“Tapar Buracos” ou Reconstruir com Resiliência? Os Dilemas do RS, por André Moreira Cunha

Para estimar o custo da reconstrução, haveria de se avaliar o comprometimento do “estoque de capital’ do RS

Prefeitura de Esteio – RS

“Tapar Buracos” ou Reconstruir com Resiliência? Os Dilemas do RS

por André Moreira Cunha

A Reconstrução do Rio Grande do Sul: qual o custo?

Qual foi o impacto econômico da catástrofe climática em curso no Rio Grande do Sul (RS)? E quanto custará a reconstrução do estado? A resposta mais prudente, neste momento, para estas perguntas é: ninguém sabe ao certo. O governo estadual tem seu número: R$ 19 bilhões, assim distribuídos: R$ 218,6 milhões para ações de resposta ao desastre; R$ 2,5 bilhões para assistência; 7,2 bilhões para políticas de restabelecimento; e R$ 9 bilhões para reconstrução. Estes números foram apresentados no dia 09 de maio, quando o estado seguia debaixo d’água, o que dificulta uma avaliação precisa. Ainda assim, há um parâmetro importante: R$ 9 bilhões, que seria o valor para investimentos em reconstrução de estruturas diversas.

O principal jornal do RS consultou um especialista, que estimou a necessidade de investimentos em infraestrutura entre R$ 70 bilhões e R$ 90 bilhões. Sua análise foi sóbria e cautelosa, com o importante registro de que tais custos poderão variar em conformidade com a busca de maior (ou menor) resiliência climática. Outro economista, que se baseou na experiência do Katrina, em Nova Orleans, chegou a um número semelhantes: R$ 85 bilhões. Já um jornal de negócios de circulação nacional reverberou estimativas equivalentes, com estimativas entre R$ 90 bilhões e R$ 150 bilhões.

Como regra, economistas buscam referências em experiências prévias já registradas na literatura. Estudo do FMI para 164 países nas últimas três décadas, com dados georreferenciados para identificar efeitos de eventos extremos, além de dados macroeconômicos usuais, identificou que o “… impacto das catástrofes naturais no crescimento econômico e nos orçamentos governamentais é heterogêneo. Não somente depende dos tipos de desastres, mas varia entre os países. Enquanto secas e tempestades severas reduzem o crescimento, os impactos macroeconômicos das cheias tendem a ser menores … as consequências dos desastres naturais são geralmente maiores para os países emergentes e em desenvolvimento do que para os de alta renda…”. Tempestades intensas, com as que atingiram o RS podem, média, reduzir o PIB em -1,6%. Tal efeito varia em função das características estruturais das economias e do nível de comprometimento da infraestrutura.

Com este parâmetro de -1,6%, teríamos uma contração da renda gaúcha de R$ 10 bilhões, a preços de 2023[1]. Já a estimativa de perda potencial de renda seria maior, pois haveria de se computar o que teria ocorrido caso a economia tivesse crescido, pelo menos na média histórica normal. Tal montante poderia ser de R$ 30 bilhões:1/3 da queda no nível e 2/3 da perda do potencial de renda. Por outro lado, se considerarmos a experiência próxima da pandemia, quando o PIB caiu -8%, em 2020, aqueles números seriam até quatro vezes maiores.

Para estimar o custo da reconstrução, haveria de se avaliar o comprometimento do “estoque de capital’ do RS, vale dizer, do conjunto de edificações residenciais e não residenciais, de infraestruturas diversas (estradas, pontes, vias de acesso aos municípios, ruas, avenidas, rede de distribuição de energia, barragens, aeroportos, portos, linhas de trem, estações de ônibus etc.), de máquinas e equipamentos nas empresas, veículos diversos, de estoques de insumos e produtos finalizados etc. Ainda não se sabe exatamente o que foi comprometido e de que forma.

Por outro lado, sabe-se o valor aproximado daquele “estoque de capital”. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada estima que o estoque de capital do país seria da ordem de R$ 10,2 trilhões (preços de 2010) no final de 2023. A preços de 2023, este montante dobraria: R$ 20,5 trilhões. A fatia do RS poderia ser estimada de distintas formas, na medida em que não há medidas de formação bruta de capital fixo (FBCF) nas unidades da federação, o que dificulta estimar o seu “valor presente” (ou estoque). Aqui utilizaremos como aproximação o valor de 7,4%[2], fruto de pesquisas em finalização na FCE-UFRGS, o que nos leva a sugerir que o estoque de capital gaúcho tem uma magnitude ao redor de R$ 1,5 trilhão, a preços médios de 2023.

Quanto deste estoque foi comprometido é a pergunta central para a qual ainda não temos respostas mais objetivas. Se 10% do estoque de capital foi perdido ou severamente afetado, a conta da reconstrução seria de R$ 150 bilhões. Adalmir Marquetti (PUC-RS) e Alessandro Miebach (UFRGS) arbitraram, com base em parâmetros internacionais, uma perda de 1,8% do estoque de capital gaúcho (R$ 29 bilhões), cujo valor total seria de R$ 1,6 trilhão, próximo à nossa estimativa. Alertam para o fato de que tal perda pode ser maior, pois ainda não há clareza da destruição efetiva. Este é o melhor número disponível para o que seria o “piso” dos investimentos a serem realizados, o que equivale a três vezes mais do que os R$ 9 bilhões identificados pelo governo gaúcho.

Tapar Buracos ou Reconstruir com Resiliência?

A opção de “Tapar Buracos” é a mais rápida e barata. Seu apelo é o retorno imediato ao “business as usual”. Se a ponte caiu, constrói-se uma nova, de forma “emergencial”. Se o asfalto cedeu, tapa-se o buraco. Se a fábrica foi inundada e as máquina pararam de funcionar, trocam-se algumas peças e retoma-se a produção. Se a casa foi arrastada pelas águas, reconstrói-se outra, no mesmo lugar. Se a plantação foi perdida, prepara-se a terra para a nova semeadura. A urgência para recuperar as perdas das famílias e das empresas, estabilizar a prestação de serviços diversos e normalizar o funcionamento dos sistemas de transporte, energia, comunicações etc., gera a inércia decisória nesta direção.

Até porque, a alternativa de reconstruir em bases mais resilientes criaria um conjunto complexo de decisões adicionais. Vamos transferir casas e fábricas para um lugar menos exposto às futuras enchentes? Alterar bairros ou cidades inteiras de lugar? Vamos construir um novo aeroporto internacional, distante do centro da capital, em região mais “segura”? Vamos rever a legislação ambiental destroçada por força de interesses particulares e criar um processo robusto de recuperação de biomas, bacias hidrográficas etc.? Investiremos mais em fontes de energia renováveis, encurtamento dos sistemas de transmissão e de distribuição de energia, saneamento e preservação das fontes de água – em algum momento do futuro teremos estiagens ainda mais intensas que as do passado – segurança alimentar, asfalto ecológico, pontes mais resistentes às cheias dos rios, transporte ferroviário de cargas e pessoas, renovação das máquinas e equipamentos de empresas com vista ao uso mais eficiente de energia, e assim por diante?

Para construir um novo aeroporto, precisaremos de planejamento integrado e de longo prazo. Não basta relocalizá-lo se não houver um sistema de transporte eficiente para levar pessoas e cargas até lá. O transporte individual por veículos movidos a combustíveis fósseis é fazer mais do mesmo, e do errado. Ao mesmo tempo, tal projeto estruturante, para seguir no exemplo, criaria um sem número de novas oportunidades econômicas e sociais: novos centros de logística, modernos e de grande escala, capazes de transformar esta nova estrutura no principal hub logístico do Mercosul; áreas para abrigar novas empresas industriais de setores de fronteira tecnológica, transformando os espaços reurbanizados em polos atratores de investimentos, nacionais e estrangeiros; a reurbanização, em bases “verdes”, de espaços diversos, de modo a acomodar um fluxo de novos moradores e empreendedores dispostos a apostar em um futuro melhor. E assim por diante. Estudo recente do FMI indica que investir em resiliência climática gera retornos econômicos positivos e superiores às perdas geradas pelos desastres climáticos.

Para viabilizar projetos como este serão necessários novos instrumentos legais, volumes adicionais de recursos, planejamento de longo prazo, capacidades estatais de execução de projetos e consensos políticos mínimos, crédito, políticas eficientes que agilizem desapropriações e mantenham o preço dos novos terrenos em patamares normais, evitando a especulação imobiliária, capacidade de engenharia ampliada, infraestruturas modernas e resilientes às mudanças climáticas, política ambiental rigorosa etc.  Trata-se, de fato, de uma agenda muito mais desafiadora de políticas. E com retornos sociais e financeiros também superiores.

As elites políticas e econômicas, mergulhadas em interesses de curto prazo e condicionadas pelos calendários eleitorais e pressões diversas, não ousam pensar que há a oportunidade de reconstruir o estado em bases que permitiriam aumentar a produtividade e o crescimento no longo prazo. Apelam para soluções supostamente mágicas e consultorias internacionais, desprezando a ciência e as sólidas instituições de pesquisa existentes no estado.

Há evidências na literatura de que, quando há políticas robustas de recuperação do estoque de capital, o crescimento da renda per capita pode até aumentar no longo prazo. Por outro lado, na ausência destas, os resultados podem ser diametralmente opostos. A opção “Tapar Buracos” geraria uma cicatriz permanente sobre a estrutura produtiva do estado, aprofundando o processo prévio de seu declínio relativo. Quais empresas – locais ou estrangeiras – apostariam seu futuro em um estado incapaz de reagir adequadamente ao desastre em curso.

Ficaram patentes a inadequação da infraestrutura, a porosidade da legislação ambiental, a falta de capacidade das autoridades competentes em realizar manutenção adequada nos equipamentos de contenção de cheias, o despreparo e a ausência de planejamento de longo prazo etc. As vulnerabilidades econômicas e institucionais do RS aos choques climáticos se tornaram um livro aberto. A escassez de inteligência estratégica da elite local e o apelo recorrente aos argumentos anticientíficos não passaram desapercebidos. Como impedir que a juventude aqui formada, especialmente nas melhores universidades do país, decida “ir embora” por falta de horizontes? E como reter as empresas que deverão ser reconstruídas?

Reconstruir com resiliência climática, criando oportunidades de negócios e de futuro, é o único caminho para dinamizar a economia gaúcha no longo prazo. Estaremos à altura desta “façanha”?  A Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS aposta nesta direção e fornece elementos para a construção desta nova realidade no documento “A Reconstrução do Rio Grande do Sul”.


[1] O dado mais recente do PIB das UFs é de 2021, onde o RS tem o seguinte valor, a preços correntes: R$ 581 bilhões.

[2] O IBGE não oferece séries históricas padronizadas com estimativas da FBCF por unidade da federação. Para chegar nesta média de 7,4%, construímos uma série para as 27 UFs, considerando: o valor adicionado de cada UF na construção (lado da oferta); a imputação de gastos com máquinas e equipamentos, a partir do valor nacional, estimando o peso de cada UF a partir das respectivas participações destas nos financiamentos do BNDES (e/ou na importação de máquinas e equipamentos); e a imputação de um valor adicional da ordem de 15% para outros componentes, seguindo a média nacional.

André Moreira Cunha – Docente do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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