Gilberto Maringoni
Gilberto Maringoni de Oliveira é um jornalista, cartunista e professor universitário brasileiro. É professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, tendo lecionado também na Faculdade Cásper Líbero e na Universidade Federal de São Paulo.
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Bacurau: estava demorando…, por Gilberto Maringoni

Ao contrário de Bom dia para os defuntos, de Manuel Scorza, que faz contundente denúncia de uma derrota camponesa, Bacurau se aventura pela vitória dos de baixo. E aí está a raiz do estranhamento que provoca.

Bacurau: estava demorando…

por Gilberto Maringoni

A direita e o conservadorismo decidiram que Bacurau é um filme ruim, raso, populista e de narrativa pobre. O roteiro é unidimensional, são desconsideradas as contradições em uma sociedade complexa e os personagens são arquétipos toscos de manuais de política esquerdista.

Penso serem essas as melhores recomendações para quem não liga para preconceitos pedantes ir correndo ver a fita.

Pois Bacurau rompe a ideia disseminada de apresentar os pobres como figurantes passivos da máquina de moer carne de uma sociedade para lá de injusta. Bacurau vale-se de uma linguagem de paródia à Tarantino – como muitos já apontaram – para injetar sangue nos olhos de quem assiste. Há um pique de gibi na tela.

Sem interpretações chapadas do elenco, com humor sulfúrico e com uma câmera esperta e direção ágil, o filme nos leva a um povoado que se tornou lugar-nenhum nas entranhas do mercado. Foi apagado das redes e mapas internéticis e virtualmente expulso do planeta Terra. É nessa dimensão que a película explode.

Ao contrário de Bom dia para os defuntos, de Manuel Scorza, que faz contundente denúncia de uma derrota camponesa, Bacurau se aventura pela vitória dos de baixo. E aí está a raiz do estranhamento que provoca.

Há algo de Black Mirror nas pouco mais de duas horas de projeção. Fala-se de um futuro próximo, com miseráveis conectados em rede e de um Brasil pós termidor bolsonárico.

O debate estético-narrativo e os ataques nesse terreno – “glauberismo tardio” – encobrem o incômodo político que o filme suscita.

Vejamos Bacurau! Sejamos Bacurau! Bacurauzemo-nos todos! Nada temos a perder a não ser um grande filme e um prazer estético raro.

Os malas que reclamem.

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Gilberto Maringoni

Gilberto Maringoni de Oliveira é um jornalista, cartunista e professor universitário brasileiro. É professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, tendo lecionado também na Faculdade Cásper Líbero e na Universidade Federal de São Paulo.

3 Comentários

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  1. Boa! E que venham outras iniciativa propondo que, sim, que não apenas há alternativas viáveis a esse capitalismo do dólar, nefasto, bárbaro e vândalo de democracias e civilidade, como que há um estar bem generalizado no afastamento vigoroso da iniciativa privada e do estrangeiro da gestão pública.

    Mesmo filmes de suposta denúncia como o do Scorza – mas também os Costa-Gavras, John Pilger e até Michael Moore, por exemplo – ajudam a construir, no imaginário popular, a narrativa de que a selvageria é a vilã mas é a que sempre vence. Como se diz por aí, o imaginário não constrói nada, só as ações constroem. Mas agir sem antes imaginar não dá, né?

    Na maré da utopia
    banhar todo dia
    a beleza do corpo convém.

    Olha o pulo da jia,
    não tendo utopia
    não pia a beleza também…

    (Caetano, “Love, love, love”)

  2. A trajetória artística do melhor personagem, “Lunga”.
    Silvero Pereira (Mombaça, 20 de junho de 1982) é um ator e diretor brasileiro. É formado em artes cénicas pelo Instituto Federal do Ceará.[1]
    Carreira – Silvero começou na carreira artística com 17 anos fazendo teatro. É casado há 10 anos com o dramaturgo carioca Rafael Barbosa. Além dos diversos trabalhos com grupos cearenses, ele fundou duas companhias em Fortaleza: a Inquieta Cia. de Teatros e o Coletivo Artístico As Travestidas. O Coletivo Artístico As Travestidas foi fundado por Silvero há 14 anos. Composto por atores e atrizes transexuais e travestis e artistas transformistas, o projeto é realizado em Fortaleza e já produziu sete espetáculos, com temporadas nas regiões Sul e Sudeste. “O projeto visa questionar a sociedade sobre a caricatura e o estereótipo do universo trans, promovendo, com isso, um conhecimento mais aprofundado sobre o assunto e tentando desconstruir preconceito, esclarecendo e promovendo uma maior compreensão através da arte, em especial o teatro”, explica.[2]
    Sua estreia no cinema foi no longa metragem Serra Pelada (2013), que mais tarde, virou série na Globo. Durante uma apresentação da peça “BR-Trans” no Rio de Janeiro, Silveiro foi descoberto por Glória Perez, que o convidou para participar da novela das das nove, A Força do Querer (2017).[3][4] Por esse trabalho, foi indicado na 22ª edição do Melhores do Ano na categoria melhor ator revelação.

  3. Réplica: Críticos dizem que ‘Bacurau’ é um filme de propaganda; e daí?
    Mais relevante é que a discussão sobre filmes brasileiros começa a extrapolar a esfera do povo do cinema
    16.set.2019 às 16h00

    Inácio Araujo

    É consolador observar que um sociólogo como Demétrio Magnoli, representante de uma direita civilizada, se disponha a discutir um filme como “Bacurau” (Folha de 16/9), ainda que sob uma ótica abertamente dirigida a um duplo objetivo: desfazer o filme por ser de esquerda e desfazer da esquerda por aderir ao filme.

    O que motiva a perda de inteligência da esquerda, enfatizada no artigo, é, sobretudo, a comparação com Glauber Rocha, em particular “O Dragão da Maldade”. Não posso falar pela esquerda e pela inteligência em geral.

    Ainda assim, não me parece uma comparação tão pertinente. Entre os anos 1960 e 2019 certas mudanças ocorreram no cinema. Os anos 1960 eram abertos a obras inovadoras e enigmáticas. Exibiam-se em várias salas filmes de Antonioni e Godard. Se, hoje, fossem exibidos nas mesmas salas daquele tempo, haveria um festival de poltronas rasgadas e gente debandando do cinema.

    De lá para cá mudaram os filmes e também as pessoas. Quando o espectador não compreendia um filme, naquele já longínquo tempo, atribuía a incompreensão a suas próprias limitações e tratava de correr atrás, conversando com amigos, lendo, etc. O público de hoje é bem mais simples: quando não entende algo, simplesmente o rejeita. Se eu não entendo, o filme é ruim. Exemplo recente: as baixíssimas audiências do extraordinário “Twin Peaks”, de David Lynch.

    Num país com formação cinematográfica mínima como o Brasil, isso significa rejeições por vezes absolutas a Abbas Kiarostami, Manoel de Oliveira, Chen Kaige, não importa se representam a esquerda, a direita, o centro, o Irã ou a China. Tanto faz.

    Assim, a opção por um filme direto, que exprime o sentimento de opressão que sentem as pessoas do centro à esquerda desde a cada vez mais desnudada deposição de Dilma Rousseff, não é nada estranhável. Sim, as alegorias são por vezes muito simples, ao alcance de qualquer mortal. Os filmes de Glauber não eram. Demétrio sabe disso.

    Temos muitas obras mais sutis do que “Bacurau”, sem dúvida. “O Que Se Move”, de Caetano Gotardo, “Branco Sai, Negro Fica”, de Adirley Queiroz, “Sinfonia da Necrópole”, de Juliana Rojas, “ , “Gabriel e a Montanha”, de Fellipe Barbosa. Todas obras bastante ignoradas pelo público e que não mereceram comentário algum de sociólogos, médicos, engenheiros, etc., etc.

    Relendo o artigo vejo que um dos grandes pecados de “Bacurau” é ser um filme de propaganda. E daí? “O Nascimento de uma Nação” foi uma grande propaganda da Ku Klux Klan, nem por isso é um filme menor. Ao contrário. Se quisermos ir à esquerda, digamos que o “Potenkim” é igualmente uma obra de propaganda. Nem por isso é menor.

    E os Estados Unidos? Que dizer da série “Por que Combatemos”, que envolveu grandes cineastas durante a Segunda Guerra? Ou de todo o chamado cinema de esforço de guerra? Eram propaganda, é evidente. Mas não significam que os EUA tivessem ficado burros de uma hora para outra. Antes pelo contrário.
    Os exemplos não teriam fim. Vamos em frente.

    Demétrio se incomoda com o fato de a resistência aos turistas atiradores ser tão unânime. Com efeito: sob ameaça de morte não é raro populações se unirem de maneira unânime. Normalmente ocorre com países em guerra, por exemplo. Não vou dar mais uma fieira de exemplos: qualquer faroeste com cidade ameaçada serve.

    Talvez o que espante em Bacurau, justamente, é participar dessa tradição normativa do cinema americano, que década após década nos ensinou como nos comportar, como beijar, como amar, como ser valente, como defender a justiça. Não é uma tradição desprezível, ao contrário.

    “Bacurau” é normativo. Une bandidos e não bandidos (como, por exemplo, “Assalto à 13ª. DP”, de John Carpenter). É bastante violento, como os filmes de Sam Peckinpah ou Robert Aldrich (nada a ver, que eu vislumbre, com Tarantino, em quem também não vejo nada de fascista).

    Aliás, assim como menciona Marielle no final, o que designa a preferência política dos autores, Carpenter é explicitamente referido no corpo do filme. Assim como é possível gostar da literatura de Céline e não ser racista.

    Mesmo discordando de Demétrio, me parece um mérito do filme ter suscitado o interesse pelo cinema brasileiro de um autor que, habitualmente, não trata do cinema em geral. Penso na perda intelectual representada pelo fato de tantos filmes de igual ou maior sucesso terem passado em branco, sem despertar o interesse nem dos críticos, nem dos cineastas, nem de gente de direita, de esquerda, do centro, o que for, com a marcante exceção do artigo da “Nova História do Cinema Brasileiro” que ensejou ensaio publicado no recente numero dos “Cahiers du Cinéma” dedicado aos filmes brasileiros.

    Por fim, é da ordem da evidência que “Bacurau” é um filme sobre resistência e de resistência. Contra entrega do Brasil a estrangeiros (assassinos ou não), contra o neorracismo, contra a supremacia suposta das pessoas do Sudeste sobre as do Nordeste, pela vontade de viver contra a vontade de matar. É um filme direto, feito para ser compreendido por qualquer pessoa. É um cinema que busca se aproximar do público. De um público que aplaude a violência reativa ali representada, talvez porque a esquerda (e os democratas em geral) se sintam tão indefesos, tão incapazes de articular uma resposta à cotidiana barbárie instalada no país.

    Talvez isso explique, de passagem, mais do que qualquer hipotético alucinógeno, que alguns personagens façam amor ao longo do filme: é a vontade de viver que se impõe contra a morte.

    Isso é propaganda? Sem problema. Griffith já fez. John Ford já fez. Eisenstein já fez. Tanta gente já fez. A TV Globo já fez. E ninguém se incomodou com isso. Mais relevante, para mim, é que a discussão sobre filmes brasileiros comece a extrapolar a esfera do povo do cinema.

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