CMV apenas começava a investigar.

Há alguns meses entendi, de novo, as opções de minha mãe quando li os detalhes fornecidos pelos assassinos de BRUNO & DON, assassinados em Tabatinga na fronteira tríplice (um lugar que conheço do trabalho em prevenção de IST/AIDS) detalhes que me assombraram por dias… Os assassinos confessos de Bruno e Don descreveram a técnica e prática, detalharam como fazer um corpo desaparecer, como se produz um desaparecimento, depois de esquartejar e separar pedaços do corpo. Para beneficiar poderosos interesses locais e transnacionais que não conseguem sobreviver ao mínimo escrutínio democrático e transparente,  e contrariam o interesse da maioria de qualquer povo que fosse bem informado desses interesses. Que Interesses que contratam para torturar e matar, aleijar, sumir, exterminar os que se opõem a seu caminho?

Renunciar à justiça de transição acumulou que resultados? Encaminhou a história para onde? Continuar banalizando essas práticas levará o país a que futuro, futuro que será corresponsabilidade desses que encerram essa Comissão?

Não nos peçam para esquecer os motivos da luta daqueles que foram presos, torturados e assassinados em tempos de ditadura militar, que nesse caso da tortura, desaparecimento e assassinatos políticos nunca acabaram.

Retire nossa a assinatura deste relatório final. Assumam sem nossa cumplicidade o modo como querem entrar para a história.

Não nos peçam para esquecer, SEMPRE ESTAREMOS AQUI. Cito entre aspas trechos do livro de Marcelo Rubens Paiva, meu irmão Ainda estou aqui.

“A tortura existiu em arenas romanas, em masmorras da Idade Média, em castelos, pelourinhos, foi patrocinada por imperadores, reis e papas, ditadores de esquerda e de direita. Existe quando um Estado precisa subjugar seus inimigos.”

“A tortura é a ferramenta de um poder instável, autoritário, que precisa da violência limítrofe para se firmar, e uma aliança sádica entre facínoras, estadistas psicopatas, lideranças de regimes que se mantêm pelo terror e seus comandados. Não é ação de um grupo isolado.”

“A tortura é um regime, um Estado. Não é o agente fulano, o oficial sicrano, quem perde a mão. A instituição e sua rede de comando hierárquica que torturam… O poder, emanado pelo povo ou não, suja as mãos.”

“Apesar de ser considerada crime hediondo, inafiançável, continua existindo.”

Em outro trecho Marcelo conta o que sabemos de testemunhas do assassinato de nosso pai:

“20 de janeiro de 1971. Meu pai apanhou por dois dias seguidos. Apanhou assim que chegou na 3a Zona Aérea, interrogado pelo próprio brigadeiro João Paulo Burnier. Apanhou no DOI-Codi, no quartel do 1o Exército no RJ.

Meu pai era um homem calmo, bom, engraçado, frágil fisicamente. E vaidoso. Um dos homens mais simpáticos e risonhos que Antonio Callado conheceu. O que mais lembram dele? Da gargalhada, que fazia tremer a casa. Fumava charutos. Gostava de comer do melhor. De viajar.”

Antônio Callado escreveu em agosto de 1995 na sua coluna da Folha:

“Eunice, que fora também presa, mas em seguida libertada, pode respirar, tranquila, tomar um drinque com os amigos, depois de sair do mar, pois acabara de estar com o ministro da Justiça, ou da Aeronáutica, que lhe havia garantido que Rubens já tinha sido interrogado, passava bem e dentro de uns dois dias estaria de volta a sua casa. Dois dias depois, isto sim, os jornais recebiam uma notícia tão displicente que se diria que seus inventores não faziam a menor questão [de] que fosse levada a sério: Rubens estaria sendo transferido de prisão, num carro, quando guerrilheiros que tentavam libertá-lo tinham atacado e sequestrado o prisioneiro. O que correu pelo Rio – logo se suspeitou de sua morte – é que ele morrera às mãos, ou pelo menos de tortura diretamente comandada pelo brigadeiro João Paulo Penido Burnier, aquele mesmo que queria fazer explodir o gasômetro do Rio para pôr a autoria do crime na conta dos comunistas. A família Paiva nunca mais teve notícias oficiais de Rubens. Nunca se encontrou a cova onde o terão atirado depois do assassinato.  E a cara de Eunice, que tinha 41 anos, continuou molhada e salgada durante muito tempo.”

Continua Marcelo, nossa mãe…“tinha perdido vinte quilos. Ficou presa numa cela de fundo, em que quase ninguém aparecia. Sem sol. Ela não viu meu pai, apenas sua foto no álbum de presos, o que a deixou contraditoriamente aliviada, pois então ele estava ali, nas mesmas dependências, vivo, e ao mesmo tempo angustiada, pois seu rosto fazia companhia ao de centenas de presos, suspeitos, guerrilheiros, terroristas, inimigos do sistema, procurados, mortos em combate, torturados, subversivos…”

Segue o Marcelo:

“Vinte e cinco anos depois [da prisão de Rubens e Eunice e Eliana] meu pai, um dos homens mais simpáticos e risonhos que Callado conheceu, morria por decreto, graças à Lei dos Desaparecidos, vinte e cinco anos depois de ter morrido por tortura.”

Neste dia, conta Marcelo que acompanhou minha mãe, “da calçada, avistávamos a baixada, o parque Dom Pedro (o que restou dele), o Brás, bairro em que ela nasceu (o que restou dele…). Ela então ergueu o atestado de óbito para a imprensa, como um troféu. Na capa de todos os jornais no dia seguinte, com o atestado de óbito erguido, alegre. Uma batalha foi vencida. V de vitória.

Ela que jurou que nunca faria uma cara triste. Sorria.  Bem que tentaram. Por anos, fotógrafos nos queriam tristes nas fotos. Sim éramos ‘A família vítima da ditadura’. Apesar de preferirmos a legenda ‘Uma das muitas famílias vítimas’.

A família Rubens Paiva não é a vítima da ditadura, o país que é.

O crime foi contra a humanidade, não contra Rubens Paiva.

Precisamos estar saudáveis, para a contraofensiva. Angústia, lágrimas, ódio, apenas entre quatro paredes. Foi a minha mãe quem nos ensinou.”

Aprendemos muito desde então. Abro as aspas para o Marcelo

“Sabemos muito bem que não se fazem generalizações em acirramento ideológico. Militares foram os que mais sofreram nas mãos dos militares durante a ditadura. Muitos foram presos, expulsos, humilhados, exilados, torturados e mortos. Aliás, grande parte dos que combateram a ditadura, foram militares. Muitos na luta armada.”

Fecha aspas.

Meu pai acreditava que por meio de governos democraticamente eleitos poderíamos diminuir as desigualdades no país. Mas era pai. Continua Marcelo:

“Tinha cinco crianças…Sabendo que minha mãe e minha irmã Eliana (adolescente) estavam nas mesmas dependências do DOI-Codi em 21 de janeiro de 1971, de capuz, prontas para os torturadores caírem em cima, sabendo que minha mãe e irmã não tinham a menor ideia do que faziam ali…Inimaginável o seu sofrimento. …Deve ter sido a sua derradeira tortura.”

Marcelo imagina ativamente nosso pai pensando enquanto percebia que não ia aguentar (escreveu esse livro logo depois de ter um filho):

“Não tenho palavras, Eunice, Verinha, Cuchimbas, Lambancinha, Cacareco, Babiu… Perdão. Não verei mais vocês crescerem, não estarei mais ao lado de vocês, não consigo mais proteger vocês, não vou mais brincar com vocês, escutar suas risadas, correr atrás, nadar, não acompanharei vocês na escola, nossa casa maluca não sairá do papel, não saberei que faculdade farão, que diploma pegarão, não acompanharei vocês na vida profissional, não conhecerei seus filhos, meus netos, não verei meus netos crescerem, não estarei ao lado deles, não os protegerei, não vou brincar com eles, escutar as risadinhas deles, correr atrás, nadar, não acompanharei eles na escola, e como é triste saber que tudo isso acaba, que meu momento com vocês foi tão curto, que não pude aproveitar mais… que pena que estou indo embora, que triste que não posso ficar, não me deixam ficar, é inevitável que eu vá, eu não queria, eu não queria, estou tão triste.”

E continua Marcelo mais adiante:

“Morreu repetindo o seu nome. Meu nome é Rubens Paiva, meu nome é Rubens Paiva, meu nome é Rubens Paiva, meu nome é Rubens Paiva, meu nome é Rubens Paiva…

Dizem que foi torturado ao som de “Jesus Cristo”, de Roberto Carlos, música que minha irmã Eliana se lembra de ter escutado enquanto estava lá:

Jesus Cristo! Jesus Cristo!

Jesus Cristo, eu estou aqui

Toda essa multidão

Tem no peito amor e procura a paz

E apesar de tudo

A esperança não se desfaz 70

Meu nome é Rubens Paiva, meu nome é Rubens Paiva, meu nome é Rubens Paiva…

Jesus Cristo! Jesus Cristo!

Jesus Cristo, eu estou aqui

Olho no céu e vejo

Uma nuvem branca que vai passando

Olho na terra e vejo

Uma multidão que vai caminhando

Dizem que ele pedia água a todo momento. No final, banhado em sangue, repetia apenas o nome. Por horas. Rubens Paiva. Rubens Paiva. Ru-bens Pai-va, Ru… Pai. Até morrer.”

E segue:

“Os familiares de desaparecidos viviam num limbo civil, além de emocional (temos ou não um pai, uma mãe, um filho, uma filha ou netos vivos?). A burocracia engessava atividades corriqueiras. Não sabíamos nem a data em que deveríamos decretar como o dia da morte. A expressão é “desaparecido a partir de”, e não “morto em”. Meu pai foi preso no dia 20 de janeiro…Para nós, da família, a data da sua morte é 20 de janeiro. Só recentemente soubemos que ele morreu entre 21 e 22. Não mudaremos o dia em que sua morte faz aniversário.

Eu deveria vingar a morte do meu pai? Comprar um revólver e ir, de um em um, atirar na cabeça? Com dezessete, dezoito, dezenove anos eu era da paz. Era um pacifista”.

Todos nós das famílias somos da paz.

“Alguns nomes dos torturadores envolvidos já tinham sido divulgados nas declarações oficiais do próprio Tribunal Militar. Lutar pela democratização seria uma vingança mais efetiva, e esperar que a Justiça numa nova democracia fizesse a sua parte. O que esperamos até hoje. “

E segue em outro trecho:

“Por que a tortura nunca acaba? Serve para quê?

Para apressar, com eficiência duvidosa, a conclusão de uma investigação. Para encontrar reféns desaparecidos, comparsas, resgates e mandantes…Como vingança. Para destroçar um indivíduo, reforçar quem manda, aterrorizar a população, torná-la dócil. Para dar senso de camaradagem a uma comunidade fechada, como um satânico rito grupal primitivo. Para unir sob uma bandeira que não se sustenta. Para humilhar.

Na ditadura, torturaram freis, freiras, bispos, padres brasileiros e estrangeiros, velhos, bebês, grávidas, pais com filhos, mães amarradas diante de filhos, por uma causa torpe.”

Empresários davam dinheiro para o centro de tortura da Oban, que inspirou os DOI-Codis, que era passado pelo Henning Boilesen, da Ultragás. Ele frequentava as sessões, para assistir a garotos de ponta-cabeça levando choques. Caso eternizado em filme e documentários, como o livro Ainda estou aqui de meu irmão que sigo citando também será.

Marcelo pergunta no seu texto:

“O torturador tem pai, filho, esposa, amigos, vida pública, faz compras, viaja de férias, gasta horas no trânsito, paga impostos, poupa, vota, protesta, planeja o futuro. Pensa no seu gesto ou apenas cumpre ordens? Ele cumpre uma rotina trivial sem distinguir o certo do errado? Vive sob a banalização do mal sem questionar moralmente os efeitos dele? Até democracias que priorizam o bem social, defendem a liberdade, movidas pela igualdade, torturam.” 

Será que têm medo? Me pergunto?

O Coronel MALHÃES cuja filha, médica, não sabia sobre seu passado de participe da tortura.

“Foi assassinado em 2014 – logo depois de confessar ter participado da ocultação do corpo de meu avô -, disse que o desaparecimento era um modo de eternizar a tortura do assassinado para amigos e familiares”, escreveu meu filho Chico Paiva Avelino em um texto de muita repercussão em outubro de 2018.

Com o fim da censura, a imprensa passou a trazer histórias, depoimentos, como esse de Malhães.

Como no depoimento-bomba do médico e psicanalista Amílcar Lobo, que atendia no DOI-Codi. “Era dos que atestavam se o preso conseguiria ser mais torturado. Arrependido, confessou para a Veja que atendeu meu pai de madrugada. Em dois depoimentos prestados entre 1986 e 1987, afirmou ter sido chamado numa madrugada de janeiro de 1971 para atender a um preso recolhido no DOI, que conseguiu apenas balbuciar, por duas vezes, o nome: Rubens Paiva. Com hemorragias internas, numa poça de sangue, repetindo o nome. Praticamente morto. Ele soube no dia seguinte que o “paciente não resistiu”.

Minha mãe chegou a anunciar que iria se encontrar com Lobo no dia em que ele fosse depor na PF do Rio. Não foi.”

E termino meu voto contrário a aprovação desse relatório onde comecei: em 1996, FHC  chamou Eunice para a 1ª Comissão de Mortos e Desaparecidos como indica esse relatório. No texto do Marcelo:

“Minha mãe, como muitos, abriu mão da indenização. Tentou julgar com a isenção de uma bacharel e “especialista” cada caso que aparecia. Conseguiu por uns meses. Mas pediu afastamento. Aquilo mexia com ela. Ver e ouvir relatos de tortura… Ali tinha um ser endurecido que não era de aço.”

E aqui estou EU, para testemunhar pessoalmente em nome de milhares de desaparecidos e mortos pela violência de estado, e não apenas as centenas já reportadas, vítimas de violência política de Estado perpetrada por governos que segue matando especialmente os mais pobres, os menos brancos, as mulheres, os mais vulneráveis. 

Porque encerramos essa Comissão às pressas, pelo prazer mórbido do presidente que, quando era deputado, saiu de seu gabinete apenas para vaiar e simular um cuspe no busto de Rubens Paiva, ainda de pé entre a Câmara e o Senado, o 1º ligar encontrado para família, que pelo menos uma vez por ano o visita para homenageá-lo, rezar?

Um presidente sem humanidade, que não derruba uma lágrima, faz pouco das vitimas da covid e dedica-se a lives recheadas de estigmatização e mentiras sobre seus opositores, na ilusão talvez que deixaremos de existir

Seus representantes aqui presentes estarão em paz? Como explicarão a seus filhos e netos porque estão a usurpar o espírito de uma Lei, cujo sentido é garantir o direito constitucional, e um ritual sagrado em todas as religiões, de se receber um atestado de óbito com a verdadeira causa da morte, fazer o luto, ter um túmulo?

Pior, como vão explicar à história que seus netos vão ler, que fazem isso em nome de Jesus Cristo, que compunha o fundo musical dos momentos finais de meu pai?

Cristo que, como sempre lembrava minha mãe com Alzheimer escutando e pondo as mãos para cima no pai nosso,  “Meu Cristinho que morreu torturado, na cruz, perseguido pela vida dedicada e aos mais pobres e mais doentes, aos mais humildes?

Por mais de dois MILÊNIOS seguimos seu exemplo de amor e não ódio, baseados no amor e não no ódio

Não nos calarão. A Caminhada do Silêncio foi recém instituída  essa semana como parte do calendário da Cidade de São Paulo, que caminha em homenagem aos mortos em direção ao Memorial de Mortos e Desaparecidos Políticos, no Ibirapuera.  Para que essas experiências não sejam esquecidas, para que não se esqueça e nunca mais aconteça!

Pacificamente, as vezes em silêncio, seguiremos também por milênios se for necessário, de geração em geração.

Esse é meu voto.

*Vera Paiva, filha de Rubens Paiva, é professora do Instituto de Psicologia da USP

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